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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

Um Presidente em calções

Alexandre Guerra, 05.08.18

 

Nos anos 70, o sociólogo e politólogo Roger-Gérard Schwartzenberg publicou um livro muito importante no campo da sociologia e da ciência política chamado "O Estado Espetáculo" (trad. brasileira). Nesse livro, que me foi apresentado há uns anos pelo já falecido professor João Bettencourt da Câmara numa das aulas de mestrado, e que devia ser lido por quem, muitas vezes, se pronuncia no alto da sua sabedoria sobre os fenómenos da comunicação política dos dias de hoje, Schwartzenberg alerta para os perigos da teatralização da acção dos actores políticos, tornando-se, em muitos casos, espectáculos de "one man show", onde o cidadão é um mero observador passivo perante o exercício de poder egoísta e interesseiro de quem o detém. Espectáculos circenses nos quais os políticos pouco virtuosos colocam os seus interesses pessoais e fúteis acima dos outros. Como escreveu Adriano Moreira, em Maio de 2016, numa das suas crónicas no DN, precisamente em relação a este livro de Schwartzenberg, todo este "espectáculo" montado pelo político é feito "sem grandes preocupações sobre manter a integridade da relação entre o proclamado e a ação do poder alcançado".

 

Este era um dos perigos para os quais Schwartzenberg alertava, ou seja, o do eterno problema da ausência de verticalidade na política e na falta de palavra dos seus intervenientes, entre a promessa e a concretização. Ora, analisando bem aquilo que o autor queria transmitir, problema não se coloca no facto de um político aparecer ou não em cima de uma tartaruga algures numa ilha paradisíaca do Índico ou de surgir em directos nas televisões a mergulhar numa praia fluvial no interior de Portugal. A questão, sim, que deve ser tida em conta, é se esse mesmo político se preocupa em “manter a integridade da relação entre o proclamado e a acção do poder alcançado”. Esse é o exercício que se deve fazer num âmbito de uma análise política e é o que se deve ter em consideração no escrutínio que um cidadão faz ao seu líder, esteja ele de fato e gravata ou em calções. É sempre importante relembrar que Winston Churchill só não governou deitado, porque não dava muito jeito, tendo sido apanhado em situações perfeitamente disparatadas, mesmo para aquela época, no entanto, penso que ninguém duvidará da sua convicção e no seu compromisso com a causa maior e com o seu povo. E é isso o mais importante, é isso que deve ser julgado pelos cidadãos, porque é isso que faz com um líder seja virtuoso, que contribua para o bem-estar das pessoas.

 

O Presidente Marcelo, à sua maneira, abdicou de parte das suas férias para fazer aquilo que achava que era o seu compromisso com as populações, sobretudo com aquelas que sofreram directamente tamanhas tragédias com os incêndios do ano passado. Dirão os críticos que o podia fazer sem o aparato mediático. Podia, mas não era a mesma coisa. Porque o objectivo também é chamar a atenção, sensibilizar, e aí, um bom político, utiliza as ferramentas que tem ao seu dispor para executar a sua visão, a sua estratégia. A diferença é se o faz em prol dos seus interesses e projectos pessoais de poder ou se, por outro lado, o faz a pensar nas pessoas.

 

Embora nem sempre tenha concordado com algumas opções e acções do Presidente, não tenho dúvidas de que Marcelo está de corpo e alma com estas gentes do interior. Basta vê-lo pessoalmente no local e percebe-se o seu envolvimento. Mas mais importante, é ver os olhos de felicidade e de conforto das pessoas do tal interior, historicamente sempre esquecido pelas elites de Lisboa. Marcelo não esqueceu o que tinha dito no ano passado depois da tragédia dos incêndios, de que iria passar férias na região, e isso é que é raro em política. Apelou também a outros políticos e aos portugueses para visitarem todos aqueles concelhos. Pois bem, o presidente cumpriu. E cumpriu genuinamente.

  

Marcelo, que ao longo da sua vida política nunca deixou de ser maquiavélico (no sentido científico da palavra) e alinhar em “jogos de bastidores”, parece ter deixado parte disso para trás quando alcançou o seu projecto de poder de uma vida, Belém. Um segundo mandato depende apenas de si. Com quase 70 anos, parece ser um homem em paz consigo próprio, que assumiu o registo presidencial virado para o povo, contrariando alguns vaticínios de caos e anarquia no Palácio de Belém. Marcelo é hoje um político que não precisa de qualquer reforço de reputação ou de notoriedade. Muito menos, precisaria de abdicar das suas férias no Algarve para executar uma manobra circense no interior do país de modo a subir nas sondagens. Pelo contrário, nunca nenhum político em Portugal foi tão acarinhado pelas pessoas e nunca teve sondagens tão favoráveis. 

 

Texto publicado originalmente no Delito de Opinião

 

Não, os políticos não estão a fazer tudo o que podem

Alexandre Guerra, 17.06.18

 

Um ano depois da tragédia de Pedrógão, que fez 66 mortos, quase todos carbonizados numa só estrada, e mais de 250 feridos, alguns deles com marcas no corpo e feridas psicológicas para o resto da vida, o Presidente da República disse este Domingo que "os responsáveis políticos estão a fazer o que podem". Daqui a uns meses, mais concretamente a 15 e 16 de Outubro, assinalar-se-á um ano sobre outra tragédia, que matou 50 pessoas e feriu mais de 70. Além dos milhares de hectares ardidos em vários concelhos da região centro e norte, foram destruídas 1500 casas, 500 empresas e o sustento de muitas famílias foi devastado. Provavelmente, quando chegar a altura, o Chefe de Estado voltará a sublinhar que os responsáveis políticos estão a fazer o que podem, no entanto, um Estado que veja "ameaçado" ou "atacado" o seu Território, o seu Povo ou o seu Governo, é um Estado que se vê ameaçado e atacado a si próprio, que vê ameaçada e atacada a sua soberania. E quando os seus líderes não afastam essas ameaças e repelem esses ataques, é porque estão a prestar um mau serviço à governança do bem comum.

 

As nossas terras continuam a ser o palco onde todas as atrocidades acontecem, perante a complacência do Estado. Os rios são invadidos cegamente com barragens e são contaminados por fábricas, os habitats naturais são destruídos sem complacência, o betão invade a costa nacional sem qualquer critério e continua-se a licenciar projectos urbanísticos em zonas que deveriam ser invioláveis. E mesmo nas pequenas coisas, as lideranças não têm a visão para implementarem medidas concretas que seriam condizentes com os seus inconsequentes discursos de perfil ambientalista (apenas para dar um micro exemplo, mas sintomático... Como é possível que em 2018 ainda permitam que circulem tuks tuks altamente poluentes no centro de Lisboa ou nas entranhas da Serra de Sintra???). Ou seja, no Estado e na sua cúpula de poder não se verifica qualquer mudança no paradigma da noção de Território sustentável.

 

É por isso que jamais posso concordar com a declaração proferida este Domingo por Marcelo Rebelo de Sousa em Pedrógão Pequeno. Não, os responsáveis políticos não estão a fazer tudo o que podem. Não o fazem há décadas, não o fizeram no ano passado, não o estão a fazer agora e não se perspectiva que o façam a curto e a médio prazo. Portugal, infelizmente, continuará a ver o seu território dilacerado.

 

Portugal e Angola

Alexandre Guerra, 15.05.18

 

As (boas) relações entre Estados obrigam, por vezes, a determinados “atropelos” àquilo que serão códigos de boas práticas e condutas que cada cidadão vê como adquiridos no seu quotidiano. Muitos vêem isto como hipocrisia ou cinismo político, mas, a verdade, é que é assim que funciona o sistema internacional, onde a “realpolitik” continua a ser o princípio basilar na definição das estratégias governamentais. De qualquer forma, já estamos longe dos egoísmos absolutos do realismo político que regia o relacionamento entre nações no século XIX.

 

Em pleno século XXI, as sensibilidades são outras, embora os “interesses” de Estado continuem a falar mais alto na hora dos governos definirem as suas abordagens em matéria de política externa. Na defesa desses “interesses” superiores, por vezes, cede-se no campo da moral, dos princípios e até mesmo da lei, em matérias que, no âmbito da esfera interna de cada Estado, seriam inamovíveis. Os julgamentos morais ou éticos sobre determinada decisão ou medida são perfeitamente aceitáveis e cada cidadão está no seu pleno direito de os fazer. Os governos têm de lidar com essas críticas, gerindo, da melhor forma que puderem, um equilíbrio sempre difícil de fazer, entre aquilo que são os interesses e as vontades.

 

Após meses ensombrados por um clima de tensão e desconfiança, ontem, em Luanda, o Presidente João Lourenço recebeu o ministro da Defesa português, Azeredo Lopes, num gesto politicamente importante, já que a audiência não estava em agenda, o que pressupõe uma vontade do próprio chefe de Estado e uma intenção de passar um sinal positivo para Lisboa. E ainda bem que assim foi, porque, se, por um lado, Portugal foi cínico e apostou no realismo político, abrindo flanco para todo o tipo de considerações negativas, por outro lado, privilegiou os tais “interesses” superiores no relacionamento entre dois países com tão fortes laços históricos e diplomáticos.

 

Ser Presidente até ao último dia

Alexandre Guerra, 28.05.16

 

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Barack Obama na Sala Oval, 19 de Maio (Foto: White House/Pete Souza) 

 

Num dos episódios da realista série The West Wing, com o título "365", a equipa da presidência de Josiah Bartlet (Martin Sheen) vê-se confrontada com a inevitável aproximação do final do segundo mandato, num misto de nostalgia, desmotivação e desânimo. Normalmente, os poderes executivos, sejam Governo (em sistemas parlamentares ou semi-parlamentares) ou chefes de Estado (sistemas presidencialistas), olham para os últimos tempos de funções como um mero cumprimento de calendário, aguardando passivamente o dia em que os seus sucessores lhes tomem o lugar. Regra geral, a um, dois anos do término do mandato, há uma espécie de ideia tácita que pouco já nada há fazer, adiando-se grandes decisões e políticas para o próximo Executivo. Em países como Portugal, por exemplo, existe um consenso político-partidário em que os governantes que se encontrem nessa situação, ou seja, com a porta da rua semi-aberta, já não podem ousar assumir grande protagonismo, correndo o risco de serem acusados de estarem a condicionar o trabalho dos seus sucessores. 

 

Mas a verdade, é que um primeiro-ministro ou um Presidente está de plenos poderes até ao último dia do mandato e, como tal, deve exercê-los com a mesma determinação e convicção como se estivesse a iniciar funções. Nesse episódio aqui referido, e perante o "baixar de braços" do Presidente e de quase todo o "staff", conformados com o fim à vista do seu mandato, entra em cena Leo McGarry (John Spencer), chefe de Gabinete da Casa Branca, experiente e sábio, que, num discurso emotivo, lembra à sua equipa que ainda faltam 365 dias para o mandato terminar e que em cada um destes dias eles tinham o poder, como mais ninguém tinha, de fazer algo pelo bem comum.  

Como em tantas outras passagens daquela série, também esta parece ter sido premonitória em relação ao que Barack Obama viria a fazer (e está a fazer) nos seus dois últimos anos de mandato, aproveitando todas as oportunidades para fazer história. Acordo do clima de Paris, Tratado Trans-Pacífico, reatamento das relações diplomáticas com Cuba, reaproximação ao Irão e agora a visita a Hiroshima, são apenas alguns eventos da agenda externa de Obama dos últimos meses, carregados de significado e importância histórica. Também a nível interno, Obama tem mantido uma actividade política constante, até porque ainda tem alguns dossiers da máxima importância para resolver. Tudo leva a crer que nestes meses finais Obama não irá abrandar a sua acção governativa. E caso isso se confirme, é assim mesmo que deve ser... Presidente até ao último dia.

 

Publicado originalmente no Delito de Opinião.

 

A questão racial

Alexandre Guerra, 05.12.14

 

Provavelmente, desde os anos 60/70 que a questão racial nos Estados Unidos (embora tenha estado sempre presente) não suscitava tanta agitação na opinião pública, como a que está a acontecer por estes dias nalgumas cidades americanas, em parte, por causa de duas decisões judiciais em casos distintos, que muitos cidadãos vêem como injustas e racistas (as últimas notícias dão conta de um terceiro caso que pode inflamar ainda mais os ânimos).

 

Pelo meio, houve ainda os distúrbios de 1992, em Los Angeles, no seguimento do espancamento do motorista negro Rodney King por quatro polícias brancos, entretanto, absolvidos, apesar das imagens recolhidas mostrarem um claro abuso de força policial. Mas, neste caso, os acontecimentos, altamente violentos, ficaram circunscritos àquela cidade californiana e a determinada altura assumiram formas de vandalismo e desafio às autoridades, que pouco ou nada tinham a ver com a luta contra o racismo. 

 

Agora, e apesar da existência de distúrbios, parece haver um debate mais racional e mais alargado. Lendo-se a imprensa americana, fica-se com a sensação de que o movimento protestativo começa a ser massivo e a estender-se a várias cidades.

 

Não deixa de ser irónico que o fantasma do racismo volte a despertar com tanta fúria, numa altura em que o seu Presidente e "attorney general" são negros.