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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

Desconstruir análises

Alexandre Guerra, 07.02.20

Meses depois do conselheiro especial da Casa Branca, Jared Kuschner, ter apresentado ao mundo árabe a componente económica do plano de paz americano para o Médio Oriente, durante um "workshop" em Manama, Bahrein, recentemente foi a vez do Presidente Donald Trump revelar os contornos políticos e mais "quentes" daquilo que ele classifica de "Visão" (Vision for Peace, Prosperity and a Brighter Future) para a resolução do conflito israelo-palestinino. Se na vertente económica já era sabido que se estava perante um potencial investimento de cerca de 50 mil milhões de dólares,  no patamar político, o documento com a "Visão" de Trump apresentado há semanas concretiza muito claramente os intentos de Washington e Telavive para a "sua" solução de "dois Estados.

Não se pretende aqui analisar em detalhe todos os contornos do plano apresentado, mas sim desconstruir as análises erradas que se fizeram na imprensa, porque aquilo que alguns comentadores vêem como (novas) consequências provocadas pelo plano de Trump, são na verdade realidades que existem "de facto" desde a intifada de al Aqsa, em Setembro de 2000: a questão da descontinuidade territorial; a criação do sistema de "apartheid"; e o isolamento dos territórios palestinianos com os Estados limítrofes. 

Com o ressurgimento da violência israelo-palestiniana, em Setembro de 2000, espoletada pela provocatória visita do então primeiro-minsitro, Ariel Sharon, ao Monte do Templo (para os judeus) ou Haram al-Sharif (para os muçulmanos), o território da Cisjordânia foi sendo asfixiado e fragmentado pela política de colonatos judaicos e de segurança israelita. São várias as localidades e cidades dentro da Cisjordânia que, desde estão, ficaram totalmente controladas pelas IDF, sendo que, em muitos casos, a liberdade de circulação está limitada pelos inúmeros checkpoints levantados pelas IDF. A intensidade desta realidade vai sempre variando e dependendo do grau de violência que se vai vivendo no âmbito do conflito israelo-palestiniano. Por exemplo, durante os anos da intifada de al-Aqsa, os checkpoints entre a capital Ramalhah e a localidade universitária de Bir Zeit, a 20 minutos de carro, eram recorrentes a várias horas do dia. 

E quando há uns analistas que falam num novo “apartheid”, estão a ignorar por completo o que se passa há vinte anos na Cisjordânia, onde existem estradas que ligam directamente Israel aos colonatos, sem que os palestinianos possam utilizá-las, apesar de atravessarem território palestiniano. Estão a ignorar que os checkpoints são impostos discricionariamente de acordo com a vontade das IDF, muitas vezes de uma hora para o outra, impedindo que muitos palestinianos regressem as suas casas ou não possam deslocar-se de um local para outro, obrigando-os a esperar horas e até dias. Estes mesmos analistas, que agora vêem nesta “Visão” a fonte de todos os males, ignoram a realidade de duas décadas, onde milhares de palestinianos ficaram impedidos de atravessar a “fronteira” em Jerusalém para irem trabalhar diariamente em Israel. Ignoram ainda que desde 2000, Israel cortou com a ligação entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, provocando, nalguns casos, a separação de famílias. Muito dificilmente um palestiniano da Cisjordânia conseguirá chegar à Faixa de Gaza através de Israel. Quanto muito, terá que sair da Cisjordânia pela Jordânia e entrar em Gaza pelo Egipto.   

Recuperemos então algumas passagens do documento apresentado por Donald Trump. Na sua introdução, é referido que: "Gaza and the West Bank are politically divided." É verdade, mas como foi acima sublinhado, é omitido que também estão fisicamente separados desde o início da intifada de al Aqsa, em Setembro de 2000, por imposição das IDF. Ainda de acordo com a mesma introdução, lê-se: "Since 1946, there have been close to 700 United Nations General Assembly resolutions and over 100 United Nations Security Council resolutions in connection with this conflict." É obra, mas é revelador da ineficácia completa da comunidade internacional na tentativa de resolução desta questão. E como é que Trump vê estas resoluções da ONU? "This Vision is not a recitation of General Assembly, Security Council and other international resolutions on this topic because such resolutions have not and will not resolve the conflict."

Sendo os “males” potenciais identificados por muitos analistas, na verdade, evidências bem reais há vários anos, não será de estranhar que o plano de paz de Washington seja uma ferramenta diplomática tendenciosa para os interesses de Israel. A determinada altura lê-se: "It must be recognized that the State of Israel has already withdrawn from at least 88% of the territory it captured in 1967." Ora, depende da interpretação que se fizer e do território em causa. É que em 1967, Israel ocupou a Cisjordânia, Gaza, Montes Golã e um enclave ao Líbano e Síria (Shebaa Farms). Entretanto, retirou as IDF de Gaza, mas manteve o controlo fronteiriço; retirou a presença militar dos Golã, mas manteve a soberania e não devolveu à Síria (tal como as Shebaa Farms). Na Cisjordânia, recuou nalgumas zonas, mas isolou outras e fragmentou o território, enchendo-o de colonatos.

Um dos pontos mais importantes deste documento e mais estratégico para a sobrevivência de Israel tem a ver com algo a que não vi qualquer analista fazer referência: “The State of Israel will retain sovereignty over territorial waters, which are vital to Israel’s security and which provides stability to the region.” Ao contrário de outras matérias em disputa, como a questão da capital em Jerusalém (mais simbólica do que estratégica) ou dos colonatos (mais ideológica do que securitária), há dois temas que ameaçam directamente a existência de Israel (não, não é o Hamas nem o Irão): o acesso à água e o factor demográfico. Este tema ficará para um próximo texto.

O (quase) silêncio da Fatah

Alexandre Guerra, 15.05.18

 

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Palestinianos na Faixa de Gaza protegem-se do gás lacrimogénio lançado pelos israelitas/FOTO:Ibraheem Abu Mustafa/Reuters

 

A Grande Marcha de Retorno esbarrou literalmente na vedação que delimita a Faixa de Gaza do território de Israel. Era uma iniciativa que estava condenada desde o início. A ideia de uma caminhada triunfal de milhares de palestinianos até Jerusalém não seria mais do que uma fantasia, uma tentativa de reabilitar as intifadas de anos anteriores, numa espécie de grito de revolta por parte de quase dois milhões de pessoas desesperadas, que há vários anos estão autenticamente presas num território com cerca de 40 quilómetros de cumprimento e 10 de largura, onde as condições de vida se degradaram para níveis miseráveis, reflectindo-se em indicadores sociais muito preocupantes.

 

É importante sublinhar que, hoje em dia, quando se fala na causa palestiniana e num futuro Estado palestiniano, na verdade, o que está em análise são duas realidades distintas. Não quer isto dizer que ambas não possam vir a coexistir sob um único Governo e estrutura política, mas, actualmente, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza são dois mundos substancialmente diferentes. E se isso já era evidente há uns anos ao nível social e religioso, sendo Gaza uma sociedade claramente mais conservadora do que a Cisjordânia, agora, em 2018, as diferenças são consideráveis no campo político-económico, sobretudo, por duas razões.

 

A primeira razão tem a ver com a morte de Yasser Arafat, em 2004, e a consequente perda de influência da Fatah na Faixa de Gaza. Recordo de ter estado em várias casas de famílias palestinianas na Faixa de Gaza e, quase sempre, numa das divisões havia uma fotografia do histórico líder. Isto, numa altura em que a Fatah já tinha pouca influência naquele território, mas onde Arafat continuava a ser o elemento político unificador. Após o seu desaparecimento, o Hamas rapidamente ascendeu ao poder, ao mesmo tempo que reforçava a sua presença na gestão dos serviços públicos e no apoio social. Ora, com a Cisjordânia historicamente dominada pela Fatah e a Faixa de Gaza nas mãos do Hamas, criou-se uma dualidade política que resultou em duas estruturas de poder diferentes e, por vezes, competitivas naquilo que é a luta pela liderança da causa palestiniana.

 

A outra razão está directamente relacionada com o bloqueio imposto por Israel que, basicamente, já vem dos tempos da intifada de al-Aqsa (2000-2005). Por esta altura, estive por duas vezes naquelas paragens e já então os palestinianos da Cisjordânia não podiam ir visitar os seus familiares à Faixa de Gaza e vice-versa. Era assim e assim continuou. E na altura cheguei a perguntar a muitos palestinianos como eram os tempos anteriores à intifada de al-Aqsa e todos me disseram que nem na primeira intifada (a chamada “revolta das pedras” entre 1987 e 1991) Israel tinha imposto tantas restrições de movimentos. Pois bem, os anos passaram e esse estrangulamento foi-se intensificando na Faixa de Gaza, com a agravante dos bombardeamentos israelitas em 2014 sobre aquele enclave, destruindo, ainda mais, muitas das suas infraestruturas públicas e de saneamento. Ao mesmo tempo, sem aeroporto e porto, e com as fronteiras encerradas com Israel (restando apenas a fronteira de Rafah Crossing com o Egipto, mas que muitas vezes está fechada), a débil economia da Faixa de Gaza foi-se degradando, empurrando a população palestiniana para um caos humanitário.

 

Na Cisjordânia, apesar das dificuldades existentes, tudo é diferente. Há uma estrutura de poder minimamente estável, os serviços públicos funcionam, existe uma economia, as universidades fervilham de actividade, os restaurantes e café estão abertos nas várias cidades palestinianas, digamos que há uma certa dinâmica de sociedade. Além disso, a circulação entre a Cisjordânia e Israel, através de vários postos de controlo ao longo da fronteira, é muito mais facilitada.

 

Este enquadramento talvez seja importante para se perceber a passividade com que a Fatah e os palestinianos na Cisjordânia estão a encarar esta sublevação. Na verdade, dos relatos que chegam da Cisjordânia, registam-se apenas alguns confrontos em Hebron e Nablus, mas pouco significativos e nada comparáveis aos protestos de Gaza. Tudo indicia que a Fatah não está interessada em promover uma nova intifada. A única declaração que se encontra é esta, algo inócua, na qual se apela ao mundo muçulmano para proteger Jerusalém. Ainda esta manhã, a BBC News passava imagens em directo da rotunda Al Manara, em Ramallah, onde, normalmente, se concentram manifestações, e o ambiente era estranhamento calmo para aquilo que costuma ser em momentos de contestação e que eu, pessoalmente, lá vivi em diversas ocasiões.

 

A questão é saber se neste momento interessa à Autoridade Palestiniana e à Fatah abraçarem a causa dos seus "irmãos" da Faixa de Gaza, sabendo de antemão que qualquer acto mais agressivo contra Israel terá consequências dramáticas na Cisjordânia, em cidades como Ramalhah, Belém, Hebron ou Nablus. Do que se vai percebendo, a Fatah e o poder instalado em Ramalhah não parecem estar dispostos a sacrificarem a sua condição para dar força a uma terceira intifada. Para já, os palestinianos na Faixa de Faza estão entregues à sua sorte, como aliás, tem acontecido há quase 20 anos.   

 

O Natal é para todos

Alexandre Guerra, 30.11.15

 

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A tradicional árvore de Natal no centro de Belém, Palestina, com a Basílica da Natividade e a Igreja de Santa Catarina em plano de fundo. 

 

Com as sociedades ocidentais a viverem sob modelos sociais, culturais e religiosos cada vez mais assépticos, têm surgido algumas notícias que dão conta da proibição de actos natalícios em escolas ou locais públicos, supostamente em nome da integração de todos. Ora, o que muitos esquecem é que integrar pressupõe precisamente o contrário, ou seja, o respeito pelas tradições existentes, sejam elas quais forem e em que circunstâncias for. Aliás, relembro que em Belém (não em Lisboa, mas na Cisjordânia), cidade onde vive a maior comunidade católica da Palestina, o Natal é comemorado efusivamente, com a tradicional árvore de Natal e as ruas devidamente engalanadas. Tudo isto acontece no meio de uma região predominantemente muçulmana e, como se não bastasse, com vizinhos judaicos. E não é por isso que o Natal em Belém deixou de ser comemorado. Pelo contrário, foi algo que as próprias autoridades daquela cidade sempre encorajaram, até porque se tornou uma importante fonte de receita para os comerciantes. Para a história, ficam as célebres imagens de todos os anos do antigo líder palestiniano, Yasser Arafat, a assistir à Missa do Galo na noite de 24 de Dezembro na Igreja de Santa Catarina. 

 

A Via Sacra dos dias de hoje

Alexandre Guerra, 29.03.13

 

 

Diz a tradição cristã que há cerca de dois mil anos um judeu da Nazaré percorreu com uma cruz de madeira às costas e em grande sofrimento as ruas estreitas de Jerusalém. Hoje, a cruz é outra e quem a carrega são palestinianos, que vêem cada vez mais distante o sonho da criação de um Estado independente.

 

Portugal fez bem

Alexandre Guerra, 06.12.12

 

Portugal fez bem em votar favoravelmente, na Assembleia Geral das Nações Unidas, a elevação do estatuto da Palestina para “Estado observador não membro” daquela organização. Portugal foi assim um dos 138 países que subscreveram aquela proposta. Apenas nove votaram contra. Registaram-se 41 abstenções.

 

A diplomacia portuguesa, em nome da coerência com a linha que tem adoptado ao longo dos anos, na defesa de uma solução para o Médio Oriente assente no princípio dos “dois Estados”, não tinha outro caminho a tomar. Mesmo que isso implicasse (como implicou) um desalinhamento total com a posição de Washington, um aliado natural de Portugal, com o qual tem havido uma harmonia intocável em matéria de política externa.

 

A preocupação de preservar essa harmonia ficou aliás bem patente em Outubro do ano passado, quando os membros da Assembleia Geral foram chamados a votar a admissão da Palestina na UNESCO. Na altura, Portugal absteve-se, mas sem apresentar argumentos que sustentassem a sua decisão.

 

A interpretação do Diplomata é simples: Portugal encontrava-se numa encruzilhada. Se, por um lado, queria evitar desalinhar-se com Washington, por outro, Lisboa acreditava (e acredita) genuinamente na Palestina enquanto Estado independente, como parte da solução para o Médio Oriente.

 

E foi perante esta encruzilhada que Portugal acabou por abster-se no ano passado, ficando numa espécie de “meio caminho”, tentando não contrariar frontalmente Washington e ao mesmo tempo não trair totalmente a sua visão da política externa em relação à Palestina.

 

A investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL), Ana Santos Pinto, num pertinente artigo do jornal Público, chamava a atenção precisamente para a evolução da posição de Portugal em apenas um ano. E analisa ainda a importância do recente voto português na Assembleia Geral quando enquadrado nas relações político-diplomáticas com os Estados Unidos, já que desta vez se assistiu a uma bipolarização entre Lisboa e Washington.  

 

Consequente

Alexandre Guerra, 30.11.12

 

Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestiniana a discursar esta Quinta-feira na Assembleia Geral da ONU/Foto: Andrew Gombert-EPA

 

Desde os Acordos de Oslo (Setembro de 1993) que os líderes palestinianos não protagonizavam um acto diplomático tão significativo como aquele que ontem foi celebrado na Assembleia Geral das Nações Unidas. Mas ao contrário de Oslo, que o tempo e as circunstâncias remeteram para a irrelevância, a Resolução aprovada por 138 nações vai ser consequente para os desígnios da Autoridade Palestiniana.

 

A relatividade das palavras no Médio Oriente

Alexandre Guerra, 27.11.12

 

Em Israel o impacto das palavras esbate-se com a dureza da realidade, e aquilo que poderia ser visto como um autêntico disparate em qualquer outra parte do mundo, é interpretado em terras judaicas como mais uma opinião (válida) no meio de tantas outras no que diz respeito ao relacionamento do Estado hebraico com os seus vizinhos inimigos.

 

É por isso que quando Robert Eisenman, conhecido escritor, investigador de assuntos bíblicos e professor de religião, defende no Jerusalem Post a reocupação do Sinai (Egipto) por parte de Israel, não se ouvem vozes de protesto ou de espanto.

 

Eisenman, que não é propriamente um desconhecido, defende na prática a invasão de um Estado soberano, mas nem por isso motiva qualquer reacção inflamada, seja de quem for.

 

As palavras daquele judeu americano são vistas como “normais” no contexto anormal do Médio Oriente. São apenas mais uma perspectiva. Aliás, há algumas bem mais radicais. Há judeus ortodoxos que defendem a expansão dos colonatos e a ocupação de todo o território da Cisjordânia.

 

Mas também do lado palestiniano há quem deseje convictamente que os judeus sejam todos “empurrados” para o Mar Mediterrâneo.

 

E o mais extraordinário é que todas estas opiniões são expressas de forma mais ou menos livre por aqueles lados do globo, seja em jornais, rádios, televisões ou na rua, sem que haja qualquer estranheza ou repulsa, mesmo por parte dos mais moderados ou de entidades com responsabilidades na sociedade.

 

A dúvida em relação ao Egipto: privilegiar o Hamas ou o "status quo" com Israel?

Alexandre Guerra, 16.11.12

 

Atendendo aos acontecimentos violentos das últimas horas no Médio Oriente entre Israel e palestinianos na Faixa de Gaza, vai ser muito interessante observar o posicionamento desta nova liderança política do Egipto face ao conflito, já que é claramente bem mais próxima do Hamas do que o antigo Presidente Hosni Mubarak.

 

O sonho perdido de Arafat*

Alexandre Guerra, 16.10.12

 

Vista aérea da cidade de Gaza com o Mar Mediterrâneo ao fundo 

 

Ainda Yasser Arafat era vivo quando o autor destas linhas ouviu alguém dizer que o sonho do líder palestiniano era fazer da Faixa de Gaza uma espécie de Miami da Palestina. Um devaneio total do antigo líder palestiniano, dirão os leitores. Porém, talvez nem tanto.

 

Certo dia ao final da tarde, de copo na mão, num terraço estilo árabe virado para o Mediterrâneo, num dos poucos hotéis da marginal da cidade de Gaza, este vosso escriba pensava que ali estava mais um exemplo de um pedaço de terra que tinha condições para florescer e, no entanto, a História ditara outro curso.

 

Em circunstâncias normais a Faixa de Gaza teria requisitos para se tornar numa estância turística de referência, soalheira, banhada pelo azul do Mediterrâneo e com areal. Ou seja, poderia ser uma colónia de férias dos palestinianos (e por que não também dos jordanos?), enquanto a Cisjordânia seria sempre o território para viver e trabalhar, já que é lá que estão as principais cidades, universidades, serviços e Governo. A Faixa de Gaza seria assim como o Algarve é para milhares de portugueses, que se concentram nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto.

 

Mas a verdade é que as circunstâncias são cada vez menos normais naquele enclave, que mede 41 quilómetros de extensão e nunca mais de 12 quilómetros de largura, e no qual estão literalmente enclausurados cerca de 1,6 milhões de palestinianos, tornando-o num dos territórios com maior densidade populacional do mundo.

 

Com uma população a crescer (e a economia também) o exíguo território está a ficar cada vez mais exíguo e ao mesmo tempo desorganizado e caótico.

 

O preço do terreno tem disparado, sobretudo na cidade de Gaza, entre 40 a 50 por cento anualmente nos últimos anos. Actualmente, o metro quadro na cidade de Gaza pode atingir os 20 mil dólares. Um valor que não fica atrás daquele que é praticado em bairros de luxo em Londres, Nova Iorque ou Paris.

 

Obviamente que este mercado não é acessível para a maioria dos palestinianos da Faixa de Gaza, no entanto, existem muitos homens ricos que conseguem fazer entrar dinheiro vindo do Egipto através dos famosos túneis clandestinos. Convém relembrar que Israel tem imposto há vários anos um bloqueio feroz à Faixa de Gaza, dificultando a mobilidade de pessoas, bens e serviços.

 

Mas com a economia, em geral, e o sector da construção, em particular, dinamizados com os “esquemas” transfronteiriços entre Gaza e o Egipto vai-se construindo um pouco por todo o lado, sem qualquer planeamento e quase sempre sem qualidade, já que os materiais são escassos.

 

Numa reportagem desta semana, a BBC News dizia que os poucos espaços verdes naquele enclave vão ficando cada vez mais cinzentos, com o mercado do imobiliário a tornar-se bastante atractivo perante o aumento de população.

 

Embora a construção desenfreada e desordenada na Faixa de Gaza tenha contribuído para dissipar o sonho de Arafat, a verdade é que há muito que esse mesmo sonho já tinha sido destruído pela guerra e pelo bloqueio. O Sul da Faixa de Gaza está particularmente martirizado, quando comparado com a cidade de Gaza, com muitas poucas casas incólumes às balas e bombas israelitas e com uma pobreza acentuada. 

 

A Faixa de Gaza dos dias de hoje está cada vez mais longe do sonho de Yasser Arafat, mas, apesar de tudo, não deixa de ser um local onde a terra se torna um bem cada vez mais precioso. 

 

*Este é o primeiro de três textos sobre a Faixa de Gaza