Srebrenica
Memorial/cemitério de Srebrenica no passado dia 27/Foto: Alexandre Guerra
Embora há uns anos já estivesse estado num país dos Balcãs, ainda como jornalista numa visita a uma central nuclear na Bulgária, a verdade é que desde os anos 90, com o desmembramento da ex-Jugoslávia e o eclodir do conflito balcânico, o meu interesse por aquela região foi crescendo. Estudei na universidade com alguma intensidade o enquadramento histórico e político daquela zona, numa altura em que se começava a colocar em prática os Acordos de Dayton, celebrados no final de 1995. Há muito que tinha particular vontade de ir conhecer aquela realidade de perto, mais concretamente a Sérvia e a Bósnia, esta última composta por duas entidades: a Federação Bósnia (croata-muçulmana) e a República Srpska (sérvia ortodoxa). Perceber coisas que os livros não me diziam e tentar compreender alguns contornos na relação entre pessoas que outrora fizeram parte de um mesmo país evoluído cultural e industrialmente, mas que não foram capazes de evitar a maior barbaridade na Europa desde a IIGM. E nessa óptica, Srebrenica ficará para sempre com a maior vergonha europeia dos últimos 70 anos, como o maior falhanço da comunidade internacional em solo europeu.
Por esta razão, das minhas andanças pela Sérvia e Bósnia na última semana, a visita a Srebrenica (que outrora tinha sido um enclave muçulmano) representou algo de especial. Não apenas pelo interesse histórico e político, mas sobretudo pelo lado humano. Muito teria para escrever, tanta foi a informação recolhida e que desconhecia (nada como ir aos sítios). Mas, vou deixar os factos de lado, porque o ímpeto para transmitir o que me perpassou pela alma, depois de tudo o que vi e ouvi, é mais forte. Das aulas da universidade, das leituras que tinha feito, das notícias que fui acompanhando ao longo dos anos, conhecia bem a história do genocídio de Srebrenica, uma localidade remota na parte sérvia (República Srpska) da Bósnia, onde há muito queria ir pelo que lá aconteceu e que jamais deve ser esquecido. Entre 11 e 16 de Julho de 1995, naquele enclave muçulmano em zona sérvia ortodoxa, foram assassinados mais de 8 mil bósnios muçulmanos (bosniaks), num massacre sistematizado, comandado militarmente por Ratko Mladic, sob as ordens políticas de Radovan Karadzic. Tudo aconteceu perante a impotência do tristemente célebre contigente holandês de capacetes azuis da ONU estacionado em Potacari, a poucos quilómetros de Srebrenica (para a história, o contingente holandês ficou associado negativamente a estes acontecimentos e ainda hoje, por um certo sentimento de culpa, muitos dos seus soldados acompanham a título pessoal as famílias das vítimas. O próprio Governo holandês apoia diversos projectos solidários. Mas vale a pena estudar com muita atenção tudo o que falhou ao nível da hierarquia de comando da ONU, para se perceber que muito podia ter sido feito para se evitar aquele genocídio, já para não falar que as "rules of engagement" dos soldados holandeses nem sequer lhes permitia disparar em legítima defesa).
Desde a II GM que o mundo não via imagens daquelas, uma campanha brutal de limpeza étnica em nome de um projecto nacionalista. Tenho bem presente aqueles terríveis acontecimentos e, por isso, o que mais me impressionou foi confrontar as imagens que tinha guardadas na memória com os locais aparentemente normais onde estive e pensar que tudo aconteceu só há 23 anos, bem perto do coração da Europa (Viena a Sarajevo não chega a 800 quilómetros). Por aqueles locais cometeu-se um extermínio em massa e é muito inquietante lidar com essa "normalidade". Até a empresa de autocarros que transportou sistematicamente centenas de bosniaks para os locais de extermínio ainda opera. Está lá! E perguntamo-nos: Como é possível? É difícil explicar essa "normalidade"... A verdade é que nada pode ser normal numa cidade quase fantasma, onde dantes viviam 40 a 50 mil pessoas e depois da limpeza étnica, através do extermínio ou de abandono forçado, ficaram apenas 12 mil.
Impressionou-me o que vi e emocionou-me o testemunho doloroso, ao longo de mais de uma hora, de um homem, na altura criança, que escapou à morte, mas perdeu o pai e o irmão no genocídio. E o mais tocante é que o mesmo surge de passagem num documentário, onde se mostram imagens da altura, com colunas de centenas de pessoas a fugirem de Srebrenica para localidades circundantes. E lá está ela, uma criança assustada, no meio de um conflito que servia apenas um propósito de Slobodan Milosevid: criar entre a Sérvia e a República Srpska uma homogeneidade étnica e religiosa. E o mais dramático é que comparando-se os mapas demográficos de antes de 1992 e depois de 1995, constata-se que a ideia de "grande" Sérvia protagonizada por Milosevic fez uma parte do caminho.
Hoje, com uma certa descontracção e ignorância, muito se fala de nacionalismos e de líderes nacionalistas e, por isso, é que trago aqui este texto, porque as pessoas esquecem rapidamente e, muitas vezes, pouco aprendem com a História. O memorial e cemitério das vítimas do genocídio de Srebrenica é impressionante e coloca-nos perante o resultado da mais vil e perversa obra de projectos políticos nacionalistas. Todos os anos, em Julho, são enterrados novos corpos identificados que, entretanto, vão sendo exumados das muitas valas comuns que circundam a área de Srebrenica. Depois de ver Srebrenica e em memória aos que morreram, é cada vez mais forte a minha convicção de que extremismos e nacionalismos devem ser combatidos com todas as nossas forças. Para que, como disse o imã de Potacari na inauguração do memorial/cemitério a 11 de Julho de 2001, "That Srebrenica never happen again, to no one and nowhere".