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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

Trinta anos depois, esfriou o entusiasmo na UE para alargar as suas fronteiras

Alexandre Guerra, 15.11.19

 

Os trinta anos volvidos após a queda do Muro de Berlim já nos permitem ter uma perspectiva histórica sobre a evolução do projecto europeu na realidade sistémica pós-Guerra Fria. De forma mais simplista e imediata, dir-se-ia que em três décadas se passou do entusiasmo contagiante ao esfriamento céptico. Embora seja uma ideia (ou talvez percepção) muito popular nos dias que correm, esta leitura deve ser feita com a devida contextualização.

 

Os ventos de mudança que se fizeram sentir na Europa entre 1989 e 1991 foram de tal maneira intensos que “empurraram” toda uma elite de líderes europeus e tecnocratas em Bruxelas para o caminho comum da celebração do ideal de “união” numa Europa atormentada durante décadas pela divisão dos seus povos. Dessa força política imparável resultaram dois dos momentos mais importantes daquilo que viria a ser a (re)definição e consolidação do conceito de projecto europeu: a entrada em vigor do Tratado de Maastricht, em Novembro de 1993, e o alargamento da União Europeia (UE) a Leste, em Maio de 2004. Não sendo o Tratado de Maastricht objecto de análise deste texto, foquemo-nos no maior alargamento de sempre e das implicações que teve na concepção da ideia de União Europeia e nas expectativas dos países do antigo Bloco de Leste e dos que saíram da ex-URSS.

 

Tal como tinha acontecido com Maastricht, também o alargamento em 2004 assumiu contornos inéditos na definição da natureza do projecto europeu. A 1 de Maio de 2004, de uma só vez, aderiram dez novos Estados à UE: Polónia, República Checa, Eslováquia, Eslovénia, Hungria, Lituânia, Letónia, Estónia, Malta e Chipre. Foi um momento particularmente importante no processo de construção europeia, sobretudo por duas razões: a primeira, por tratar-se da primeira vez que a União Europeia se alargava a países que tinham pertencido ao antigo Bloco de Leste; a segunda razão pelo facto de enviar um sinal de esperança a todos os Estados que outrora tinham estado sob o jugo comunista e que continuavam às “portas” do clube europeu.

 

O alargamento de 2004, pela sua expressão e alcance geográfico, representava um compromisso claro, por parte dos Estados-membros, da intenção de se fazer chegar as fronteiras do projeto europeu o mais longe possível. Foi esse o caminho escolhido, mas não sem antes ter havido um intenso confronto de visões. Não estava em causa mais um “simples” alargamento confinado a uma Europa ocidental desenvolvida, como já tinha acontecido várias vezes. Não, em 2004, era uma nova Europa que se (re)descobria.

 

Com a queda do Muro e a implosão da URSS dois anos depois, a União Europeia podia ter esperado, adiado ou abortado essa ideia de agigantar o projecto europeu e remeter-se ao aprofundamento das fundações e dos mecanismos de uma Europa ocidental e desenvolvida a 15 ou pouco mais do que isso. Mas a decisão política e estratégica foi a de seguir em frente, mais concretamente para Leste, com todos os riscos que daí adviriam para o que já fora conquistado em termos de construção europeia. Ao alargar a Leste, a União Europeia assumiu um compromisso de disponibilidade para com todos os países que estiveram debaixo da esfera soviética, criou expectativas e alimentou sonhos.

 

Perante a dimensão histórica do que estava em causa, o alargamento foi precedido de um longo e intenso debate – pelo menos entre os mais entusiastas e atentos aos assuntos europeus. Na altura, estiveram em confronto duas correntes de pensamento: aquela que sempre defendeu a política dos “pequenos passos” e uma União Europeia geográfica mais contida; e aquela que via no alargamento uma missão intrínseca ao espírito originário da ideia de Europa.

 

A segunda corrente acabou por prevalecer. A partir daqui, novos alargamentos seriam inevitáveis. A questão é que seriam alargamentos mais motivados pelo tal espírito de missão do que propriamente pela rigidez dos famosos “Critérios de Copenhaga”. E isso ficou bem evidente a 1 de Janeiro de 2007, quando a Bulgária e a Roménia aderiram à UE. As candidaturas daqueles dois países eram de tal forma frágeis – as quais pude constatar meses antes da adesão numa visita à Bulgária –, que Bruxelas impôs algumas condições extraordinárias de vigilância e controlo aos mais recentes membros. Esta medida foi adoptada na sequência do conturbado processo de adesão daqueles dois países, que não preencheram todos os requisitos da forma esperada. Em alguns dossiers, as autoridades de Sófia e de Bucareste não conseguiram adoptar as reformas necessárias, originando fortes avisos por parte da Comissão Europeia. As áreas da justiça e do combate à corrupção foram aquelas que mais preocupações geraram. Recorde-se que na altura, Paris e Londres pressionaram a Comissão para que endurecesse sua posição, perante aquilo que consideravam ser um caso “sério de corrupção” em dois países que começavam a estar fora de controlo. Também a Suécia e a Holanda partilharam desta opinião, ao acusarem a Comissão de não estar a cumprir com as suas obrigações, colocando assim em causa o processo de alargamento da União Europeia. Esta questão adensou-se depois de vários Estados-membros terem acusado Franco Fratini, o então comissário europeu da Segurança e Justiça, responsável pela aplicação de algumas reformas na Bulgária e Roménia, de estar a “fechar os olhos” ao que se passava nos dois países.

 

Bruxelas “fechou os olhos” a muita coisa, que era por demais evidente, tal como já tinha “fechado” em 2004, em nome de uma ideia virtuosa, é certo, mas que estava cada vez mais desprovida de realismo, criando desequilíbrios estruturais no seio do edifício da UE que ainda hoje se fazem sentir, nalguns casos até de forma bastante acentuada. A entrada da Croácia em 2013 acabou por ser um passo natural dentro desta linha estratégica. Tal como o início das negociações de adesão com o Montenegro (2012) e com a Sérvia (2014), a formalização da candidatura da rebaptizada República da Macedónia do Norte (2005) e da Albânia (2014), e os pedidos de adesão da Bósnia-Herzegovina (2016) e do Kosovo (2016). Estes últimos quatro países estão abrangidos pelo Acordo de Estabilização e Associação. Quanto à Turquia, iniciou formalmente as negociações de adesão em 2005, mas trata-se, sobretudo, de uma herança e “obrigação” histórica que remonta a 1963 e que em nada se enquadra no quadro do alargamento europeu aqui falado neste texto. Na verdade, nem Bruxelas nem os líderes europeus quiseram assumir frontalmente, nos últimos anos, a inviabilidade da adesão da Turquia à UE, optando, antes, por um “arrastar” interminável do processo negocial. Aliás, basta comparar os processos dos três países nessa condição de “negociações abertas” e constata-se que existem diferentes dinâmicas e motivações: Turquia, Sérvia e Montenegro.

 

Ancara começou a negociar em 2005, mas conseguiu abrir apenas 16 capítulos e encerrou provisoriamente um. Por seu lado, Belgrado iniciou negociações com Bruxelas quase dez anos depois, conseguindo abrir 17 capítulos e fechado provisoriamente dois. Mais expressivos são os números do processo negocial entre Bruxelas e Podgorica, iniciado em 2012, no qual foram abertos até ao momento 32 dos 35 capítulos de negociação, três dos quais foram já provisoriamente encerrados. De sublinhar ainda que a última vez que a União Europeia e a Turquia abriram um novo capítulo negocial foi em Junho de 2016, enquanto com Belgrado e Podgorica foi em Dezembro de ano passado.

 

Dos três processos negociais em curso, parece evidente que a longo prazo, a Turquia continuará de fora da UE. Porém, se poucos acreditam na concretização da adesão da Turquia, aceitando-se tacitamente o “congelamento” desse processo, as coisas mudam de figura quando se fala dos países dos Balcãs. As expectativas criadas depois do fim da Guerra Fria, do alargamento de 2004 – que incluiu um país balcânico pobre (a Bulgária) – e da entrada mais recente de uma nação da antiga Jugoslávia (Croácia), alimentam a esperança de outros Estados balcânicos entrarem na UE. Ainda recentemente, o primeiro-ministro do Montenegro, Dusko Markovic, dizia em entrevista à AP estar esperançoso que, após o “Brexit”, Bruxelas voltasse a dar mais atenção ao processo de alargamento.

 

Não obstante as fragilidades do seu sistema político, o Montenegro parece estar “moderadamente” bem encaminhado nos capítulos negociais, segundo o último relatório de acompanhamento. Para Bruxelas, o Montenegro, um país que nem chega a 700 mil habitantes, representa poucos desafios, um pouco à semelhança da Croácia quando aderiu, que acabou por se tornar uma espécie de estância tranquila de férias da Europa. É muito provável que o Montenegro seja o próximo a entrar na UE e até é previsível que o faça sozinho em 2025, como referido, de forma algo tímida, no compromisso da estratégia europeia para os Balcãs Ocidentais, aprovado pela Comissão em Fevereiro de 2018.

 

Mais complicado é o processo da Sérvia, apesar de este documento também apontar a data de 2025 para a sua adesão plena. Nos últimos anos, Bruxelas não tem tido particular entusiasmo nem empenho no processo de adesão da Sérvia, por razões que vão muito além das análises dos relatórios técnicos de acompanhamento, nomeadamente do mais recente. Há vontade por parte da Sérvia para aderir à UE, como aliás é referido pelos seus líderes e como pude confirmar no ano passado numa visita àquele país. E até existem condições de partida para isso, quando comparadas, por exemplo, com as da Bulgária em 2004. Belgrado é uma cidade cosmopolita, culta, vibrante e em crescimento acentuado. O resto do país é mais rural, mas nem por isso se deve descurar a sua importância estratégica enquanto placa giratório na região, que será potenciada com a conclusão do ambicioso projecto do Corridor X Highway, uma auto-estrada que atravessará o país e que será integrada na Rede Trans-Europeia Rodoviária (TERN).

 

É certo que a Sérvia apresenta grandes debilidades ao nível de infra-estruturas e de solidez nas suas instituições, mas tem todo o potencial para colmatar essas fragilidades, tendo vindo a crescer economicamente e a apresentar melhorias significativas em várias áreas. No entanto, há uma questão que parece ser inultrapassável no actual processo negocial, que tem a ver com o nacionalismo sérvio e com a herança trágica dos vários conflitos da ex-Jugoslávia. As feridas mantêm-se mais vivas do que se possa pensar e as lideranças políticas continuam a veicular um discurso ulta-nacionalista que escapa ao radar da imprensa de referência europeia, onde constantemente se enaltecem os actos criminosos praticados durante a guerra da Bósnia (1992-95), se endeusam as lideranças militares e se alimenta constantemente uma retórica de exortação étnica. Esta questão é particularmente exacerbada na República Srpska, Bósnia Herzegovina, onde Belgrado faz sentir diariamente a sua retórica política contra os vizinhos muçulmanos bósnios. Ao mesmo tempo, Belgrado recusa qualquer tipo de moderação política exigida por Bruxelas. Perante isto, como enquadrar um país na União Europeia onde uma parte da população considera Milosevic um herói? Onde se enaltecem líderes militares como Karadzic e Mladic, que praticaram crimes hediondos? Onde existe uma realidade alternativa dos acontecimentos de Srebrenica? Onde não se reconhece o Kosovo independente?

 

É sobretudo por estas razões que não se perspectiva a adesão da Sérvia à UE em 2025. Como ainda há uns meses referia Srdjan Majstorović, presidente do European Policy Centre, um think tank que tem como objectivo acompanhar o processo de adesão da Sérvia: “O ano de 2025 não é impossível, mas, neste momento, não é muito realista porque nenhum dos lados se está a esforçar para isso.”

 

O entusiasmo de outrora, manifestado por outros líderes noutros tempos, deu lugar à prudência e até mesmo ao cepticismo por parte de alguns Estados-membros. Bruxelas vai cumprindo o calendário dentro dos seus compromissos, sem mostrar muita vontade em acelerar processos. “Ninguém irá dizer em alto e bom som que está contra o alargamento, faz parte do jogo político, mas há uma forte resistência no seio dos Estados-membros da UE, para que o alargamento não aconteça até que haja uma reconfiguração das relações poder e que novos modelos sejam implementados”, disse há umas semanas o recém-eleito redactor do Parlamento Europeu para o processo de adesão do Montenegro.

 

Essa perda de entusiasmo ficou bem evidente com a decisão recente do Presidente francês, Emmanuel Macron, que, no Conselho Europeu de Outubro último, vetou a formalização do início das negociações com a Macedónia do Norte e a Albânia, sob os argumentos de que a UE deve, primeiro, reformar-se internamente, e que se deve rever o modelo das condições dos futuros novos Estados-membros antes de se avançar para um novo alargamento. Paris esteve sozinho no veto à Macedónia do Norte, mas contou com a companhia da Holanda e da Dinamarca no caso da Albânia, ficando, assim, inviabilizado o princípio da unanimidade no voto no Conselho Europeu pelo qual se rege o processo de alargamento.

 

O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, falou num “erro histórico” e sublinhou que “a União Europeia deve respeitar os seus compromissos”. Também o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, não escondeu o seu desalento: “Fizemos promessas a esses países.” E acrescentou: “Hoje gostaria de enviar uma mensagem aos nossos amigos da Macedónia do Norte e da Albânia: por favor, não desistam! Compreendo perfeitamente a vossa frustração, porque vocês fizeram a vossa parte, e nós não. A UE é uma entidade política complexa e é verdade que, às vezes, demora muito tempo a decidir. Mas não tenho qualquer dúvida que um dia irão torna-se membros de pleno direito da União Europeia”.

 

Os vetos francês, holandês e dinamarquês foram de, certa maneira, inesperados, porque romperam com a tradição europeia desde o final da Guerra Fria e que culminou com os alargamentos de 2004, 2007 e 2013. Como dizia o FT em editorial, os argumentos de Macron têm validade, o problema é que criaram uma situação que poderá afectar a credibilidade da UE no seu relacionamento com os países limítrofes. Além disso, é importante notar que tanto a Macedónia do Norte como a Albânia não estão pior nem melhor do que estavam a Bulgária e a Roménia quando iniciaram as suas negociações. O veto isolado de Paris provocou uma autêntica desilusão na Macedónia do Norte, onde o primeiro-ministro reformista, Zoran Zaev, sentindo-se traído e fragilizado, convocou de imediato eleições antecipadas, abrindo espaço para instabilidade política naquele país. Na Albânia, que contou com o veto triplo de Paris, Haia e Copenhaga, a reacção foi menos dramática, mas nem por isso Tirana se coibiu de enviar vários “recados” para Bruxelas.

 

Não só os líderes europeus, em tempos idos, fizeram promessas, como também criaram expectativas e alimentaram esperanças. Legitimamente, a Macedónia do Norte e a Albânia esperavam ver agora os seus esforços compensados, tal como outros viram, e iniciar as negociações dos vários capítulos com vista à adesão. A França, a Holanda e a Dinamarca (estas duas parcialmente) frustraram abruptamente essas expectativas, surpreendendo vários líderes europeus, incluindo a alemã Angela Merkel, que não escondeu o seu desagrado pela atitude daqueles três parceiros. O discurso oficial neste momento em Bruxelas é de que foi apenas um revés temporário, perspectivando-se que a curto prazo se criem as condições para que na próxima cimeira de líderes da União Europeia, já com um novos líderes na Comissão Europeia e no Conselho Europeu, se possa reencaminhar a Macedónia do Norte e a Albânia para o trajecto da adesão. Resta saber se a França se voltará a entusiasmar com uma Europa mais alargada aos Balcãs.

 

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.