Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

Getz/Gilberto e The Imagine Project, duas "armas" da public diplomacy americana

Alexandre Guerra, 08.03.11

 

Charlie Byrd Trio, cidade do México, 2 de Junho de 1961, durante uma tournée patrocinada pelo Departamento de Estado norte-americano

 

Eventualmente, pouco gente saberá, mas o Departamento de Estado norte-americano, no âmbito da sua estratégia de public diplomacy, é um forte apoiante da “exportação” da sua cultura erudita e “pop”, seja em que formato for. Não é algo novo, e remonta, pelo menos, aos primeiros

anos da Guerra Fria.

 

De uma forma muito sintética, pode-se dizer que a public diplomacy é a estratégia governamental de Washington para projectar o seu soft power no mundo, com vista a sensibilizar e aproximar outros povos aos valores, virtudes e estilo de vida americanos. O Public Diplomacy Council define a public diplomacy como uma “ferramenta” da política externa dos Estados, um “instrumento” de poder nacional, tal como o militar, o económico e outros.

 

Existem diversas formas de efectivar a public diplomacy com vista ao engagement de comunidades e nações estrangeiras, mas tem sido a vertente cultural uma das mais activas no Departamento de Estado.

 

Na verdade, artistas, mais concretamente músicos, são alguns dos “embaixadores” culturais que ao longo dos anos têm sido apoiados por Washington para promoverem os seus trabalhos um pouco por todo o mundo.

 

E não pense o leitor que se trata de algo camuflado, em que os artistas agem como uma espécie de espiões. Pelo contrário, são iniciativas que se querem bastante amplificadas, nas quais o Departamento de Estado assume o seu apoio e os artistas encaram com bastante profissionalismo. Porque, em muitos casos, estas plataformas de apoio por parte da diplomacia americana materializaram-se em autênticas tournées de bandas e de músicos mundialmente reconhecidas e das quais resultam autênticas preciosidades culturais.

 

Existem muitos exemplos que poderiam ser dados, mas uma das histórias mais interessantes relaciona o Departamento de Estado com o surgimento do fenómeno da bossa nova na cena cultural americana e ao nível internacional na década de 60. E foi também importante porque ajudou a criar "pontes" culturais entre o Brasil e os Estados Unidos.

 

Talvez o leitor considere isto uma nota de rodapé na história dos Estados, mas é importante não esquecer que daqui resultaria um dos álbuns mais famosos da história musical contemporânea. “Getz/Gilberto” foi lançado em 1964, tornando-se um dos discos de jazz mais vendidos de sempre, para um ano depois vir a ganhar o Grammy de álbum do ano, um feito para um trabalho deste género musical. Só em 2008, um outro álbum de jazz, com “River: The Joni Letters”, viria conquistar aquele Grammy e, curiosamente, da autoria de um músico muito activo no campo da public diplomacy, Herbie Hancock.

 

Mas, vale a pena voltar à bossa nova de Stan Getz (1927-1991) e de João Gilberto, acompanhados ao piano e na composição pelo gigante Tom Jobim (1927-1994). Foi o guitarrista Charlie Byrd (1925-1999) que, ao regressar de uma tournée na América do Sul apoiada pelo Departamento de Estado, no início dos anos 60, deu a conhecer a Stan Getz essa grande descoberta chamada de bossa nova. Getz, fascinado pelo som do Brasil, gravou com Byrd o álbum Jazz Samba, que se tornou em 1962 um sucesso nos Estados Unidos. Foi o primeiro álbum de bossa nova/jazz no cenário musical americano e mundial. Dois anos mais tarde, era lançado o álbum “Getz/Gilberto”, no qual estava a estrondosa Garota de Ipanema.

 

Uma vez que já foi aqui referido Hancock, o Diplomata dá outro exemplo, bem recente, do exercício de public diplomacy por parte de Washington. O álbum The Imagine Project, lançado no ano passado, é um autêntico apelo de Hancock à “colaboração global”, “um apelo à imaginação, mas também à sensibilização das sociedades pós-modernas para a necessidade de trilharem um caminho comum”, como o autor destas linhas já escreveu há uns tempos.

 

Sendo um projecto que contempla “diferentes culturas e línguas, povos e nações, tradições e raízes”, Hancock contou com o apoio do Departamento de Estado para ir à procura dessas diferentes realidades, percorrendo vários continentes, e gravando o álbum em 6 países, com artistas de origens e de estilos diversos.

 

*Mais um texto no âmbito da rubrica iniciada há umas semanas pelo Diplomata.

 

O poder americano, segundo Joseph Nye

Alexandre Guerra, 03.01.11

 

Foto: David Furst/AFP 

 

Quando Joseph S. Nye escreve sobre “poder” convém prestar alguma atenção, ou não fosse este homem um dos principais responsáveis pelo conceito da “interdependência” complexa nas relações internacionais.

 

Num artigo sobre o futuro do poder americano, assinado na última edição da Foreign Affairs, o co-autor (o outro foi Robert Keohane) do famoso livro Power and Interdependence (1977) desconstrói, de certa maneira, a ideia instalada de que o poder da América entrou em declínio no século XXI.

 

Nye começa por sublinhar que qualquer análise de previsão para as próximas décadas contempla um grau elevado de incerteza, sobretudo quando assenta em interpretações enviesadas dos indicadores e factores de poder dos Estados Unidos.  

 

Aquele autor relembra, por exemplo, as estimativas sobrevalorizadas feitas por Washington em relação ao poder militar soviético, nos anos 70, ou ao poder económico japonês, na década de 80. Tal como se enganaram aqueles que ainda há dez anos diziam que o sistema internacional iria assentar num paradigma unipolar liderado pelos Estados Unidos, e estes seriam tão poderosos que aos outros países não restaria outra hipótese senão acatarem a vontade de Washington sem qualquer tipo de contestação.

 

Ora, estas previsões ou análises revelaram-se, de uma forma ou de outra, erradas. Da mesma maneira que Nye considera sobrevalorizados os prognósticos mais pessimistas em relação à evolução negativa do poder americano no sistema internacional durante este século XXI. Sobretudo quando essas previsões apontam para a ascensão da China como líder mundial, ultrapassando os Estados Unidos em termos de poder.

 

Nye rejeita esta ideia. Embora admita que a China continue a registar taxas de crescimento económicas muito elevadas durante as próximas décadas e que se aproxime dos Estados Unidos, dificilmente o Império do Meio se tornará a maior potencia mundial durante este século.

 

Aquele autor alerta para um erro comum entre os analistas que é o de fazerem previsões baseadas exclusivamente no crescimento do PIB, ignorando por completo outros factores de poder (“hard” e “soft”), muitos dos quais resultado de décadas de investimento.

 

Nye tem toda a razão neste ponto, já que uma análise do crescimento do PIB oferece apenas uma perspectiva unidimensional, não reflectindo, assim, a verdadeira dimensão do poder de um Estado. E nesta matéria Nye diz que muitos dos analistas têm ignorando o avanço que os Estados Unidos levam em relação a qualquer outra nação em termos de “hard power” (militar, espaço geográfico, recursos, etc) e “soft power” (democracia, “Public Diplomacy”, “R&D”, poder de atracção, etc),

 

É um facto que países como a China, a Índia ou a Alemanha têm potenciado o crescimento daqueles dois níveis de poder, “obrigando” os Estados Unidos a enfrentar as exigências da interdependência entre os Estados.

 

Sob esta perspectiva pode-se falar de um “declínio relativo” de poder dos Estados Unidos face a outros países, não tanto pela fragilização do poder americano, mas sobretudo pela valorização dos vários recursos que algumas nações têm potenciado. Mas o processo de equilíbrio de poder entre essas nações e os Estados Unidos poderá demorar décadas ou nem sequer vir a existir.

 

O sistema internacional é hoje, e deverá ser durante muitas décadas, unimultipolar, já que dificilmente surgirá outro pólo de poder tão afirmativo como os Estados Unidos.

 

Para se compreender o abismo de poder entre a América dos dias de hoje com os restantes países basta ver três exemplos:

 

a)     No campo militar nenhum Estado consegue chegar perto do complexo e das estruturas militares americanas, muito menos a China, que tem, por exemplo, um Exército mal preparado e equipado e uma marinha praticamente inexistente (embora tenha começado recentemente a investir forte nesta área);

 

b)    No sector da investigação e desenvolvimento, em 2007 os Estados Unidos investiram 369 mil milhões de dólares, mais do que todo o investimento feito pelos países asiáticos (338 mil milhões). A União Europeia investiu nesse ano 263 mil milhões. Ou seja, os Estados Unidos foram líderes nesse investimento, com 2,7 por cento do seu PIB, quase o dobro do que a China investiu. O resultado traduziu-se no registo de mais de 80 mil patentes nos Estados Unidos, mais do que o somatório de todos os países do mundo;

 

c)     A capacidade de atrair mão de obra qualificada e técnicos altamente especializados é cada vez mais um factor de poder a ter em consideração e neste campo os Estados Unidos (após um breve período de medidas securitárias hiper-restritivas na sequência do 11 de Setembro) estão a reforçar a sua liderança. Nye sublinha a capacidade que os Estados Unidos têm de atrair as melhores e mais brilhantes mentes de todo o mundo e misturá-las num ambiente cultural diverso de criatividade. Por exemplo, em 2005, os imigrantes ajudaram a fundar uma em quatro “start-up's” de base tecnológica em Silicon Valley

 

É por estas e outras razões que Nye rejeite a ideia de “declínio absoluto” dos Estados Unidos, deixando, no entanto, a ideia de que se está perante um “declínio relativo” tendo em conta a potenciação e o melhor uso dos recursos de poder por parte de outras nações.

 

E talvez para se compreender melhor esta dinâmica será interessante recorrer-se à imagem elaborada pelo próprio Nye. Para este, a distribuição do poder assemelha-se um complexo jogo tridimensional de xadrez, onde num primeiro nível se encontra o poder militar, dominado pelos Estados Unidos num sistema claramente unipolar. Num segundo patamar vem o poder económico, sendo que o sistema tende a ser mais multipolar, com os Estados Unidos a partilharem a liderança com a Europa, o Japão, a China e outros países emergentes. Por fim, estão as relações transnacionais que incluem todo o tipo de actores não estatais, e aqui o poder é bastante difuso sendo difícil encontrar um modelo estanque que enquadre esta realidade.

 

Perante esta problemática, Nye defende uma “nova narrativa” sobre o futuro do poder americano.

 

Dizer que o século XXI é uma espécie de transição para o declínio do poder dos Estados Unidos é uma visão errada e, na opinião de Nye, pode ter implicações perigosas para o próprio sistema internacional, tais como, por exemplo, encorajando a China ou outros actores em “aventuras” irresponsáveis, partindo do pressuposto da subvalorização das verdadeiras capacidades americanas.

 

Nye alerta que o verdadeiro problema do poder americano no século XXI não é o seu declínio, mas sim o que fazer com este à luz da emergência de outros pólos de poder de modo a que os Estados Unidos alcancem os seus objectivos nas relações internacionais.   

 

E é aqui que Nye, tal como a secretária de Estado, Hillary Clinton, fala numa nova forma de poder, o “smart power”. Um poder que combina recursos do “hard” e do “soft power”, o que necessariamente pressupõe um novo entendimento sobre o conceito de poder.

 

Texto publicado originalmente no Albergue Espanhol