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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

As "primaveras" árabes (3)

Alexandre Guerra, 10.06.11

 

Campo de refugiados sírio em Yayladag, Turquia/Foto: Daniel Etter/The New York Times

 

A “Primavera” árabe em curso nalguns países do Médio Oriente suscitou, há dias, uma interessante e acesa conversa entre o autor destas linhas e uma jornalista, com experiência recente no terreno num daqueles cenários de revolta.

 

Basicamente estavam em confronto (pacífico) duas perspectivas sobre a tão proclamada e aclamada “Primavera” árabe. Não eram necessariamente inconciliáveis, mas pressuponham diferentes enquadramentos doutrinários em relação à forma de se ler as revoluções de rua que eclodiram ao longo dos últimos meses na Tunísia, no Egipto, na Líbia, no Iémen, no Bahrein e na Síria.

 

A interlocutora do Diplomata, entusiasta destes movimentos de insurreição, vê neles uma expressão legítima e sincera de emancipação popular, de libertação dos povos oprimidos face aos seus regimes despóticos.

 

Uma perspectiva válida de quem em plena praça Tahrir “sentiu” e “auscultou” as emoções, os dramas, a resistência pacífica das gentes, os cordões humanos de solidariedade e de protecção dos camaradas de luta. É por isso que, conta quem viu, foi algo especial.

 

Esta foi aliás uma ideia em que a imprensa internacional e a opinião pública embarcaram, a de uma “Primavera” revolucionária pacífica e ordeira, fruto da vontade comum e do interesse geral, que se fez sentir na Tunísia e no Egipto. Ora, na opinião do Diplomata esta é uma leitura enublada da realidade.

 

Veja-se o seguinte: Parece que aos olhos do mundo, nas revoluções destes dois países só há a lamentar a violação da repórter norte-americana da CBS, Lara Logan (uma lamentável situação que, na verdade, resulta da lógica de multidão em fúria que poderia acontecer em qualquer parte do mundo). Não fosse este episódio de drama, a Tunísia e o Egipto teriam vivido revoluções “limpas”, “arrumadinhas”, como a opinião pública internacional gosta hoje de olhar para este tipo de movimentos, esquecendo-se que, normalmente, estes fenómenos contam sempre com dinâmicas reaccionárias.

 

O Diplomata, mais perverso na sua análise, lembra que as revoluções implicam quase sempre rupturas, choques, e com isso a violência, o derrame de sangue e os mortos. O que se passou na Tunísia e no Egipto não fugiu a esta lógica, apesar do deslumbramento primaveril com que líderes políticos e comunidade internacional olharam para aquelas revoluções.

 

De acordo com um relatório das Nações Unidas, a revolução da Tunísia provocou 219 mortos e 510 feridos. Números pouco lembrados pela imprensa internacional e praticamente desconhecidos pela opinião pública. Também no Egipto, poucos citaram o relatório divulgado em Abril por uma comissão daquele país, no qual se falam em quase 900 mortos e cerca de 6500 feridos durante a “Primavera” egípcia.

 

O entusiasmo da opinião pública internacional e a ingenuidade dos líderes políticos ao acolherem imprudentemente as revoluções na Tunísia e no Egipto, sem pensarem realisticamente nas suas consequências internas e no sistema internacional, passou rapidamente ao embaraço quando as coisas começaram a correr mal na Líbia, no Iémen e na Síria.

 

As "primaveras" árabes (1)

 

As "primaveras" árabes (2)

 

As "primaveras" árabes (2)

Alexandre Guerra, 06.06.11

 

Rebeldes líbios na cidade de Yafran/Foto: Youssef Boudlal/Reuters

 

Quando a Europa revolucionária fervilhava em 1848, também o Médio Oriente era assolado por uma vaga de revoltas, provocando autênticos terramotos políticos, relembra na última edição da Foreign Affairs, Jack A. Goldstone, professor na George Mason University’s School of Public Policy.

 

As razões por detrás destas revoluções não eram exactamente as mesmas das europeias, sendo que em países como Marrocos e Oman, o elevado preço dos alimentos ou as altas taxas de desemprego levaram as pessoas para a rua. Na Europa, as motivações foram sobretudo políticas e ideológicas.

 

Seja como for, é interessante constatar que existe algum paralelismo entre as revoltas que nos últimos meses se abateram sobre alguns Estados do Médio Oriente (e que muitos analistas e jornalistas insistem em classificar de inéditas) e aquilo que aconteceu em 1848 na mesma região.

 

No entanto, Jack Goldstone identifica uma diferença importante. Diferença que não tem a ver com os factores que espoletaram as revoluções, mas antes com os alvos a quem se dirigiam.

 

Em 1848, os povos de alguns países do Médio Oriente insurgiram-se contra as monarquias tradicionais, porque era essa a natureza dos seus regimes.

 

Ora, em 2011 os alvos da contestação são sobretudo “’sultanistic’ dictatorships”, regimes que assentam na figura de uma só pessoa, empenhada na concentração de poderes e de riqueza, na criação de uma rede dependente de interesses, na despolitização e empobrecimento da sociedade e na sua perpetuação na liderança.

 

Como já aqui ficou demonstrado, as revoltas de rua do Médio Oriente dos últimos meses não são uma realidade inédita. Porém, é inegável que pela primeira vez o povo ousou desafiar o poder do regime dos “sultões”, nalguns casos encontrando pouca resistência, como aconteceu na Tunísia ou no Egipto, noutros, deparando-se com movimentos reaccionários violentos, como se está a verificar na Líbia e na Síria.

 

As "primaveras árabes" (1)

 

As "primaveras" árabes (1)

Alexandre Guerra, 02.06.11

 

 

Corria o ano de 1919, depois da Grande Guerra, e os povos agarravam com entusiasmo o pacifismo de Woodrow Wilson, materializado nos seus Catorze Pontos.

 

Obviamente que o contágio dessa corrente pacifista não contou com o "empurrão" da televisão e muito menos das redes sociais, mas com a ajuda do telégrafo, a retórica daquele Presidente americano propagou-se a várias regiões do Mundo, nomeadamente, ao Médio Oriente e ajudou a inflamar os ânimos, imagine-se, nas ruas do Egipto, da Tunísia e da Líbia.

 

Na altura, tal como agora, os povos vieram para rua em diferentes circunstâncias e contextos. Como observa Lisa Anderson, presidente da Universidade Americana no Cairo, as motivações na Tunísia, no Egipto e na Líbia eram diversas, consequência, dos diferentes estádios de desenvolvimento de cada um desses mesmos Estados.

 

É por isso que quem olhar para a actual “Primavera” como uma onda de revolta inédita nas ruas árabes, é o mesmo que estar a ignorar a História e todos os movimentos de desobediência civil alimentandos pelas redes nacionalistas nos anos a seguir ao fim da I GM.

 

Na última edição da Foreign Affairs, Anderson chama a atenção para este facto e considera que as revoltas dos últimos meses na Tunísia, no Egipto e na Líbia, além de não serem novidade, não são necessariamente resultado da globalização ou dos fenómenos das redes sociais.

 

Como foi logo referido no início deste texto, há sensivelmente 90 anos os povos daqueles Estados vieram para as ruas para se manifestarem sobre problemáticas igualmente importantes para o futuro das suas sociedades. Por exemplo, os tunisinos manifestavam-se pela restauração da constituição, entretanto suspensa.

 

Já os egípcios revoltaram-se para exigirem a queda do Governo e a libertação nacionalista face ao império britânico. E na Líbia, os vários líderes tribais e provinciais batiam-se contra a presença italiana naquele país.

 

Tudo isto foi feito sem Internet ou redes sociais, embora (e ninguém seja ingénuo) estes movimentos não tenham nascido por combustão espontânea.

 

As “networks” nacionalistas árabes, com uma base doutrinária sólida e bem organizadas nas estruturas, desempenharam um papel preponderante. Apesar disso, na altura, tal como agora, não se podia falar numa vaga homogénea árabe.

 

Aliás, a tentação de se falar em “Primavera” árabe como se o Sol brilhasse da mesma maneira para todos não corresponde à realidade e acaba por toldar toda a análise dos fenómenos sociais e políticos que se verificam no terreno.

 

No xadrez da geoestratégia Moscovo e Washington jogam interesses no Quirguistão

Alexandre Guerra, 08.04.10

 

Vyacheslav Oseledko/Agence France-Presse/Getty Images

 

O conflito que eclodiu ontem no Quirguistão e que já provocou mais de 40 mortos coloca no xadrez da geoestratégia um confronto entre Washington e Moscovo. É o palco onde se volta a um jogo de influência e poder, fazendo relembrar a lógica de confrontação de potências no século XIX naquela região entre a Rússia e o então Império Britânico.

 

A oposição, que mais uma vez  se cansou da corrupção, do aumento dos preços e da pobreza (um dos países mais pobres da Ásia Central), espoletou uma revolução em três cidades com o objectivo de derrubar o actual regime e colocar no seu lugar um “Governo popular”.

 

Os efeitos imediatos conduziram à demissão do primeiro-ministro Daniyar Usenov, embora o Presidente Kurmanbek Bakiyev se mantenha no poder, até ao momento com o apoio de Washington e de Moscovo.

 

No entanto, isto não quer dizer que a Casa Branca e o Kremlin partilhem a mesma visão e interesses sobre o enquadramento geoestratégico do Quirguistão. Na verdade, dificilmente os Estados Unidos e a Rússia conseguirão harmonizar interesses estratégicos a longo prazo na Ásia Central e muito menos coabitarem fisicamente naquela zona.

 

O Quirguistão surge assim como um palco estratégico e fundamental para os Estados Unidos e a Rússia jogarem os seus interesses. A BBC News referia que o Quirguistão era uma espécie de “hub” para os planos das superpotências.

 

Caso se efective a queda de Bakiyev, Washington e Moscovo não perderão tempo a mobilizar uma ofensiva diplomática e política para alinhar o rumo da revolta de acordo com os interesses de cada um.

 

Tal como acontece noutros territórios pertencentes ao antigo Império Soviético, qualquer movimentação norte-americana naquelas zonas representa uma relação de forças constante com Moscovo. A problemática do alargamento da NATO aos antigos países do Pacto de Varsóvia e às repúblicas da defunta URSS é o melhor exemplo dessa dinâmica.

 

Mas, também no âmbito da guerra no Afeganistão se foram criando focos de tensão em países mais remotos da Ásia Central, com os quais historicamente os Estados Unidos nunca tiveram qualquer proximidade.

 

Ora, em poucos anos Washington não só se aproxima de alguns países da Ásia Central e do Cáucaso, através de uma diplomacia pública mais agressiva, como consegue literalmente colocar homens no terreno, através de instalações militares de apoio à guerra no Afeganistão.

 

O Quirguistão é um bom exemplo, visto que os Estados Unidos têm a base militar de Manas muito importante nos esforços de guerra no Afeganistão. Base essa que ganhou ainda mais relevância depois do encerramento das instalações militares americanas no Uzbequistão.

 

Assim, no actual quadro político, os Estados Unidos têm muito a ganhar ou, pelo menos, pouco têm a perder com a manutenção do actual chefe de Estado no poder. Embora Bakiyev tivesse ameaçado no ano passado encerrar a base, depois de Moscovo ter prometido um pacote de ajudas significativas em troca da saída dos americanos do país, o Presidente Barack Obama acabou por convencer o seu homólogo do Quirguistão a assegurar a presença daquelas instalações.

 

Perante isto, Washington tem interesse na manutenção do actual “status quo”, não sendo por isso de estranhar as declarações imediatas da Administração de apelo à vigência da lei e à confiança de que o Executivo tinha a situação controlada.

 

Por outro lado, a Rússia tenta o mais possível puxar para a sua esfera de influência o regime de Bishkek, sempre numa lógica expansionista sobre toda a sua área de influência histórica. Uma das formas de fomentar essa proximidade e, por vezes, subjugação tem sido através dos elos com as populações russas que vivem nesses países e regiões. Acontece assim, por exemplo, nas repúblicas do Cáucaso Norte, na Geórgia ou na Ucrânia. A isto acrescenta-se a pressão energética, económica e militar através da qual Moscovo consegue, nalguns casos, manter um grau de influência considerável.

 

Relembre-se que o actual chefe de Estado do Quirguistão é resultado de uma revolta de rua em 2005, conhecida como a Revolução das Túlipas, surgindo Bakiyev na altura como a esperança para a democratização e “limpeza” de um pais que, desde a implosão da URSS em 1991, nunca se libertou dos tiques autoritários da governança política.

 

Tal como em tantas outras revoluções “coloridas” ou “floreadas” que nos últimos anos se têm verificado em países do antigo Império Soviético, o idealismo rapidamente dá lugar à desilusão e à frustração. As reformas ficam pelo caminho e as promessas por cumprir. Bakiyev, que há uns anos era visto como um farol para a democracia, é hoje criticado e é lhe exigido que abandone o poder.

 

Washington e Moscovo estão perfeitamente cientes desta lógica de mobilização de massas espontânea com o objectivo de provocar revoltas e “fabricar” líderes salvadores, mas sabem também que são processos pouco sustentados e que raras são as vezes onde há uma mudança efectiva de paradigma de governação.

 

Assim, numa perspectiva geoestratégica realista (muitos diriam cínica), para Washington e Moscovo o importante é aproveitar estes momentos de ruptura e, por vezes, até de euforia, para fomentarem alinhamentos políticos sólidos com o eventual “senhor que se segue”.