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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

A academia

Alexandre Guerra, 08.05.19

 

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"A Escola de Atenas", Rafael, 1509-11, Palácio Apostólico, Vaticano

 

Numa das galerias adjacentes à Capela Sistina, no Palácio Apostólico do Vaticano, encontra-se uma das mais famosas pinturas renascentistas: “A Escola de Atenas”. Há quem diga que é a grande obra-prima de Rafael por representar tão bem a essência do Renascimento, uma época de luz, conhecimento e inovação. As figuras que supostamente lá estão representavam à época tudo o que de virtuoso tinha a Humanidade. Filósofos, matemáticos, historiadores, políticos, religiosos, militares, engenheiros, artistas, todos eles na vanguarda das suas artes e ofícios.

 

Poderemos considerar que o fresco de Rafael não simbolizará tanto o conhecimento em si, mas antes o processo para a produção desse mesmo conhecimento. Mais do que um espaço físico, a “Escola de Atenas” pode ser vista como um conceito, como um paradigma para a construção de saber. Ao estar a representar academia de Atenas, Rafael está a enfatizar a importância da troca de conhecimento e de experiências entre pessoas das mais variadas áreas do saber e da vida, do intelectual ao artístico, do filósofo ao político, do artífice ao militar. No seu âmago, trata-se de um princípio inerente à essência da “Escola de Platão”.

 

Hoje, tal como dantes, a academia é (ou deve ser) um lugar privilegiado de produção de conhecimento e de debate. Deve ser um fórum de vanguarda onde se (re)formulam doutrinas. As suas gentes, professores e alunos, devem ter liberdade de pensamento, sem dogmas e preconceitos, independentemente das suas posições políticas e convicções ideológicas. A academia deve ser um espaço de propagação de ideias e tendências, onde o espírito de arrojo deve estar aliado à humildade perante o saber dos outros.

 

Para a academia cumprir a sua função de excelência não pode ficar fechada sobre si própria, estanque ao mundo exterior, correndo o risco de asfixiar a sua criatividade intelectual. Universidades e centros de saber só se realizam na sua missão quando se enquadram e servem a pólis, ao procurarem dar respostas inovadoras aos desafios que se lhe impõe. Professores e alunos aprendem e ensinam-se mutuamente, cumprindo cada um o seu papel com o talento possível. Mas essa relação não deve ficar por aqui, nem se deve perpetuar no tempo circunscrita à mesma academia, anos e anos a fio, grau a grau, até se chegar ao topo da carreira, correndo-se o risco dos sistemas universitários ficarem resumidos a um micro-cosmos, dominado por alinhamentos ideológicos, partidários ou de interesses de proximidade.

 

Esta é uma realidade que se verifica nalguns polos universitários em Portugal, onde as elites de algumas destas universidades se perpetuam à frente dos mecanismos que, supostamente, originam a produção de saber e conhecimento. Facilmente se identifica no seio destes meios académicos correntes dominantes que partilham determinadas afinidades, numa lógica tribal fechada, de quase “endogamia académica”, em que pouco ou nada se expõem ao mérito e concorrência externas. Consequência: a academia fica desvirtuada no seu propósito, deixando de dar lugar aos melhores e às ideias de vanguarda, para servir de albergue aos “académicos da casa”, que sempre viveram para esse (e naquele) sistema.

 

Ainda recentemente, o Público abordava precisamente o tema da “endogamia académica” e concluía que este problema persiste na academia portuguesa. Aliás, aquilo que o jornal descreve como “situações de imobilidade profissional”, recorrendo ao relatório da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) do ano lectivo de 2015-2016 sobre endogamia académica, manifestam-se no facto de cerca de 70% dos docentes das universidades públicas portuguesas se doutorarem na mesma instituição onde leccionam.

 

Por exemplo, nas áreas das Ciências Sociais (Relações Internacionais e Ciência Política) e Comunicação, aquelas que o autor destas linhas melhor conhece, é muito comum ver académicos e investigadores a desenvolverem uma carreira de 10, 15, 20 anos numa mesma instituição, sem qualquer contacto com outras realidades académicas, sociais e profissionais. É certo que muitos destes académicos detém um determinado grau de conhecimento teórico que não pode ser descurado, mas fica-se por aqui o seu contributo em termos de produção de novo saber e isso explica-se, em parte, pela ausência de outras componentes que vão além da universidade.

 

No artigo do Público aqui referido, Pedro Santa-Clara, professor na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, salientava precisamente essa consequência, ou seja, “o facto de as pessoas não terem mundo, não terem alternativas e terem crescido sempre no mesmo sistema”. Dizia ele que “o sistema torna-se impermeável à inovação e a novas ideias”.

 

Essa é uma das maiores críticas que se faz à academia portuguesa quando comparada com outros meios universitários, nomeadamente o anglo-saxónico. Nalgumas universidades nacionais existe um modelo instalado que privilegia, por um lado, um determinado conhecimento estático, e, por outro, determinadas figuras, algumas delas catapultadas para a condição de estrela através da sua mediatização. Mas, efectivamente, através de um olhar crítico e científico constata-se que a dimensão da sua obra é, por vezes, mediana, para não dizer medíocre. É um sistema que funciona como uma “bolha”, à imagem de outros sistemas da nossa sociedade, e que fomenta um “status quo” conservador, muitas vezes alimentado pela arrogância e falta de humildade.

 

Uma realidade que foi apontada no recente livro “Cientistas Portugueses”, do bioquímico e antigo jornalista David Marçal, no qual traça um retrato de quem faz investigação científica no país. Editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, o jornal Público fez a pré-publicação de um capítulo precisamente dedicado “aos cientistas que vivem fechados nessas bolhas”.

 

E neste capítulo lê-se o seguinte:

 

“Os investigadores Arcadi Navarro e Ana Rivero fizeram um grande estrondo em 2001 quando publicaram na prestigiada revista Nature uma carta que quantificava o fenómeno da contratação de professores universitários com base em critérios de proximidade social em vez de qualidade científica. A bem instalada lógica de que “mais vale bêbado conhecido do que alcoólico anónimo.”

 

Mais à frente, David Marçal escreve:

 

“Em Dezembro de 2006 entrevistei Arcadi Navarro (na altura tinha interrompido o meu doutoramento para participar no programa Cientistas na Redacção, integrado na secção de Ciência do PÚBLICO durante três meses). A entrevista foi a propósito de um debate sobre mobilidade e endogamia nas universidades portuguesas, que decorreu no Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras. […]Perguntei a Arcadi Navarro quais eram as consequências da endogamia nas universidades: ‘São horríveis. As pessoas em vez de ciência estão a fazer política de corredores e a universidade torna-se uma maneira de arranjar salários para os amigos’.”

 

Lê-se ainda:

 

“Damos um salto a Portugal, ao ano lectivo de 2015-2016. […]De acordo com os dados deste relatório da DGEEC, a Universidade de Coimbra é a campeã nacional da endogamia, com 80% de docentes doutorados na mesma instituição em que leccionam. Seguem-se a Universidade dos Açores e a Universidade de Lisboa (ambas com 74% de endogamia), a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (73%), a Universidade do Porto (72%), a Universidade de Aveiro (64%), a Universidade Nova de Lisboa (61%), a Universidade da Beira Interior (57%), o ISCTE (49%), a Universidade da Madeira (48%) e a Universidade do Algarve (40%). […] Globalmente, cerca de 70% dos professores das instituições de ensino superior em Portugal doutoraram-se na mesma faculdade onde estão empregados. Sete em cada dez vezes, um candidato interno ganha o concurso para a entrada no quadro. A menos que achemos que os candidatos vindos de fora são, por qualquer motivo, de facto muito maus, temos que presumir que há uma viciação sistemática dos concursos a favor dos candidatos internos.”

 

Toda esta informação vem apenas encorpar a noção pouco vanguardista que muitos têm da academia portuguesa. Há excepções? Claro que sim. Há exemplos de produção de conhecimento inovador? Sem dúvida. Temos académicos e investigadores de excelência? Seguramente. O problema é que, no geral, as grandes universidades portuguesas continuam a ser um reflexo da sociedade, não sendo de estranhar que se encontrem nelas os mesmos males e “jogos de interesses” que assolam outros sectores. É caso para dizer que a academia portuguesa está muito afastada do espírito virtuoso representado na “A Escola de Atenas” de Rafael, onde os melhores dos melhores se reuniam na produção de saber de vanguarda.

 

A arte dos génios enquanto factor de poder ao serviço do Vaticano

Alexandre Guerra, 11.12.09

 

"Julgamento Final", Miguel Ângelo, Capela Sistina

 

Anda este autor por terras romanas, quando em plena Cidade do Vaticano saltou à reflexão a problemática do poder: a sua conquista, a sua manutenção e a sua projecção. Uma associação que surge naturalmente para quem conhece minimamente a história interna daquele micro-estado e a sua influência nas relações internacionais desde há séculos.

 

O Vaticano, enquanto objecto de estudo, é um caso particularmente interessante e diferenciado dos demais Estados do sistema internacional, uma vez que o exercício e a projecção do poder adquirem contornos específicos em relação a qualquer outra nação.

 

Ao longo da História, o Vaticano fez da projecção de poder a sua missão e com isso conseguiu capacidade de influência sem paralelo. Houve em tempos, longínquos é certo, que cabia ao Vaticano a declaração de criação ou de independência de um Estado, como aliás é exemplo Portugal através de uma bula papal do século XII.

 

O poder do Vaticano no sistema internacional era de tal forma evidente que mesmo sem um único batalhão, o Papa mereceu sempre o respeito de todos os chefes de Estado como se tivesse a apoiá-lo vários exércitos. Esta afirmação de poder esteve sempre presente no Vaticano, o qual fez de todos os seus actos manifestações de grandeza.

 

 

Ao analisar-se cuidadosamente as transcendências artísticas daquele micro-estado, chega-se à conclusão que, de uma forma mais ou menos directa, tudo foi feito para servir o poder e influenciar as nações e pessoas. Os próprios chefes de Estado, neste caso os Papas, alimentaram esse factor de poder, através da sua auto-glorificação.

 

Por exemplo, quando o Papa Júlio II encomendou a Miguel Ângelo o seu túmulo, estava a depositar nas mãos daquele artista o reforço do poder papal. Esta transcendência não estava ao alcance de qualquer outro chefe de Estado, com raras excepções na história. Acabou por ser um projecto inacabado, mas nem por isso deixou de ser uma obra de importante simbolismo.

 

A arte enquanto continuação da política do Vaticano por outros meios (Clausewitz que desculpe o abuso por parte desta autor) tem a sua expressão máxima nos frescos da Capela Sistina, com as célebres cenas da Génesis (tecto) e o sublime Julgamento Final (parede) que elevaram o conceito de beleza à perfeição.

 

"A Escola de Atenas", Rafael, Museu do Vaticano

 

Até então nunca ninguém tinha visto tal realização, e no dia em que o Julgamento Final foi destapado, o próprio Miguel Ângelo percebeu que se tinha superado a si mesmo, como refere Giorgio Vasari, autor daquele que é considerado o primeiro livro de história da arte e seu amigo.

 

Com o contributo do génio florentino, o Vaticano dotou-se de importantes “factores de poder”, que embora não contemplados nos manuais de ciência política (já que não se está a falar de factores como poder militar, território ou recursos), foram fundamentais para dotar aquele micro-estado de uma influência poderosa.

 

É aliás por detrás da imponência do Vaticano e das suas inúmeras transcendências artísticas que se vislumbra a expressão de poder para influenciar e projectar a autoridade papal. É bastante interessante notar que alguns frescos mais relevantes podem ser vistos nalgumas galerias mais pequenas próximas da Capela Sistina, nas quais Rafael assume claramente temas políticos, como a afirmação de Roma face a potências estrangeiras, concretamente a França e o Império Otomano.

 

Cúpula da Basílica de São Pedro

 

Também a projecção da Basílica de São Pedro e da sua estrondosa cúpula, resulta de uma vontade de afirmação do Vaticano face aos fiéis em todo o mundo. Construída sobre a antiga basílica, na qual sob o altar se encontram os restos mortais de São Pedro, um dos 12 apóstolos de Jesus Cristo, e o primeiro Papa do Cristianismo, foram precisos mais de 100 anos para concluir o projecto. Miguel Ângelo (cúpula), Rafael e Bramante foram alguns dos nomes que contribuíram para tamanha realização, ostentado em pleno a imensidão do poderio daquele Estado.

 

Ao andar pelos corredores do Vaticano, o Diplomata não viu apenas em Miguel Ângelo e Rafael dois expoentes máximos da pintura renascentista (reconhecidos como tal ainda muito novos), encontrou dois homens ao serviço do poder.

 

A imponente estátua de Moisés sobre o túmulo do Papa Júlio II

 

Nesta lógica de servidão, e uma vez que nestes círculos surgem intrinsecamente guerras intestinas, lutas pelo poder, conspirações, disputa de influência, defesa de interesses, também entre Miguel Ângelo e Rafael não faltaram intrigas, suspeições e até mesmo sabotagens. Giorgio Vasari descreve de forma sublime como Rafael e o seu amigo Bramante, arquitecto do Vaticano, disputaram com Miguel Ângelo a proximidade com o centro de decisão, personificado no Papa.

 

Mais do que uma afirmação artística, estes artistas estavam também intimamente ligados ao poder e era algo que estavam dispostos a manter, através de alianças políticas e de movimentações diplomáticas.