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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

A questão palestiniana

Alexandre Guerra, 25.11.20

Estávamos no Verão de 2001 e um dia, numa das suas aulas de especialização em Estudos Palestinianos na Universidade de Birzeit, Abdul Sattar Kassem, reputado professor de Ciência Política e antigo candidato presidencial contra Yasser Arafat em 2002, explicou-nos que havia uma regra na Palestina: nunca assinar nada com os israelitas. Não esqueci esta frase. Na altura, a violência instalara-se na Cisjordânia e na Faixa de Gaza por causa da intifada de al-Aqsa e o que restava de todos os acordos e tratados de paz eram meros resquícios. Aquela afirmação algo extremada de Sattar Kassem, ele próprio um activista que esteve várias vezes detido nas prisões israelitas e palestinianas — neste caso, devido às críticas feitas à Autoridade Palestiniana —, era consequência de décadas de desconfiança em relação a Israel. Mas percebi também que Sattar Kassem, professor residente na An-Najah National University em Nablus (a maior da Palestina), tinha uma outra perspectiva ao responsabilizar em parte os palestinianos pela situação a que se tinha chegado. Por um lado, achava que muitos dos seus concidadãos tinham aceitado passivamente o domínio israelita, desresponsabilizando-se da gestão dos seus desígnios. Por outro lado, a elite política de Ramallah era dominada pela corrupção e estava mais interessada na sua sobrevivência do que propriamente numa solução duradoura com Israel.

Independentemente da validade destes argumentos, o facto é que quando rebentou a intifada de al-Aqsa, em Setembro de 2000, com a visita provocatória do então recém-eleito primeiro-ministro hebraico, Ariel Sharon, à Mesquista de Al-Aqsa, na cidade velha de Jerusalém, no lado palestiniano já quase ninguém acreditava no processo negocial com Israel.

Dentro das fileiras da Autoridade Palestiniana faltavam interlocutores e apenas um homem continuava focado nessa missão: Saeb Erekat. Era o rosto da diplomacia e da negociação em terra de conflito. Morreu aos 65 anos no passado dia 10 de Novembro num hospital israelita em Jerusalém ocidental, por complicações provocadas pela covid-19, desaparecendo, assim, uma das poucas figuras consensualmente respeitadas interna e externamente por diferentes quadrantes políticos e estatais. O “Dr. Erekat”, como a ele se dirigia respeitosamente qualquer cidadão comum da Cisjordânia ou da Faixa de Gaza, fosse da Fatah ou do Hamas, foi o principal rosto palestiniano no interminável processo negocial. Ao longo de um quarto de século foi um dos membros da Autoridade Palestiniana mais próximos de Yasser Arafat e de Mahmoud Abbas, tendo sido quase sempre o chefe-negociador junto da comunidade internacional.

Desde a Conferência de Paz de Madrid, em 1991, Erekat esteve presente em todos os acordos e planos negociais. Todas estas tentativas fracassaram. Outra coisa não seria de esperar. Podem ser encontradas inúmeras razões, mas a explicação mais certeira é aquela mais óbvia e que há muitos anos vários palestinianos me disseram: a causa palestiniana serve apenas para os “irmãos árabes” ficarem bem na fotografia, porque, na prática, nunca existiu uma verdadeira solidariedade pan-árabe em relação à questão israelo-palestiniana. Talvez também por isso o pensador e professor Edward Said (1935-2003), uma das grandes referências culturais palestinianas, tenha escrito um dia que “a história palestiniana tomou um curso peculiar e muito diferente da história árabe” (The Question of Palestine, Vintage Books, 1992 [ed. orig.1 972]).

O que se assistiu historicamente foi uma instrumentalização da causa palestiniana – muitas vezes, através de meras operações de relações públicas – para servir interesses próprios de Estados árabes vizinhos e até mesmo de Washington ou Moscovo (ainda no cenário de Guerra Fria), sem que tal implicasse uma efectiva pressão sobre Israel na prossecução de uma solução permanente que servisse os interesses palestinianos.

O que se viu recentemente com o acordo patrocinado por Washington entre os Emirados Árabes Unidos e Israel, “embrulhado” como uma oportunidade de “paz e prosperidade” para os palestinianos, é um excelente exemplo desse aproveitamento e que, na verdade, não é mais do que uma réplica do que já tinha acontecido com os acordos de paz entre o Egipto e Israel, em 1979, e entre a Jordânia e o Estado Hebraico, em 1994. Todos eles sob os auspícios de Washington, deixando satisfeitas as partes envolvidas, trazendo claros benefícios para a região em termos de estabilidade, mas deixando os palestinianos cada vez mais isolados, na medida em que os seus “irmãos” trocariam a solidariedade pela “realpolitik”, sem que com isso promovessem qualquer contrapartida para a independência do povo palestiniano.

A história palestiniana está cheia de traições dos vizinhos árabes. Uma delas aconteceu logo a seguir à Guerra do Golfo, quando o secretário de Estado norte-americano de então, James Baker, realizou várias viagens à região para promover um espírito de concórdia, mas ao mesmo tempo toda a comunidade palestiniana que teve de fugir do Kuwait aquando da invasão das tropas iraquianas foi impedida de regressar às suas casas após o fim do conflito. Milhares de palestinianos acabaram por ser obrigados a deslocarem-se para a Jordânia, sobrecarregando, ainda mais, os campos de refugiados que ali existiam (e existem).

Anos depois, Washington, através do então Presidente Bill Clinton, acabaria por conseguir sentar na mesma mesa palestinianos e israelitas, enquanto delegações únicas, através do Processo de Oslo, que se iniciaria em 1993 e culminaria em dois acordos, o primeiro dos quais assinado nos Jardins da Casa Branca, a 13 de Setembro desse ano, entre Yasser Arafat, na qualidade de líder da OLP, e Yitzhak Rabin, enquanto primeiro-ministro israelita – que seria assassinado dois anos depois por um judeu ortodoxo.

Ficou célebre aquele aperto de mão entre os dois antigos inimigos – e aquela fotografia “behind the scenes” momentos antes de ser assinado o documento, com Clinton, Mubarak, Hussein e Rabin em privado a ajeitarem as suas gravatas em frente ao espelho, sob o olhar atento de Arafat. Apesar do rejúbilo da comunidade internacional, para muitos palestinianos foi uma traição. E, mais tarde, os próprios líderes, incluindo Arafat, perceberam isso à custa da dura realidade.

Aquilo que era para ser o início de um processo em direcção à construção de um Estado Palestiniano independente acabou por ser um fim em si mesmo. Ou seja, os Acordos de Oslo consolidaram e formalizaram uma situação intermédia que, embora contemplasse alguns avanços – como a criação da própria Autoridade Palestiniana, a retirada israelita da Faixa de Gaza e de algumas zonas da Cisjordânia, ou a soberania policial palestiniana em áreas determinadas –, deixava em suspenso por tempo indeterminado tudo o resto (capital do país, retorno dos refugiados, impostos, colonatos judaicos, acesso a recursos hídricos, ente outras questões vitais). Com a morte de Rabin deixou de haver condições e vontade do lado israelita para se concretizar o Processo de Oslo até ao seu fim. E o que estava em prática, além de servir os interesses de Israel e agradar à comunidade internacional, tinha a legitimidade de ter sido aceite e assinado pelos palestinianos.

Oslo foi para muitos palestinianos uma “opção errada” e, por isso, nunca perdoaram o seu antigo líder Arafat pelas concessões feitas nesses acordos ou por ter sido tão ingénuo ao ponto de acreditar nas suas virtudes. Se Rabin não tivesse sido assassinado, quem sabe se Oslo não teria sido um sucesso, mas a história dos povos não se faz com realidades alternativas.

Opção errada ou não, a verdade é que outras alternativas eram mera ilusão. O sonho foi-se esvanecendo e Oslo seria o máximo que Israel estaria disposto a dar, bem longe daquilo que estaria contemplado nas Resoluções do Conselho de Segurança da ONU 242 e 338. Como escreveu Said, também ele um feroz crítico de Oslo, a história palestiniana “está cheia de opções erradas e até mesmo de catástrofes para as quais, na altura, as alternativas plausíveis eram apenas teóricas e, efectivamente, irrealizáveis”.

“Catástrofes” que marcaram profundamente a consciência colectiva dos palestinianos, como a data de 14 de Maio de 1948, que instituiu o Estado de Israel. Ou ainda o dia 2 de Novembro de 1917, com a Declaração Balfour, através da qual Londres, pela pena do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Arthur Balfour, manifestou o apoio da Inglaterra ao movimento sionista, na pessoa de Lord Rothschild, para a criação de um Estado hebraico na Palestina, numa altura em que a presença de judeus naquela região estava circunscrita a uma pequena minoria. Para muitos palestinianos, este foi o pecado original para todos os males.

Importa referir que, após a criação do Estado de Israel, a causa palestiniana foi mobilizando a comunidade internacional, chegando a ser nos anos 70 acarinhada pela maioria dos movimentos políticos progressistas em todo o mundo, não havendo figura de relevo ou “freedom fighter” que não se identificasse com a sua luta, transigindo com os vários atentados terroristas realizados por facções e grupos militares, directa ou indirectamente, ligados à OLP de Arafat.

Nesta altura, mesmo no seio da cúpula palestiniana, instalou-se a ideia materializável da coexistência de dois Estados independentes na Palestina. O problema é que no final dos anos 70 começa-se a criar um ambiente político em Israel que vira à direita, para dar lugar a vários Governos do Likud, entre 1977 e 1992, praticamente de forma ininterrupta, liderados por Menachem Begin e Yitzhak Shamir. Os anos 80 foram dramáticos para os palestinianos a vários níveis. Conflitos no Líbano, na Jordânia, os massacres de Sabra e Shatila, entre outros episódios. Nos territórios ocupados da Cisjordânia e da Faixa de Gaza estala a primeira intifada, que ficou conhecida como a “Guerra das Pedras”.

O fim da Guerra Fria e dos seus alinhamentos perversos, a globalização e a crença ingénua de que um admirável mundo novo liberal e pacífico estava a despontar, e o entusiasmo do carismático Clinton aliado à chegada dos trabalhistas ao poder em Israel, com Shimon Peres e Yitzhak Rabin, foram alguns dos factores que permitiram criar um certo desanuviamento no quadro da problemática israelo-palestiniana e que conduziria a Madrid e depois a Oslo. Estava aberta uma janela de oportunidade, mas foi efémera. Na segunda metade dos anos 90 as esperanças que ainda havia foram esmorecendo e o processo foi-se degradando. Nos territórios da Cisjordânia o descontentamento e a frustração aumentavam. Para a história, começava um dos períodos mais sangrentos entre palestinianos e israelitas desde que o Estado de Israel fora fundado. A intifada de al-Aqsa estava nas ruas.

Apesar das frustrações e da falta de apoio dos “irmãos” árabes, Saeb Erekat nunca cedeu à fácil tentação de cair na radicalização do discurso ou na defesa da violência. Conheci-o nesse Verão de 2001, onde tive oportunidade de o entrevistar para o Expresso, na sua cidade natal de Jericó, na altura sitiada pelas Forças de Segurança Israelitas (IDF) – só à segunda tentativa consegui entrar.

Nessa entrevista, e apesar da violência diária que se fazia sentir nas ruas das cidades da Cisjordânia e Faixa de Gaza, dos feridos e mortos, da pobreza, dos confinamentos e checkpoint impostos arbitrariamente pelas IDF, Erekat reforçou o seu compromisso com o processo negocial, apelando à comunidade internacional para que mobilizasse observadores externos. E, ao recuperar essa entrevista, há uma das frases que resume bem o que ele sempre defendeu: “Nós queremos que o processo de paz chegue a bom porto. Desde Madrid que tentamos que as resoluções da ONU sejam aplicadas para atingirmos a independência. Porém, Israel não cumpre os acordos e continua com a expansão dos colonatos. Nós queremos atingir os nossos objectivos pacificamente, pois estamos a pagar um preço muito alto. Queremos um processo de paz que acabe com esta ocupação, através da concretização das Resoluções 242 e 338 das Nações Unidas.”

Naquela altura, Erekat era o único que ainda se fazia ouvir, porque Arafat já se havia desligado há muito do processo, sendo aliás visto por Israel como um alvo a abater. Os anos passaram e Erekat continuou a tentar, mas condenado ao insucesso e sem que do lado palestiniano se tivesse desenvolvido qualquer tipo de estrutura negocial sólida para lidar com esta questão. Com a morte de Erekat deixou de haver interlocutor, como sublinhavam há dias no Haaretz antigos diplomatas americanos que trabalharam ou conheceram aquele negociador.

Sobretudo a partir do falhanço de Oslo, o sistema político palestiniano e as suas elites foram-se acomodando a um status quo que sempre funcionou a favor de Israel, mas que também trouxe algumas comodidades políticas para os governantes em Ramallah, desresponsabilizando-os dos erros da gestão quotidiana dos territórios da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Também uma parte do povo – não obstante as provações diárias de que foi e é alvo – se resignou a uma lógica de vitimização constante, culpabilizando o “inimigo” por todos os males nos territórios. Como um dia me disse um jovem palestiniano: “Podemos culpar os israelitas por muitos dos nossos problemas, mas não podemos culpá-los por tudo. Chegámos a um ponto em que, se temos um botão a desprender-se da nossa camisa, culpamos os israelitas.”

Com os anos a passarem e a ausência de uma solução efectiva, o território palestiniano foi sempre encolhendo (basta olhar os mapas) e os direitos de soberania minguando. O cumprimento das Resoluções 242 e 338 é hoje uma miragem. A morte de Erekat não deixa também de ser, simbolicamente, o fim da réstia de esperança que, porventura, alguns ainda teriam na criação de um Estado Palestiniano em condições mínimas de independência. Ainda há uns dias, foi anunciado que a Autoridade Palestiniana ia retomar as relações com Israel, nomeadamente ao nível da coordenação de segurança e de política fiscal, depois de Telavive se ter comprometido a guiar pelos acordos assinados entre as duas partes. Isto pouco significa em termos de processo de paz, porque o que está em causa com estas “relações” é apenas a gestão quotidiana entre territórios. É uma necessidade prática de Telavive e Ramallah perante duas realidades de tal forma intrincadas social, económica e geograficamente, que estão condenadas a conviverem, seja com uma solução de dois Estados independentes ou não.

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.

Portugal à conquista de novo território

Alexandre Guerra, 29.09.20

“A política dos Estados está na sua geografia”, terá escrito Napoleão em 1804 numa carta enviada ao Rei da Prússia, para enfatizar a importância do território como factor de poder nas relações internacionais. No início do século XIX talvez fosse ainda o mais importante, aquele que, porventura, mais vezes ditou o desfecho de guerras. Seja como for, mais de duzentos anos depois da missiva do imperador francês, o critério do território perdeu algum do seu peso na hierarquização das potências no sistema internacional, no entanto, continua a ser um importante atributo na caracterização do poder das nações. Por essa razão, a sua conquista – legal ou ilegal, formal ou informal – permanece como um objectivo válido na política externa de alguns Estados. Veja-se, por exemplo, a disputa do Ártico pela Rússia, a expansão chinesa ao Mar do Sul da China através da apropriação e transformação de vários ilhéus em bases militares, ou a construção de colonatos israelitas na Cisjordânia. Citando três exemplos que correspondem a diferentes tipos de motivações. No caso de Israel, a conquista territorial apresenta-se como uma questão de sobrevivência do seu Estado. Há uma necessidade de aumentar a sua profundidade estratégica. Já a política expansionista territorial desenvolvida por Pequim é uma afirmação de poder de um país que se assume como uma superpotência mundial e que vê como natural o controlo espacial do que considera ser a sua esfera de influência. Moscovo, por seu lado, não vê no Ártico uma motivação em termos de segurança ou de projecção de poder no sentido mais clássico. O que mobiliza o Kremlin são factores económicos e energéticos

A última vez que Portugal tinha embarcado numa tentativa de conquista de novo território foi, precisamente, no século XIX. Era o sonho imperial da África Meridional Portuguesa, que estenderia a soberania portuguesa da costa atlântica à costa índica, entre Angola e Moçambique. De certa maneira, 130 anos depois, Portugal volta a abraçar o desígnio nacional de alargamento do seu espaço territorial para além das fronteiras definidas e reconhecidas. É um feito grandioso que está em curso, mas desta vez assente em pressupostos realistas que o podem tornar concretizável e aceitável à luz do Direito Internacional.

Das notícias que se vão lendo e do que se vai sabendo, parece haver boas probabilidades de vir a ser reconhecida formalmente a Portugal, num futuro não muito longínquo, a tão ambicionada extensão da sua Plataforma Continental numa área muito considerável para além do limite das 200 milhas náuticas da Zona Económica Exclusiva (ZEE). Quando acontecer – como se espera –, será um dos momentos marcantes da História de Portugal, porque a comunidade internacional reconhecer-lhe-á uma nova configuração em termos de soberania de território.

Tem sido um processo longo, laborioso e muito técnico, envolvendo várias disciplinas e entidades, como o Instituto Hidrográfico ou o IPMA, e conduzido pela Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental (EMEPC), que tem trabalhado na “fundamentação e defesa da proposta de Portugal, junto das Nações Unidas, para a determinação do limite exterior da plataforma continental para além das 200 milhas marítimas das linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial”. Na prática, Portugal, o Estado costeiro, pretende alargar os seus direitos de soberania no solo e subsolo das áreas submarinas para efeitos de exploração e aproveitamento dos seus recursos naturais.

O processo submetido em 2009 à Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) no quadro da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que prevê a demarcação dos limites exteriores da sua plataforma continental para além das 200 milhas náuticas, é em si mesmo uma fonte de conhecimento científico. Porém, além das questões técnicas envolvidas num processo tão complexo e das potencialidades de exploração dos recursos naturais subjacentes a um vasto território, existe uma dimensão geopolítica e geoestratégica que merece uma reflexão profunda e que, inevitavelmente, terá de ser enquadrada na visão de Portugal no mundo para as próximas décadas. A extensão da Plataforma Continental não pode nem deve ser encarada exclusivamente numa lógica economicista ou oportunista.

É muito mais do que isso. É uma mobilização colectiva da identidade nacional, que moldará o papel de Portugal no sistema internacional e na forma como assumirá nas décadas vindouras temas estratégicos para a Humanidade, tais como as questões ambientais e a protecção dos mares, o combate ao tráfico ilegal de pessoas e a vigilância do Altântico Norte, ou as relações entre a Europa e a América, entre a Europa e África. São muitas as dimensões para lá das potencialidades económicas. Ao “conquistar” uma imensidão de território, Portugal está a projectar a sua soberania nas relações internacionais. O que está em causa é a definição de um novo limite externo do solo e subsolo marinhos. Ou seja, um limite até onde o Estado pode exercer poderes de soberania e jurisdição (já exerce alguns no âmbito do processo em curso).

Espera-se que a CLPC venha a reconhecer todo o trabalho que está a ser desenvolvido pela EMEPC. Será um dia histórico, para o qual as elites e a opinião pública em geral ainda não estão verdadeiramente sensibilizadas. Há tempo para esse trabalho de pedagogia, mas terá de ser feito. Se é verdade que a candidatura em curso já implica um esforço técnico e financeiro considerável, chegará o momento em que Portugal necessitará de assumir convictamente as suas responsabilidades e deveres na gestão daquele que será o seu novo território. E nessa altura, os portugueses têm de estar cientes de que existirão, muito provavelmente, investimentos que terão de ser feitos.

Como alertava recentemente o Almirante António Silva Ribeiro, Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, “as responsabilidades decorrentes da extensão da plataforma continental reforçam o requisito de maior presença aeronaval no nosso vasto espaço atlântico e, sobretudo nas regiões autónomas onde é reduzida” (Sábado, 27 de Agosto). Por presença aeronaval leia-se capacidade naval e aérea para assegurar o exercício de soberania nacional em toda a plenitude no novo território.

A História já ensinou a Portugal que a ambição desmesurada de conquista territorial sem a capacidade efectiva para a sua concretização resulta em desastre. A lição do tristemente célebre “Ultimato inglês” de 1890 foi dura e humilhante, mas compreensível à luz daquilo que eram os novos contornos das regras internacionais. A ilusão do Mapa Cor-de-Rosa assentava no princípio dos “direitos históricos” e num ambiente europeu que já não existia. A nova realidade sistémica saída da Conferência de Berlim (1884-85) era de competição entre as potências europeias em África e impunha o novo princípio da “ocupação efectiva”. Portugal, por mais ambição e engenho diplomático que tivesse, não tinha as ferramentas necessárias para concretizar o seu sonho africano.

Se as Nações Unidas anuírem nas pretensões nacionais, estarão certamente a dar como válidas todas as garantias que as autoridades portuguesas terão dado quanto às suas capacidades civis, científicas e militares para assegurar os compromissos e responsabilidades inerentes a tamanha tarefa. O alerta do CEMGFA vai nesse sentido, já que se perspectiva a necessidade de investimentos em material militar e técnico. É importante lembrar que Portugal é um dos países do mundo com a maior ZEE, onde várias entidades militares e civis exercem a soberania, nomeadamente a Marinha e a Força Aérea Portuguesa (FAP). Além de todas as operações militares inerentes ao conceito mais clássico de Segurança & Defesa, a soberania na ZEE acarreta inúmeras obrigações, tais com a fiscalização e controlo das actividades de pesca, a detecção e controlo de actividades ilícitas, o combate à imigração Ilegal, busca e salvamento, entre outras.

Além do seu papel importante no combate às ameaças, os meios militares surgem como importantes elementos dissuasores de potenciais movimentações hostis em relação aos interesses portugueses. Da usurpação de recursos naturais à violação de tratados internacionais de pesca por parte de Estados vizinhos, passando pela poluição dos mares provocada por embarcações estrangeiras através de lavagens ilegais de tanques ou de derrames, as forças militares desempenham, muitas vezes, um trabalho pouco visível ao grande público, mas de enorme importância para Portugal.

Embora a Plataforma Continental compreenda “apenas” o solo e subsolo marinhos (e não a coluna de água), a sua extensão para além das 200 milhas náuticas da ZEE obrigará a um reforço da presença aeronaval no Atlântico, porque essa área passará a fazer parte do território português. Além da protecção dos seus recursos naturais vivos e minerais marinhos no solo e subsolo, Portugal tem de ter capacidade para enfrentar ou dissuadir a parafernália de potenciais ameaças acima identificadas.

Quando há mais de 15 anos se gerou um debate tão aceso por causa da aquisição de dois submarinos mais modernos da classe Tridente, ficou demonstrado que uma parte das elites e da opinião pública ainda não estava sensibilizada para as exigências de um território marítimo como o português. Atente-se ao seguinte: actualmente, a ZEE equivale a quase 20 vezes o território nacional terrestre; é a terceira mais extensa da UE e a décima primeira a nível mundial. Esse debate tornou-se ainda mais desajustado se tivermos em consideração que os submarinos são um instrumento racional, com características únicas quanto à sua capacidade de agir de forma encoberta, sendo de enorme valia enquanto dissuasor de ameaças, já para não falar no seu longo raio de alcance. O seu potencial é extraído ao máximo quando usado em complementaridade com outos meios, sejam marítimos, aéreos ou terrestes.

Se queremos que Portugal seja efectivamente o “país do mar” num mundo de ameaças assimétricas, não podemos olhar para aquisição de material militar para a defesa do seu território marítimo como um luxo ou capricho, mas, sim, como uma necessidade – por exemplo, há muito que Portugal talvez já devesse ter investido num navio polivalente logístico, dotada para missões humanitárias ou crises de saúde pública.

Neste aspecto, importa reconhecer, encontra-se algum conforto no célebre documento “A Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030”, da autoria do consultor governamental António Costa Silva, no qual o mar é apresentado como um dos vectores fundamentais no reposicionamento de Portugal no sistema internacional. E é por isso que “é fundamental reforçar a capacidade de conhecimento, controlo e fiscalização do mar”, sendo “necessário acelerar o programa de construção dos navios-patrulha oceânicos e apostar em capacidade de vigilância própria no espaço”.

A julgar pela estratégia plasmada nesse documento, há uma perspectiva de “renascimento comercial e energético” para o Atlântico. “Se olharmos para a geopolítica mundial, nós temos uma posição absolutamente extraordinária. O maior dos nossos recursos é o recurso geográfico e, como dizem muitos analistas de geopolítica, a geografia é a determinante primária do nosso destino”, lê-se.

Perante a dimensão e o alcance de tamanho empreendimento, a extensão da Plataforma Continental reforçará o estatuto de Portugal como potência central no Atlântico e como player mundial na gestão dos oceanos. Espera-se, assim, que os governantes portugueses, as suas Forças Armadas e o seu Povo estejam à altura desta missão.

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.

Srebrenica, o genocídio que a Europa não pode esquecer

Alexandre Guerra, 13.07.20

Quem visite o memorial e cemitério de Srebrenica (localizado na povoação vizinha de Potacari) é confrontado com uma visão impressionante que nos confronta com o mais vil e perverso projecto político nacionalista que a Europa viveu desde a II Guerra Mundial. Milhares de lápides brancas que repousam sobre um manto de relva, no meio de uma floresta verdejante por onde, há precisamente vinte e cinco anos, mulheres, homens e crianças bósnias muçulmanas tentaram, em desespero, fugir das forças militares bósnias sérvias. Alguns conseguiram, mas outros foram capturados, levados para “killing sites” e mortos. Os corpos foram enterrados em valas comuns espalhadas por diferentes locais desconhecidos naquela região remota da Bósnia-Herzegovina.

Hoje, celebra-se um quarto de século sobre o genocídio de Srebrenica. Todos os anos, neste dia 11, é realizada uma cerimónia naquele memorial, onde vão a enterrar novos corpos identificados que, entretanto, foram exumados das muitas valas comuns que circundam a área. É um processo doloroso que parece não ter fim, porque embora esteja identificado o número oficial de vítimas (8372), muitos corpos continuam desaparecidos, para desespero dos familiares sobreviventes.

Entre 11 e 22 de Julho de 1995, no enclave muçulmano de Srebrenica, considerada uma “safe zone” pela ONU, foram assassinados mais de 8 mil bósnios muçulmanos (bosniaks), num massacre sistematizado contra rapazes e homens, levado a cabo pelas forças militares da República Srpska (entidade sérvia auto-proclamada em 1992 dentro da Bósnia-Herzegovina). Este Exército era comandado pelo General Ratko Mladic, sob as ordens políticas de Radovan Karadzic, o Presidente de então daquela entidade política e conhecido como o “carniceiro da Bósnia”. O objectivo era claro: a limpeza étnica do enclave muçulmano de Srebrenica integrado numa região predominantemente bósnia sérvia. Tudo fazia parte do projecto para a criação da Grande Sérvia.

O Tribunal Penal Internacional para os Crimes da Ex-Jugoslávia (ICTY) acabaria por dar como provado o “genocídio” e condenar Mladic e Karadzic por aquele crime, assim como “crimes de guerra” e “crimes contra a Humanidade”. Ambos estão a cumprir pena.

Os trágicos acontecimentos de Julho de 1995 aconteceram perante a impotência do tristemente célebre contingente holandês de “capacetes azuis” estacionado no Quartel-General da Força de Manutenção de Paz das Nações Unidas (UNPROFOR) em Potacari, a poucos quilómetros de Srebrenica. Com a ofensiva de Mladic sobre esta localidade no dia 11, cerca de 20 mil a 30 mil bosniaks meterem-se em fuga pela floresta densa que cobre toda a aquela região. Muitas destas pessoas dirigiram-se para as instalações da UNPROFOR, uma antiga fábrica de baterias. Algumas centenas foram acolhidas num dos seus armazéns (que hoje em dia recebe exposições relativas ao genocídio), mas a maioria foi deixada à sua sorte e voltou a fugir para a floresta. Muitos homens foram capturados e mortos nos dias que se seguiram. Mulheres e crianças foram obrigadas a abandonar a região. Os relatos de testemunhas falam de gritos vindos da floresta. 

Para a história, o contingente holandês ficou associado negativamente a estes acontecimentos e ainda hoje, por um certo sentimento de culpa, segundo me informaram, muitos dos seus soldados acompanham a título pessoal as famílias das vítimas. O próprio Governo holandês apoia diversos projectos solidários. Mas vale a pena estudar com muita atenção tudo o que falhou ao nível da hierarquia de comando da ONU, para se perceber que muito podia ter sido feito para se evitar aquele genocídio, já para não dizer que as "rules of engagement" dos soldados holandeses nem sequer lhes permitiam disparar em legítima defesa.

Quando se deram estes acontecimentos estava a ultimar a minha entrada na universidade para o curso de Relações Internacionais. Era um jovem atento e apaixonado por aquelas temáticas e, por isso, estava profundamente sensibilizado e impressionado pelos anos de conflito nos Balcãs (1991-95). Ninguém esquece as imagens de horror e os relatos de barbárie que nos chegavam pelas grandes cadeias de televisões e jornais (incluindo o PÚBLICO), sobretudo da Bósnia, onde a guerra (1992-95) se fez sentir com particular violência, e que terá provocado no total mais de 100 mil mortos. Eram imagens dos “campos de concentração” sérvios, com milhares de homens, mulheres e crianças bósnias com corpos esquálidos à beira da morte. Massacres, perseguições étnicas, valas comuns, tudo a acontecer quase em directo aos olhos de todos e no interior da Europa (de Sarajevo a Viena não são mais do que 800 km).

O genocídio de Srebrenica foi o epílogo sangrento de todo esse conflito. A maior vergonha europeia dos últimos 75 anos e o mais trágico falhanço político-diplomático europeu desde a II GM. Nenhum europeu deve esquecer este trágico acontecimento, porque além de todo o sofrimento e morte, ele foi a expressão mais hedionda dos nacionalismos radicais numa Europa que se apresentou sempre como o farol da liberdade e dos valores humanistas. Os mais novos, que não têm memória do conflito, devem estudá-lo e compreendê-lo.

Por aqueles locais cometeu-se um extermínio em massa e hoje em dia continua a ser muito inquietante e perturbador lidar com a "normalidade" vigente. Até a empresa de autocarros que transportou sistematicamente centenas de bosniaks para os locais de extermínio ainda opera. Está lá! E perguntamo-nos: Como é possível? É difícil explicar. A verdade é que nada pode ser normal numa região que sofreu um trauma tão sangrento. Antes da limpeza étnica, o município de Srebrenica tinha cerca de 36 mil habitantes, na sua maioria muçulmanos. Hoje, esse número deverá andar por volta dos 7 a 10 mil. Na cidade propriamente dita, vivem agora apenas algumas centenas de pessoas. O ambiente é pesado e lúgubre e ainda se vêem resquícios físicos daqueles dias.

Em finais de Agosto de 2018 tive a oportunidade de visitar aquela zona. Depois de muitos anos a estudar e a ler sobre toda aquela realidade, percebi que, à semelhança do que já me tinha acontecido com o conflito israelo-palestiniano, nunca a iria compreender na sua plenitude se não fosse ao terreno. Do que vi e ouvi em Srebrenica e em Potacari, impressionou-me particularmente o testemunho doloroso, durante mais de uma hora, de um homem que, na altura criança, escapou à morte, mas perdeu o pai e o irmão no genocídio. E o mais tocante é que essa pessoa agora adulta aparece de passagem num documentário, onde se mostram imagens da altura, com colunas de centenas de pessoas a fugirem de Srebrenica para localidades circundantes. E lá está ela, a criança assustada, no meio de um conflito que servia apenas o propósito de Slobodan Milosevic: criar entre a Sérvia e a República Srpska uma homogeneidade étnica e religiosa. E o mais dramático é que comparando-se os mapas demográficos de antes de 1992 e depois de 1995, que podem ser vistos no antigo Quartel da UNPROFOR, constata-se que a ideia da "Grande Sérvia” protagonizada por Milosevic fez uma parte do caminho.

Nestes tempos que correm, com uma certa descontração e ignorância, muito se fala de nacionalismos e de líderes extremistas e também por essa razão é que escrevo este texto. As pessoas esquecem rapidamente e, muitas vezes, os líderes e as sociedades pouco aprendem com a História. Depois de ver e sentir as memórias de Srebrenica e em homenagem aos que ali morreram, é cada vez mais forte a minha convicção de que extremismos e nacionalismos devem ser combatidos com todas as nossas forças. Para que, como disse o imã de Potacari na inauguração do memorial/cemitério de Srebrenica a 11 de Julho de 2001: "That Srebrenica never happen again, to no one and nowhere".

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.

O regresso do Estado e as esferas de influência

Alexandre Guerra, 15.04.20

Num acontecimento de proporções históricas como aquele que vivemos só o Estado poderá conduzir o seu povo ao tão almejado “pico” e trazê-lo para baixo sem que o caos e o desespero se instalem. Só ele tem o poder e a autoridade para tal feito. É a única construção política que reúne os recursos e elementos necessários para mobilizar a sociedade no seu todo. É a única entidade capaz de governar em tempo de “guerra”. Não está aqui em causa qualquer apreciação valorativa no âmbito da eterna discussão ideológica de qual deve ser o papel do Estado na vivência das sociedades. É sobretudo uma questão de necessidade, quase de sobrevivência, perante algo tão perturbador que se sobrepõe a todas as outras formas intermédias de organização social e política.  

Como diz o Professor Adriano Moreira no seu manual de Ciência Política, “sempre que se admite que existe alguma coisa superior ao homem, a alternativa comum é entre Deus e o Estado”. Se partirmos do princípio que até Deus está de “quarentena”, resta o Estado. Nas guerras e nos cataclismas regressa-se sempre à fórmula mais clássica, na qual o Estado toma conta dos “seus”, do seu povo. Ainda há uns dias, aqui no PÚBLICO, Jorge Almeida Fernandes, num artigo de opinião e Manuel Carvalho, em editorial, falavam precisamente no “regresso do Estado”. Talvez nem seja propriamente um regresso, mas sim um reassumir de protagonismo depois de vários anos remetido para uma certa secundarização face às “virtudes” da “aldeia global”, com o Estado despolitizado, confinado à sua função minimalista de regulador nos sistemas das democracias liberais. Provavelmente, seria aquilo que Raymond Aron chamava de apaziguamento ideológico, uma tese que, segundo Adriano Moreira, nos conduziria à ilação lógica de que o Estado tenderia mais para ser uma “administração de coisas do que um governo de pessoas”.

Abruptamente, a ameaça de um vírus num distante mercado chinês concretiza-se em contagem diária de mortes e infectados em todo o mundo. É uma “guerra”, dizem muitos. E desta vez verdadeiramente mundial, com praticamente todas as nações afectadas (ou infectadas). Os cidadãos planetários “desligam-se” apressadamente do mundo global e — provavelmente no maior movimento de massas de sempre da História em tão curto espaço de tempo – recolhem às suas fronteiras, aos seus lares. Em muitos casos, poderíamos falar num regresso às origens, à mais antiga forma de organização social: a família.

As sociedades ficam reduzidas aos serviços mínimos. Em modo de sobrevivência, impõem-se medidas drásticas em temos de confinamento social e, se calhar, pela primeira vez nas nossas vidas, somos confrontados brutalmente com essa verdade aristotélica de que “cada homem é inevitavelmente sócio de outro homem”. Neste cenário, com contornos distópicos, os cidadãos procuram segurança e liderança na única entidade que está em condições de lhes assegurar isso: o Estado. Tem sido ele que conduz os povos nos grandes combates, nos feitos e nas desgraças. O Estado chegou-se novamente à frente e, para o bem ou para o mal, também os seus líderes (não surpreendem os bons números que estudos de opinião atribuem a alguns governantes). Se analisarmos os três acontecimentos com implicações sistémicas dos últimos 80 anos, confirma-se essa realidade. Na hora do aperto, na “darkest hour”, é o Estado que lidera. Foi assim na II Guerra Mundial, no fim da Guerra Fria e no 11 de Setembro.

Ao compararmos estes tempos disruptivos com as duas crises do pós-II GM com reflexos sistémicos, conclui-se que nem o fim da Guerra Fria nem o 11 de Setembro provocaram perturbações desta dimensão na vivência das sociedades. Sabemos, no entanto, que estes dois momentos históricos tiveram implicações sistémicas imensas, especialmente os acontecimentos ocorridos entre 1989 e 1991, que representaram aquilo a que se chama “ruptura” no paradigma das relações internacionais. Momentos raros que nem todas as gerações têm o privilégio de viver. Por sua vez, o 11 de Setembro veio “clarificar” um pouco essa transição sistémica, ao pôr cobro ao sonho idílico da “paz kantiana” e ao deitar por terra, de uma vez por todas, algumas teorias interessantes, mas ingénuas, de que a história política e ideológica tinha acabado, perante aquilo que consideravam ser o triunfo absoluto da “hegemonia liberal”.

No seu recente livro “Guerra e Paz – Uma História Política do Mundo” (D. Quixote, 2019 [ed. Orig. 2018]), Jonathan Holslag, professor de Política Internacional na Universidade Livre de Bruxelas, observa isso mesmo: “Após a queda da União Soviética, o debate foi dominado por estudiosos optimistas, os chamados liberais, que defendiam a ideia de que as trocas comerciais tornavam as entidades políticas mais dependentes umas das outras e que essa interdependência tornava os conflitos mais dispendiosos, e os chamados construtivistas, que partiam do princípio de que as normas internacionais dissuadiam as entidades políticas de usarem a força umas contra as outras e que mesmo o seu próprio ADN poderia ser alterado, afastando-as de uma predisposição para uma maior concentração no bem comum” (considero que o conceito de “interdependência complexa” que Joseph S. Nye e Robert Keohane desenvolveram teve alguma validade até determinados limites).

As transições sistémicas podem demorar anos até que se perceba de forma clara a mudança de um paradigma para outro. Trinta anos, para todos os efeitos, não é assim tanto tempo em termos históricos. Por outro lado, é tempo suficiente para se perceber que a ideia inicial de um mundo unipolar ou unimultipolar liderado pelos Estados Unidos caiu por terra. Era o tal “Unipolar Moment” de que Charles Krauthammer falava em 1990. Ruiu o entusiasmo que muitos em Washington criaram sobre os escombros da União Soviética, na esperança de poderem exportar universalmente os valores da democracia e do liberalismo. Seria a vitória mundial das chamadas democracias liberais. Uma ingenuidade que os Estados Unidos (e não só) pagaram muito caro. De certa maneira, houve uma certa dificuldade por parte de vários sectores em Washington em aceitar a realidade sistémica do pós-Guerra Fria como ela é e não como alguns gostariam que fosse.

E por isso, Holslag acrescenta a vertente realista à sua reflexão: “Nos últimos anos, no entanto, a voz dos intelectuais politicamente realistas tornou-se mais audível. Eles acreditam que as entidades políticas sempre envidarão esforços por obter autonomia, segurança e poder; por consequência, é improvável que a cooperação e a paz sejam sustentáveis. O mundo mantém-se nas garras da anarquia, o que, para estudantes de política internacional, significa competição perpétua entre entidades políticas e a ausência de uma força duradoura que possa arbitrar ou resolver as suas disputas.”

O autor tem razão quando escreve que “esta transição de um idealismo optimista para um realismo pessimista não é nada de novo”. A História dá-nos inúmeros exemplos, sendo que talvez o caso mais recente nos remeta para o período do final da II GM e anos subsequentes, onde duas visões sistémicas se confrontaram sobre o que seria o mundo das décadas vindouras. Dois homens personificaram este embate de paradigmas, ambos “The Wise Men”, especialistas em assuntos soviéticos: Charles Bohlen, principal conselheiro do Presidente Franklin Roosevelt nestas matérias, e George F. Kennan, vice-chefe da missão americana em Moscovo logo a seguir à Guerra. A visão de “um mundo” pacificado e liderado pelos Estados Unidos preconizada por Bohlen não resistiu à perspectiva realista das “esferas de influência” e do “containment” defendida por Kennan.

Ciente das perversidades e males do regime de Estaline, Kennan não acreditava, no entanto, na ideia de um conflito directo entre as duas superpotências. A sua doutrina acabaria por favorecer uma solução intermédia de estabilidade e de “contenção” perante o avanço do comunismo na Europa e em diferentes partes do mundo. O seu pensamento ajudou a forjar o sistema bipolar da Guerra Fria que, em parte, viria assentar na “contenção” e na “dissuasão”, privilegiando-se, assim, a estabilidade sistémica através da manutenção de um status quo de equilíbrio de poderes, com momentos de fricção, mas sem confrontação directa. A tal Guerra Fria que mais tarde o sociólogo realista Raymond Aron viria a caracterizar de forma sábia, como um sistema onde “a paz é impossível, a guerra é improvável”.

É ainda cedo para se perceber as implicações sistémicas da crise que vivemos e que António Guterres classificou como sendo o maior desafio para as Nações Unidas desde a sua formação. Ou que Carl Bildt, ex-primeiro ministro sueco e diplomata com muita experiência em assuntos internacionais, nomeadamente nos Balcãs, considerou ser “a primeira grande crise do mundo pós-americano”. Como em qualquer crise na história política dos Estados, podemos estar perante acontecimentos que ajudem a consolidar e clarificar dinâmicas que se vinham afirmando nas relações internacionais.

Carlos Gaspar, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL), escreveu no brief de Março do Instituto de Defesa Nacional (IDN) que “a epidemia do novo coronavírus não é um ‘cisne negro’. Não é por sua causa que nada vai mudar no sistema internacional, mas o vírus pode ser um acelerador das mudanças dos últimos dez anos, patentes na erosão da ordem liberal internacional”. Também na sua coluna habitual no Expresso (4 de Abril), Miguel Monjardino, professor universitário e investigador em Relações Internacionais, sublinhou que nos últimos anos tem chamado a atenção “para a transição na ordem internacional e nas escolhas estratégicas das principais potências mundiais”. E acrescenta: “A pandemia está a ocultar todo este processo histórico, que continua em curso. O aumento da competição entre os EUA e a China, o enfraquecimento das instituições internacionais ou a proteção de sectores tecnológicos considerados estratégicos para a segurança nacional não começaram no final de 2019”. Para Miguel Monjardino, “a covid-19 está a funcionar como catalisador” de algo que, no entanto, não pode ser visto de forma determinista. Henrique Burnay, consultor em assuntos europeus, partilha igualmente dessa visão ao observar no DN (6 de Abril) que “a pandemia acelerou, mais do que revolucionou” a dinâmica que se tem vindo a verificar relativamente ao papel dos Estados Unidos no sistema internacional.

Parece haver algum consenso entre analistas na área das Relações Internacionais de que a actual crise que se vive, embora possa provocar algumas mudanças nas sociedades, não é por si só factor de ruptura no sistema internacional. Não é o tal “cisne negro”. Poderá ser sim, o “catalisador”, o “acelerador” para a solidificação do novo paradigma das relações internacionais. Ao fim de 30 anos de transição sistémica, esta pandemia dissipou os sonhos que ainda restavam de alguns iludidos em Washington que acreditavam cegamente nas virtudes daquilo que poderia ser um poder hegemónico dos Estados Unidos no mundo.

Hoje, são obrigados a aceitar que estão numa competição sistémica com a China, mas também com a Rússia. E espera-se que, para bem da União Europeia, também esta possa vir a ser uma “competidora” nas relações internacionais.   

Nesta linha de pensamento, Graham Allison, ainda antes de esta crise ter atingido as proporções que conhecemos, admitia que Washington parece ter finalmente despertado para a realidade tal como ela é, onde existe competição com outras duas grandes potências, a Rússia e a China. “Para os Estados Unidos, isso implica ter que aceitar a realidade que existem esferas de influência no mundo de hoje – e que nem todas elas são esferas americanas.” . Efectivamente, estas “novas esferas de influência” de que fala Graham Allison não são uma realidade que decorrem da actual crise. “As esferas de influência [no pós-Guerra Fria] deram lugar a uma esfera de influência [americana]. O mais forte impôs a sua vontade sobre o fraco; o resto do mundo foi compelido a jogar sob as regras americanas, se não enfrentava um preço alto a pagar, desde sanções agressivas a mudanças de regime. As esferas de influência não desapareceram; elas colapsaram numa só, sob o poder esmagador de facto da hegemonia dos Estados Unidos. Agora, no entanto, essa hegemonia está a esbater-se e Washington acordou para aquilo que se chama uma ‘nova era de competição pelo grande poder’”.

Basta uma análise simples para facilmente se constatar que, nos últimos anos, essas esferas de influência em termos territoriais foram ganhando força, sem que Washington tivesse doutrinado sobre esse paradigma, limitando-se a aceitá-lo tácita e cinicamente. Por exemplo, em pouco mais de dez anos, a Rússia invadiu a Abecásia e a Ossétia do Sul, declarando-as como “Estados independentes”. E anexou “de facto” a região de Donbass, no Leste da Ucrânia, e a Península da Crimeia. Da parte de Washington, ao bom e velho estilo da Guerra Fria, o caminho esteve sempre livre para Moscovo investir no seu “espaço vital”. Mais recentemente, a intervenção da Rússia no conflito da Síria trouxe ao de cima os antigos jogos geoestratégicos tão característicos das dinâmicas de competição e de partilha de poder nas relações internacionais. Esta análise aplica-se igualmente a Pequim que, nos anos mais recentes, procedeu em força à militarização do Mar do Sul da China. Ao mesmo tempo lançou uma autêntica ofensiva territorial e económica denominada “Belt and Road Initiative”, que mais não é do que alargar a influência chinesa a vários Estados. Também a opressão brutal da minoria uigure e a repressão das manifestações pró-democracia em Hong Kong foi outro exercício de poder autoritário, totalmente condenável à luz dos Direitos Humanos. Perante tudo isto, e tirando algumas declarações mediáticas inconsequentes e manobras de diversão da Marinha de guerra dos Estados Unidos, Washington foi aceitando este status quo. Naturalmente que estas esferas de influência vão continuar a ser reforçadas com outras componentes além da militar, tais como a económica, a tecnológica ou a científica.

A pandemia que se vive deverá ter destruído as ilusões daqueles que ainda acreditavam em soluções globais. Há apenas quatro meses, o mundo estava confrontado com a falência do combate político universal às alterações climáticas. Os líderes não se entendiam e os compromissos foram atirados para um futuro longínquo. A crise do Covid-19 colocou igualmente os países perante um problema global cuja resposta tem sido nacional. O esforço é internacional, mas há pouca cooperação transnacional. A “competição” adensou-se. E mesmo quando se fala em colaboração científica entre nações, o que se verifica é uma autêntica “corrida” à descoberta da cura para a doença, que é também uma competição de poder e de liderança entre os EUA e a China.

Sem certezas absolutas sobre o paradigma que enquadrará as relações internacionais nas próximas décadas, foram acima expostos elementos que nos permitem antecipar sistemicamente as próximas décadas. Claro está que é sempre um exercício com algum grau especulativo, mas relativamente confortável, porque só a médio e longo prazo conseguiremos ter uma ideia clara da evolução do sistema internacional e perceber o quanto esta crise foi importante na sua consolidação.

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.

Estrategos (e estratégias) por detrás dos líderes políticos

Alexandre Guerra, 03.02.20

 

O político carismático desempenha um papel. É esse a sua condição natural. Entre a esfera pública e o domínio privado há uma “cortina” que separa as duas dimensões. No entanto, nenhuma personagem política é construída a partir do zero, porque há sempre algo inato. Um político contém uma espécie de ADN, que vai sendo editado de acordo com o ambiente que o rodeia e os interesses que o norteiam. Se o trabalho for bem feito por aqueles que estão por detrás dessa tal “cortina” (leia-se conselheiros e assessores), essa edição preservará a autenticidade que é reconhecida ao político pelo eleitorado. Poucos duvidarão de que existe algo (ou muito) de autêntico na simpatia de Barack Obama, no populismo de Donald Trump, na traquinice de Boris Johnson, na rigidez de Vladimir Putin, na elegância de Emanuel Macron, na austeridade de Angela Merkel, na jovialidade de Justine Trudeau ou no justicialismo de Jair Bolsonaro, citando apenas alguns líderes. Todos eles potenciam estas caraterísticas junto dos seus eleitorados, porque é o seu elemento identitário, é aquilo que os distingue de todos os outros. De notar que esta autenticidade não implica qualquer conotação moral ou valorativa, já que o estado natural do político, numa escala de valores, tanto pode ir do “príncipe” virtuoso ao déspota implacável. Há sempre uma problemática de perspectiva em matéria de juízo aos políticos e às suas lideranças.

 

É nos bastidores, no circuito fechado, que se prepara, que se encena, que se dramatiza e teatraliza a acção política para alimentar as “percepções” do eleitorado: ora através das “impressões”, de que o filósofo David Hume falava no seu Tratado da Natureza Humana (1739), e que considerava serem as “sensações, as paixões e as emoções”; ora através das “ideias”, pela construção de uma imagem sustentada no pensamento e na razão. Há um quadro expectável de actuação, onde o político se deve movimentar o mais naturalmente possível. Os eleitores querem produtos que considerem ser genuínos, independentemente do crivo político e moral que se possa fazer de um determinado político.

 

Na sua irreverente e cativante biografia sobre Winston Churchill (O Factor Churchill, D. Quixote, 2015), o agora primeiro-ministro britânico Boris Johnson sublinha esse facto, exemplificando com um episódio que aconteceu no final de Julho de 1940, quando a Alemanha tentava destruir a Força Aérea britânica: “Churchill desloca-se à cidade de Hartlepool para inspecionar as defesas. Detém-se perante um soldado britânico equipado com uma arma de fabrico americano, uma Thompson SMG, espingarda semiautomática de 1928. Churchill arranca-a das mãos do soldado e empunha-a, de cano apontado para baixo e para a frente, como se estivesse a patrulhar o litoral britânico. Vira-se para encarar a câmara…e a imagem que daí resulta torna-se um dos grandes retratos da sua determinação de resistir.”

 

Ninguém duvidará que, perante a oportunidade, Churchill tenha visto ali um momento valioso de comunicação, sendo “impossível imaginar que qualquer dos seus adversários políticos pudesse conseguir tal proeza”, como também observou Johnson. “Nenhum dos dirigentes políticos britânicos da época teria conseguido empunhar aquela espingarda e ser credível”. Este é um dos ensinamentos mais úteis em comunicação política: um político nunca deve tentar desempenhar um papel que não é o seu e nunca deve forçar uma situação que não colará com a imagem que o eleitorado tem dele. Como sintetiza Johnson (e sabe bem do que fala), deve ser respeitada “a regra de ouro de todos os instantâneos fotográficos na política” e que o bom assessor terá o dever de avisar o seu político: “Não toque na arma!” É uma metáfora exemplar que se aplica a qualquer tempo e a qualquer circunstância, mas que tantas vezes é ignorada, colocando, por vezes, os políticos num plano de descrédito e, até mesmo, de ridículo. As massas não são assim tão amorfas como o conceito sociológico nos quer fazer querer, já que na sua sapiência popular acabam por saber identificar o papel natural reservado a cada um dos políticos. E é dentro desse quadro previsível que esperam que actue e represente.

 

Churchill tinha um faro apurado para identificar as oportunidades históricas e uma grande sensibilidade para a comunicação política. Tinha na oratória a sua principal arma e na encenação a maior aliada, tendo devotado muitas horas de trabalho para aperfeiçoar estas técnicas. Como ele dizia, “a aptidão retórica não é nem inteiramente inata, nem inteiramente adquirida, mas sim cultivada” e que “o aperfeiçoamento é encorajado pela prática” (Churchill – Caminhando com o Destino, Texto Editores/2019). O seu método era rigoroso e tudo obedecia a uma coreografia previamente ensaiada, mesmo os pequenos gestos, como aquele que ele fazia durante os discursos, de levar a mão lentamente ao bolso do casaco, como se estivesse à procura de algo. Uma técnica para criar suspense e que aprendeu com o seu pai, Randolph. Poucos terão compreendido que esta sua forma de estar aparentemente espontânea “era inteiramente intencional”, escreve o historiador Andrew Roberts na biografia acima citada.

 

A comunicação política não é propriamente uma ciência, mas resulta da experimentação e assenta em pressupostos racionais e metódicos. Há uma técnica e um saber acumulados que têm de ser dominados, que vêm única e exclusivamente com a prática. Não se ensina nas universidades, apesar de serem muitos os académicos a presumirem que o sabem fazer. A abordagem no plano teórico pode remeter até aos clássicos gregos e, admite-se, suscitar um debate intelectual interessante, mas é no plano prático, naquilo que é a realidade quotidiana de governantes e políticos no seu relacionamento com o eleitorado e opinião pública, que se faz e se aprende comunicação política. Um tipo de comunicação que acontece numa arena onde, normalmente, e como diria Max Weber, “a política não existe em função da filosofia ética", mas sim em razão do poder.

 

Filmes clássicos como All the King’s Men (1949), de Robert Rossen, baseado no romance homónimo de Robert Penn Warren, ou algumas películas de John Ford, como Young Mr. Lincoln (1939), The Last Hurrah (1958) ou The Man Who Shot Liberty Valance (1962), ou ainda a aclamada série The West Wing (1999-2006), transportam-nos com bastante realismo para esse universo da comunicação política, onde os líderes e os homens que os rodeiam procuram conquistar e manter o poder, alguns de forma populista e com fins egoístas, outros bem-intencionados, que acreditam ser "possível fazer corresponder a política a um padrão ético" e moral.

 

Embora o exercício do poder seja em si solitário, por trás desses líderes, que podem ser mais ou menos virtuosos, há sempre uma equipa, um staff, um conjunto de “wise men” que aconselham e assessoram, que pensam, reflectem e dão suporte ao processo de decisão. Já dizia Maquiavel, num dos muitos ensinamentos do seu autêntico “manual” de política, que o “príncipe prudente” deveria estar rodeado de sábios que lhe pudessem responder de forma livre e sem adulação. Esta regra continua a ser aplicável na política dos nossos dias, sendo expectável encontrar-se pelo menos um “sábio” influente no apoio a um político que alcance relativo sucesso na busca ou manutenção do poder. Se tivermos em consideração a alta política anglo-saxónica nos últimos 30 anos, facilmente encontramos essas pessoas que trabalharam durante muito tempo na sombra. Nomes como Dominic Cummings, Steve Bannon, David Axelrod, Karl Rove, Alastair Campbell ou James Carville tornaram-se referências incontornáveis na comunicação política. Todos eles foram responsáveis, em parte, por levarem os “seus” políticos ao poder, citando apenas alguns dos casos mais relevantes que fizeram escola na comunicação política nas décadas mais recentes. Assessores de imprensa, estrategos políticos, consultores de comunicação, speechwriters, spin doctors, foram (e são) tudo isto num só. Lordes do “dark side” com instinto predador, dirão muitos, mas todos lhes reconhecem inteligência e capacidade operacional. Cada um terá o seu estilo e perfil, uns mais agressivos do que outros, uns mais “dark” do que outros, mas ninguém lhes retira o talento para o ofício. São homens de terreno e intelectualmente sofisticados, que lêem como ninguém as dinâmicas e vontades do eleitorado, antecipam as tendências do sistema e adaptam o político ao ambiente. São homens que se movimentam nos bastidores até ao dia em que o sucesso dos seus líderes é o seu sucesso.

 

Normalmente, depois de passada a euforia inicial com a glória do “frontman”, há uma tendência por parte dos media (e agora redes socais) de irem à procura do estratego que está na “sombra”. A ascensão de Boris Johnson ao poder, através de um roteiro previamente definido e calculado, não fugiu a esse escrutínio por parte dos jornalistas e dos analistas. Depois de tudo se ter dito e escrito sobre Johnson, o alvo da atenção mais especializada passou a ser Cummings, o orquestrador de uma campanha de sucesso. Tal como Axelrod, Rove, Campbell ou Carville, há muito que Cummings andava nos corredores da comunicação política. Nos Tories, entre outros cargos, Cummings fora conselheiro do antigo líder conservador, Ian Duncan Smith, e posteriormente de Michael Gove. Recentemente, foi director de campanha da Vote Leave, a organização pró-Brexit que terá contribuído decisivamente para o desfecho do processo no sentido de saída do Reino Unido da UE. Cummings não é uma novidade, mas só saltou para ribalta internacional embalado pelo sucesso de Johnson que, no passado mês de Julho, o nomeou seu conselheiro especial.

 

A mesma ribalta que alcançou o “ideólogo” Steve Bannon depois de Donald Trump ter causado uma hecatombe no sistema político americano ao sentar-se na Sala Oval. Nestes últimos anos, Bannon acabou por atingir uma notoriedade imensa, provavelmente mais do que qualquer um dos “mestres” da arte da comunicação política aqui citados, no entanto, terá sido o que menos peso teve na vitória do seu candidato. As razões são várias e não cabe neste texto escrutiná-las, mas a personalidade de Trump não é alheia a esse facto. Bannon e Trump nunca foram amigos e muito menos tiveram uma relação sólida de trabalho. O antigo homem da Breitbart News foi mais um entre vários que iam entrando e saindo do círculo restrito de Trump, onde apenas alguns familiares mantiveram lugar cativo. O fenómeno Bannon resulta essencialmente da curiosidade que Trump tinha nos seus textos. Alguém intermediou o contacto entre os dois e assim começa o seu relacionamento profissional, efémero, diga-se, à semelhança de tantos outros que Trump tem desenvolvido na Casa Branca.

 

Trump nunca reconheceu nem considerou profissionalmente quem o rodeia. Basta conhecer um pouco a sua vida e percurso. É literalmente “one man show”, acreditando que tudo o que alcançou foi única e exclusivamente à sua conta. Trump nunca viu em Bannon um estratego ou conselheiro, considerou-o sempre mais como um fã ou uma espécie de “groupie”. Foi sempre assim que Trump esteve na vida empresarial e agora na política. Basta ver como tudo acabou entre os dois, com Bannon a ser despedido de forma humilhante e Trump a desabafar que o seu antigo conselheiro “chorou quando foi despedido e que implorou pelo seu emprego”. Mais recentemente, Trump veio reforçar essa ideia condescendente num dos seus célebres tweets: “É bom ver que um dos meus melhores pupilos é ainda um fã gigante de Trump […]”

 

Bannon foi mais um figurante no já vasto elenco deste “filme” e esteve longe de ter sido o que mais influenciou Trump. Há uma sobrevalorização do seu papel e até mesmo o slogan “Make America Great Again” nada teve a ver com Bannon, não sendo mais do que uma reciclagem do tema de campanha de Ronald Reagan, em 1980, feita pelo infame consultor político, Roger Stone, talvez aquele que mais responsabilidades terá tido na ascensão de Trump à Casa Branca. O que não é de estranhar, tendo em conta que é profunda a ligação de Stone com o “lado mais sombrio da política” e que aos 19 anos já andava metido nas confusões do Watergate.

 

Na verdade, e vendo bem as coisas numa lógica de ganhos e perdas na relação entre Trump e Bannon, é um dos poucos casos onde o conselheiro terá beneficiado muito mais do que o candidato. Mas nem por isso Bannon deixou de ter importância na construção da personagem política Trump, porque lhe deu uma roupagem ideológica que, mesmo sendo inconsequente durante o mandato na Casa Branca, conseguiu criar algum lastro nas correntes mais conservadoras da América.

 

Incontestável foi a influência e importância de David Axelrod no sucesso de de Barack Obama. Foi um dos grandes estrategos, não apenas da primeira vitória presidencial de Obama em 2008 (e também em 2012), mas da euforia comunicacional que se gerou à volta daquela que era então a grande esperança para os Estados Unidos e para o mundo. Amigo íntimo de Obama do círculo de Chicago, David Axelrod tornou-se numa estrela mundial da comunicação política a quem o New York Times chamou em tempos o “narrador” de Obama. Axelrod tinha alguns traços que o diferenciavam num sector, por vezes, marcado por algum mimetismo. Ainda antes de Obama, sempre se assumiu como um homem de causas, algumas bastante progressistas, e partiu desta sua maneira de pensar e viver para trabalhar, sobretudo, campanhas de políticos afro-americanos nos Estados Unidos. Com bastante sucesso, diga-se. Esta vertente era, aliás, uma das suas imagens de marca. Tendo trabalhado com vários políticos negros, obtendo importantes vitórias, como a de Deval Patrick, que em 2006 se tornou no primeiro governador negro de Massachusetts. Axelrod também já tinha no seu currículo nomes como os de Hillary Clinton, Chris Dodd ou John Edwards. Antigo jornalista do Chicago Tribune, Axelrod começou a trabalhar na comunicação política no início dos anos 80. Um dos segredos para o seu sucesso é "acreditar" nas pessoas e nos projectos em que se envolve. O famoso slogan da campanha de Obama, "Yes, we can!", é também o reflexo dessa atitude. Há uns anos, o já falecido Paul Green, então director do Instituto de Política da Roosevelt University, dizia o seguinte: "Axelrod é o que eu chamo de uma banda de um homem só - ele é bom a fazer campanhas, formular a mensagem, fazer os anúncios de TV e escrever discursos."

 

Após ter reeleito Obama em 2012, Axelrod afastou-se das lides da Casa Branca para se dedicar à sua empresa de consultoria. Axelrod sempre foi, de certa forma, um idealista político e, talvez por isso, o seu trabalho só seja compatível com candidatos dotados de um perfil específico. À luz desta lógica, não é de estranhar a tímida experiência comunicacional que Axelrod teve com o antigo comissário europeu Mário Monti, na campanha para as eleições gerais em Itália de Fevereiro de 2013. Ao contrário de Obama, Monti não era um homem de paixões nem de causas. Era um economista e académico, um tecnocrata sem qualquer chama, aclamado apenas pelos “mercados” e por alguns ministros europeus das Finanças. Monti, ao contrário de Obama, não tinha qualquer carisma, nem sequer “matéria-prima” inata para ser trabalhada. E quando assim é, por mais gente talentosa que o rodeie, dificilmente esse político ascenderá ao Olimpo.

 

Não era o caso de George W. Bush quando se lançou na corrida presidencial. Bush filho é um clássico exemplo de um político que, não tendo uma aura brilhante, tinha alguns atributos que, devidamente trabalhados e potenciados, podiam fazê-lo sonhar com a Casa Branca. Além de pertencer a uma dinastia política (os americanos são muito receptivos a esse tipo de dinâmica), tinha sido governador do Texas durante dois mandatos e apresentava características que podiam facilitar a entrada no eleitorado conservador moderado. Talvez, por isso, estrategicamente, o seu slogan de campanha nas eleições de 2000 tenha sido “compassionate conservatism”. Karl Rove foi o responsável enquanto estratego chefe da campanha.

 

Embora fosse um autêntico “falcão” da ala mais conservadora republicana, Rove percebeu claramente que o conservadorismo de Bush teria que ser suavizado para chegar a um eleitorado mais vasto. Foi ele o principal responsável por ter levado George W. Bush à Casa Branca, não sem antes ter orquestrado as suas vitórias enquanto Governador do Texas, em 1994 e 1998. O verdadeiro “polítical mastermind” de Bush, reconhecido no discurso de vitória da sua reeleição presidencial em 2004, no Ronald Reagan Building, em Washington, quando o Presidente apelidou Rove como “the architect”. Este momento de comunicação é marcado pela forma como o recém-eleito Presidente a prepara, com uma breve pausa e aquele sorriso matreiro que o caracterizou, antes de prestar homenagem à sua estrela maior, ao seu mais bravo guerreiro.

 

Quando Kove começou a trabalhar com George W. Bush já apresentava um currículo invejável de muitos anos no combate político, com dezenas de campanhas e inúmeras vitórias de relevo nas fileiras republicanas, mas foi a dramática eleição de 2000 que lhe deu a notoriedade universal. Em Novembro de 2004, a revista The Atlantic escrevia o seguinte: “São as corridas renhidas que fazem as reputações dos grandes estrategos políticos, e muito poucas foram tão disputadas como as presidenciais de 2000. […] George W. Bush saiu vitorioso por uma margem de 537 votos na Florida – suficiente para elevá-lo à presidência e ao seu estratego chefe, Karl Rove, ao estatuto de lenda.”

 

Também Alastair Campbell se encaixa nesse panteão das celebridades da comunicação política. Responsável pela estratégia de comunicação do ex-primeiro-ministro, Tony Blair, entre 1997 e 2003, Campbell, como em tempos disse o The Telegraph, deixara de lado uma carreira promissora no jornalismo ou na televisão, para assumir o papel de orquestrador do “assalto” de Tony Blair ao número 10 da Downing Street. Um trabalho que desempenhou com êxito, através de “manobras” e “esquemas” que, segundo aquele jornal, foram reconhecidos como eficazes e que fizeram escola até mesmo junto dos opositores políticos. Efectivamente, Campbell foi um dos obreiros do sucesso do New Labour, conseguindo obter sondagens com resultados “estratosféricos”, nas palavras de outro jornal, The Guardian, contribuindo decisivamente para aquela que seria a primeira de três vitórias seguidas do New Labour em legislativas, em Maio de 1997. Campbell demonstrou igualmente uma habilidade comunicacional para lidar com a sanguinária imprensa britânica, fazendo dele um consultor feroz na defesa dos interesses de Blair e um temível adversário para os seus opositores políticos.

 

Poucos meses depois de ter sido eleito primeiro-ministro, Tony Blair é confrontado com a morte da Princesa Diana, na madrugada de domingo de 31 de Agosto de 1997, um acontecimento que chocou brutalmente o Reino Unido (e não só), numa dimensão, provavelmente, nunca vista desde o pós-II GM. A inabilidade da Casa Real empurrou-a para uma das suas maiores crises de reputação e de comunicação. Blair e os seus assessores, com especial destaque para Campbell, perceberam que tinham de reagir rapidamente, perante o silêncio de Buckingham. A concretização dessa estratégia dá-se horas após a tragédia, já durante a manhã, quando Blair presta uma declaração aos jornalistas à entrada da Igreja de Santa Maria Madalena, em Trimdon, seu círculo eleitoral, para onde se dirigia para a habitual missa dominical. O discurso não tem mais de três minutos, mas é uma autêntica obra-prima de comunicação política. O conteúdo emocional, as pausas, o tom, a linguagem corporal, o discurso sem hesitações, tudo impecavelmente decorado… O exímio encadeamento do fraseado até ao climax, quando Blair se refere a Diana como a “Princesa do Povo”.

 

Ainda hoje é pouco claro sobre quem, efectivamente, incluiu essa expressão no discurso, mas no filme The Queen (2006) de Stephen Frears, que retrata os trágicos acontecimentos, a autoria é atribuída a Campbell que, após receber um telefonema de Blair na madrugada desse Domingo, se disponibilizou a fazer de imediato um rascunho. Quem está familiarizado com estas dinâmicas da comunicação política, facilmente admitirá que esta versão é perfeitamente verosímil, sendo que a verdade dos factos não andará muito longe, até porque nessa madrugada Blair pouco tempo teria para estar focado no discurso. Certo é – e isto dito por Alastair Campbell – que o rascunho foi discutido entre os dois. Um trabalho de excelência, porque aquele discurso, e sobretudo aquela expressão, conduziu Blair àquela que muitos consideram ser a sua “finest hour” enquanto político, reflectindo-se de imediato num record absurdo de popularidade de 93 por cento.

 

O carisma num político não é uma qualidade de subjectiva classificação. Mesmo os seus maiores inimigos lhe conseguem reconhecer esse atributo. Blair, seguramente, tinha esse carisma. O desafio está, por vezes, em identificar esse potencial à partida, trabalhá-lo e potenciá-lo. De certa maneira, James Carville fez esse trabalho quando aceitou ser o principal estratego da campanha do então semi-desconhecido governador do Arkansas, Bill Clinton, nas presidenciais de 1992. Carville já tinha uma considerável experiência em consultoria política, tendo-se movimentado sempre pelas fileiras do Partido Democrata e quando aceitou o desafio de levar Clinton à Casa Branca tinha bem noção de que a mensagem daquela campanha teria que ser disruptiva com o tom e registo do mandato do Presidente George H. W. Bush, marcado pela glória da grandeza militar dos EUA. É importante recordar que a América celebrava a vitória sobre os despojos da União Soviética e estava em plena Guerra do Golfo, um conflito tido como “justo” aos olhos da comunidade internacional e que granjeou todo o tipo de apoios dos aliados e da opinião pública. Aliás, após este conflito que os EUA venceram rápida e facilmente no início de 1991, Bush chegou a ter quase 90 por cento nos índices de popularidade, afastando das primárias do Partido Democrata potenciais candidatos de alto perfil, que receavam perder no derradeiro confronto com o Presidente republicano em exercício. Clinton acabaria por avançar contra nomes de segunda linha, vencendo facilmente as primárias dentro do seu partido, abrindo-lhe caminho ao embate com Bush.

 

Carville sabia que dificilmente venceria Bush recorrendo às emoções e aos corações dos americanos, depois de quatro anos de patriotismo insuflado pelos feitos geopolíticos e geoestratégicos dos EUA no mundo. Bush tivera o privilégio e a oportunidade histórica de ter vivido quatros anos únicos nas Relações Internacionais. Não conseguindo bater Bush nesse campo, Carville teve a capacidade de ler a conjuntura, identificou a fragilidade do Presidente e antecipou o grande tema que iria marcar a agenda nos anos seguintes: a economia. E a síntese dessa estratégia consubstanciou-se na sua célebre frase, “The economy, stupid” (esta é a frase original, sem o “it’s”). Como todas as criações brilhantes, também esta parece ter resultado de um qualquer sopro divino, pelo menos a dar crédito ao relato de George Stephanopoulos, nas suas memórias sobre essa campanha, na qual foi director de comunicação. Conta Stephanopoulos que Carville estava na sede de candidatura a escrever várias frases soltas num cartaz branco e pregou-o numa pilar no meio da sala. Entre as várias frases, lá estava aquela que iria levar Clinton à Casa Branca. A ideia era de tal forma poderosa que ganhou vida e se interiorizou na cultura política e popular americana. Se George H. W. Bush durante quatro anos tinha governado para os patriotas americanos, Clinton dirigia-se agora aos trabalhadores e contribuintes americanos. Carville, tal como todos os outros que ajudaram os seus líderes na caminhada triunfal, teve a sensibilidade e a audácia para saber o que dizer no momento certo. Quase sempre, é na concretização virtuosa deste exercício que um político deixa de ser uma nota de rodapé na História para passar a fazer História.

 

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.

 

Trinta anos depois, esfriou o entusiasmo na UE para alargar as suas fronteiras

Alexandre Guerra, 15.11.19

 

Os trinta anos volvidos após a queda do Muro de Berlim já nos permitem ter uma perspectiva histórica sobre a evolução do projecto europeu na realidade sistémica pós-Guerra Fria. De forma mais simplista e imediata, dir-se-ia que em três décadas se passou do entusiasmo contagiante ao esfriamento céptico. Embora seja uma ideia (ou talvez percepção) muito popular nos dias que correm, esta leitura deve ser feita com a devida contextualização.

 

Os ventos de mudança que se fizeram sentir na Europa entre 1989 e 1991 foram de tal maneira intensos que “empurraram” toda uma elite de líderes europeus e tecnocratas em Bruxelas para o caminho comum da celebração do ideal de “união” numa Europa atormentada durante décadas pela divisão dos seus povos. Dessa força política imparável resultaram dois dos momentos mais importantes daquilo que viria a ser a (re)definição e consolidação do conceito de projecto europeu: a entrada em vigor do Tratado de Maastricht, em Novembro de 1993, e o alargamento da União Europeia (UE) a Leste, em Maio de 2004. Não sendo o Tratado de Maastricht objecto de análise deste texto, foquemo-nos no maior alargamento de sempre e das implicações que teve na concepção da ideia de União Europeia e nas expectativas dos países do antigo Bloco de Leste e dos que saíram da ex-URSS.

 

Tal como tinha acontecido com Maastricht, também o alargamento em 2004 assumiu contornos inéditos na definição da natureza do projecto europeu. A 1 de Maio de 2004, de uma só vez, aderiram dez novos Estados à UE: Polónia, República Checa, Eslováquia, Eslovénia, Hungria, Lituânia, Letónia, Estónia, Malta e Chipre. Foi um momento particularmente importante no processo de construção europeia, sobretudo por duas razões: a primeira, por tratar-se da primeira vez que a União Europeia se alargava a países que tinham pertencido ao antigo Bloco de Leste; a segunda razão pelo facto de enviar um sinal de esperança a todos os Estados que outrora tinham estado sob o jugo comunista e que continuavam às “portas” do clube europeu.

 

O alargamento de 2004, pela sua expressão e alcance geográfico, representava um compromisso claro, por parte dos Estados-membros, da intenção de se fazer chegar as fronteiras do projeto europeu o mais longe possível. Foi esse o caminho escolhido, mas não sem antes ter havido um intenso confronto de visões. Não estava em causa mais um “simples” alargamento confinado a uma Europa ocidental desenvolvida, como já tinha acontecido várias vezes. Não, em 2004, era uma nova Europa que se (re)descobria.

 

Com a queda do Muro e a implosão da URSS dois anos depois, a União Europeia podia ter esperado, adiado ou abortado essa ideia de agigantar o projecto europeu e remeter-se ao aprofundamento das fundações e dos mecanismos de uma Europa ocidental e desenvolvida a 15 ou pouco mais do que isso. Mas a decisão política e estratégica foi a de seguir em frente, mais concretamente para Leste, com todos os riscos que daí adviriam para o que já fora conquistado em termos de construção europeia. Ao alargar a Leste, a União Europeia assumiu um compromisso de disponibilidade para com todos os países que estiveram debaixo da esfera soviética, criou expectativas e alimentou sonhos.

 

Perante a dimensão histórica do que estava em causa, o alargamento foi precedido de um longo e intenso debate – pelo menos entre os mais entusiastas e atentos aos assuntos europeus. Na altura, estiveram em confronto duas correntes de pensamento: aquela que sempre defendeu a política dos “pequenos passos” e uma União Europeia geográfica mais contida; e aquela que via no alargamento uma missão intrínseca ao espírito originário da ideia de Europa.

 

A segunda corrente acabou por prevalecer. A partir daqui, novos alargamentos seriam inevitáveis. A questão é que seriam alargamentos mais motivados pelo tal espírito de missão do que propriamente pela rigidez dos famosos “Critérios de Copenhaga”. E isso ficou bem evidente a 1 de Janeiro de 2007, quando a Bulgária e a Roménia aderiram à UE. As candidaturas daqueles dois países eram de tal forma frágeis – as quais pude constatar meses antes da adesão numa visita à Bulgária –, que Bruxelas impôs algumas condições extraordinárias de vigilância e controlo aos mais recentes membros. Esta medida foi adoptada na sequência do conturbado processo de adesão daqueles dois países, que não preencheram todos os requisitos da forma esperada. Em alguns dossiers, as autoridades de Sófia e de Bucareste não conseguiram adoptar as reformas necessárias, originando fortes avisos por parte da Comissão Europeia. As áreas da justiça e do combate à corrupção foram aquelas que mais preocupações geraram. Recorde-se que na altura, Paris e Londres pressionaram a Comissão para que endurecesse sua posição, perante aquilo que consideravam ser um caso “sério de corrupção” em dois países que começavam a estar fora de controlo. Também a Suécia e a Holanda partilharam desta opinião, ao acusarem a Comissão de não estar a cumprir com as suas obrigações, colocando assim em causa o processo de alargamento da União Europeia. Esta questão adensou-se depois de vários Estados-membros terem acusado Franco Fratini, o então comissário europeu da Segurança e Justiça, responsável pela aplicação de algumas reformas na Bulgária e Roménia, de estar a “fechar os olhos” ao que se passava nos dois países.

 

Bruxelas “fechou os olhos” a muita coisa, que era por demais evidente, tal como já tinha “fechado” em 2004, em nome de uma ideia virtuosa, é certo, mas que estava cada vez mais desprovida de realismo, criando desequilíbrios estruturais no seio do edifício da UE que ainda hoje se fazem sentir, nalguns casos até de forma bastante acentuada. A entrada da Croácia em 2013 acabou por ser um passo natural dentro desta linha estratégica. Tal como o início das negociações de adesão com o Montenegro (2012) e com a Sérvia (2014), a formalização da candidatura da rebaptizada República da Macedónia do Norte (2005) e da Albânia (2014), e os pedidos de adesão da Bósnia-Herzegovina (2016) e do Kosovo (2016). Estes últimos quatro países estão abrangidos pelo Acordo de Estabilização e Associação. Quanto à Turquia, iniciou formalmente as negociações de adesão em 2005, mas trata-se, sobretudo, de uma herança e “obrigação” histórica que remonta a 1963 e que em nada se enquadra no quadro do alargamento europeu aqui falado neste texto. Na verdade, nem Bruxelas nem os líderes europeus quiseram assumir frontalmente, nos últimos anos, a inviabilidade da adesão da Turquia à UE, optando, antes, por um “arrastar” interminável do processo negocial. Aliás, basta comparar os processos dos três países nessa condição de “negociações abertas” e constata-se que existem diferentes dinâmicas e motivações: Turquia, Sérvia e Montenegro.

 

Ancara começou a negociar em 2005, mas conseguiu abrir apenas 16 capítulos e encerrou provisoriamente um. Por seu lado, Belgrado iniciou negociações com Bruxelas quase dez anos depois, conseguindo abrir 17 capítulos e fechado provisoriamente dois. Mais expressivos são os números do processo negocial entre Bruxelas e Podgorica, iniciado em 2012, no qual foram abertos até ao momento 32 dos 35 capítulos de negociação, três dos quais foram já provisoriamente encerrados. De sublinhar ainda que a última vez que a União Europeia e a Turquia abriram um novo capítulo negocial foi em Junho de 2016, enquanto com Belgrado e Podgorica foi em Dezembro de ano passado.

 

Dos três processos negociais em curso, parece evidente que a longo prazo, a Turquia continuará de fora da UE. Porém, se poucos acreditam na concretização da adesão da Turquia, aceitando-se tacitamente o “congelamento” desse processo, as coisas mudam de figura quando se fala dos países dos Balcãs. As expectativas criadas depois do fim da Guerra Fria, do alargamento de 2004 – que incluiu um país balcânico pobre (a Bulgária) – e da entrada mais recente de uma nação da antiga Jugoslávia (Croácia), alimentam a esperança de outros Estados balcânicos entrarem na UE. Ainda recentemente, o primeiro-ministro do Montenegro, Dusko Markovic, dizia em entrevista à AP estar esperançoso que, após o “Brexit”, Bruxelas voltasse a dar mais atenção ao processo de alargamento.

 

Não obstante as fragilidades do seu sistema político, o Montenegro parece estar “moderadamente” bem encaminhado nos capítulos negociais, segundo o último relatório de acompanhamento. Para Bruxelas, o Montenegro, um país que nem chega a 700 mil habitantes, representa poucos desafios, um pouco à semelhança da Croácia quando aderiu, que acabou por se tornar uma espécie de estância tranquila de férias da Europa. É muito provável que o Montenegro seja o próximo a entrar na UE e até é previsível que o faça sozinho em 2025, como referido, de forma algo tímida, no compromisso da estratégia europeia para os Balcãs Ocidentais, aprovado pela Comissão em Fevereiro de 2018.

 

Mais complicado é o processo da Sérvia, apesar de este documento também apontar a data de 2025 para a sua adesão plena. Nos últimos anos, Bruxelas não tem tido particular entusiasmo nem empenho no processo de adesão da Sérvia, por razões que vão muito além das análises dos relatórios técnicos de acompanhamento, nomeadamente do mais recente. Há vontade por parte da Sérvia para aderir à UE, como aliás é referido pelos seus líderes e como pude confirmar no ano passado numa visita àquele país. E até existem condições de partida para isso, quando comparadas, por exemplo, com as da Bulgária em 2004. Belgrado é uma cidade cosmopolita, culta, vibrante e em crescimento acentuado. O resto do país é mais rural, mas nem por isso se deve descurar a sua importância estratégica enquanto placa giratório na região, que será potenciada com a conclusão do ambicioso projecto do Corridor X Highway, uma auto-estrada que atravessará o país e que será integrada na Rede Trans-Europeia Rodoviária (TERN).

 

É certo que a Sérvia apresenta grandes debilidades ao nível de infra-estruturas e de solidez nas suas instituições, mas tem todo o potencial para colmatar essas fragilidades, tendo vindo a crescer economicamente e a apresentar melhorias significativas em várias áreas. No entanto, há uma questão que parece ser inultrapassável no actual processo negocial, que tem a ver com o nacionalismo sérvio e com a herança trágica dos vários conflitos da ex-Jugoslávia. As feridas mantêm-se mais vivas do que se possa pensar e as lideranças políticas continuam a veicular um discurso ulta-nacionalista que escapa ao radar da imprensa de referência europeia, onde constantemente se enaltecem os actos criminosos praticados durante a guerra da Bósnia (1992-95), se endeusam as lideranças militares e se alimenta constantemente uma retórica de exortação étnica. Esta questão é particularmente exacerbada na República Srpska, Bósnia Herzegovina, onde Belgrado faz sentir diariamente a sua retórica política contra os vizinhos muçulmanos bósnios. Ao mesmo tempo, Belgrado recusa qualquer tipo de moderação política exigida por Bruxelas. Perante isto, como enquadrar um país na União Europeia onde uma parte da população considera Milosevic um herói? Onde se enaltecem líderes militares como Karadzic e Mladic, que praticaram crimes hediondos? Onde existe uma realidade alternativa dos acontecimentos de Srebrenica? Onde não se reconhece o Kosovo independente?

 

É sobretudo por estas razões que não se perspectiva a adesão da Sérvia à UE em 2025. Como ainda há uns meses referia Srdjan Majstorović, presidente do European Policy Centre, um think tank que tem como objectivo acompanhar o processo de adesão da Sérvia: “O ano de 2025 não é impossível, mas, neste momento, não é muito realista porque nenhum dos lados se está a esforçar para isso.”

 

O entusiasmo de outrora, manifestado por outros líderes noutros tempos, deu lugar à prudência e até mesmo ao cepticismo por parte de alguns Estados-membros. Bruxelas vai cumprindo o calendário dentro dos seus compromissos, sem mostrar muita vontade em acelerar processos. “Ninguém irá dizer em alto e bom som que está contra o alargamento, faz parte do jogo político, mas há uma forte resistência no seio dos Estados-membros da UE, para que o alargamento não aconteça até que haja uma reconfiguração das relações poder e que novos modelos sejam implementados”, disse há umas semanas o recém-eleito redactor do Parlamento Europeu para o processo de adesão do Montenegro.

 

Essa perda de entusiasmo ficou bem evidente com a decisão recente do Presidente francês, Emmanuel Macron, que, no Conselho Europeu de Outubro último, vetou a formalização do início das negociações com a Macedónia do Norte e a Albânia, sob os argumentos de que a UE deve, primeiro, reformar-se internamente, e que se deve rever o modelo das condições dos futuros novos Estados-membros antes de se avançar para um novo alargamento. Paris esteve sozinho no veto à Macedónia do Norte, mas contou com a companhia da Holanda e da Dinamarca no caso da Albânia, ficando, assim, inviabilizado o princípio da unanimidade no voto no Conselho Europeu pelo qual se rege o processo de alargamento.

 

O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, falou num “erro histórico” e sublinhou que “a União Europeia deve respeitar os seus compromissos”. Também o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, não escondeu o seu desalento: “Fizemos promessas a esses países.” E acrescentou: “Hoje gostaria de enviar uma mensagem aos nossos amigos da Macedónia do Norte e da Albânia: por favor, não desistam! Compreendo perfeitamente a vossa frustração, porque vocês fizeram a vossa parte, e nós não. A UE é uma entidade política complexa e é verdade que, às vezes, demora muito tempo a decidir. Mas não tenho qualquer dúvida que um dia irão torna-se membros de pleno direito da União Europeia”.

 

Os vetos francês, holandês e dinamarquês foram de, certa maneira, inesperados, porque romperam com a tradição europeia desde o final da Guerra Fria e que culminou com os alargamentos de 2004, 2007 e 2013. Como dizia o FT em editorial, os argumentos de Macron têm validade, o problema é que criaram uma situação que poderá afectar a credibilidade da UE no seu relacionamento com os países limítrofes. Além disso, é importante notar que tanto a Macedónia do Norte como a Albânia não estão pior nem melhor do que estavam a Bulgária e a Roménia quando iniciaram as suas negociações. O veto isolado de Paris provocou uma autêntica desilusão na Macedónia do Norte, onde o primeiro-ministro reformista, Zoran Zaev, sentindo-se traído e fragilizado, convocou de imediato eleições antecipadas, abrindo espaço para instabilidade política naquele país. Na Albânia, que contou com o veto triplo de Paris, Haia e Copenhaga, a reacção foi menos dramática, mas nem por isso Tirana se coibiu de enviar vários “recados” para Bruxelas.

 

Não só os líderes europeus, em tempos idos, fizeram promessas, como também criaram expectativas e alimentaram esperanças. Legitimamente, a Macedónia do Norte e a Albânia esperavam ver agora os seus esforços compensados, tal como outros viram, e iniciar as negociações dos vários capítulos com vista à adesão. A França, a Holanda e a Dinamarca (estas duas parcialmente) frustraram abruptamente essas expectativas, surpreendendo vários líderes europeus, incluindo a alemã Angela Merkel, que não escondeu o seu desagrado pela atitude daqueles três parceiros. O discurso oficial neste momento em Bruxelas é de que foi apenas um revés temporário, perspectivando-se que a curto prazo se criem as condições para que na próxima cimeira de líderes da União Europeia, já com um novos líderes na Comissão Europeia e no Conselho Europeu, se possa reencaminhar a Macedónia do Norte e a Albânia para o trajecto da adesão. Resta saber se a França se voltará a entusiasmar com uma Europa mais alargada aos Balcãs.

 

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.

 

Lições da Guerra Fria para um combate realista às alterações climáticas

Alexandre Guerra, 08.10.19

 

Em tempos escrevi que “uma Humanidade criada das cinzas de um conflito nuclear à escala global teria certamente que lutar pela sobrevivência da espécie, num mundo que estaria de regresso às origens do primitivismo social, eventualmente mergulhado num ‘estádio natureza’ hobbesiano, sem qualquer tipo de ordem ou contrato social”. E acrescentava: “O decisor político, que em última instância ordenaria a auto-destruição da Humanidade, num gesto calculado e analisado (ou não tivesse na sua posse a informação necessária para antecipar as consequências do seu acto), assumiria o papel de Deus, ao interferir com a existência das espécies, incluindo a única dotada com a faculdade do ‘entendimento’.” (1)

 

Recupera-se aqui estas palavras porque, de certa forma, há um paralelismo que pode ser estabelecido entre o potencial destruidor das armas nucleares e o das alterações climáticas: na sua versão pós-apocalíptica estas duas realidades – ironicamente resultantes da “inevitabilidade” do progresso científico – contêm na sua génese elementos perturbadores à vivência do Homem, não apenas enquanto ser social, mas como entidade biológica, podendo conduzir mesmo à sua destruição.

 

I am become Death, the destroyer of worlds”, desabafou J. Robert Oppenheimer, momentos após o Trinity Test a 16 de Julho de 1945, vendo confirmada a sua teoria sobre o potencial destrutivo da tecnologia de fissão nuclear. Semanas depois, as bombas atómicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki revelaram ao mundo uma força avassaladora até então desconhecida, potencialmente capaz de aniquilar a Humanidade.

 

Da literatura ao cinema, a cultura popular foi invadida pelo imaginário dantesco do cataclisma nuclear. Durante décadas, as sociedades viveram sob o medo de um conflito nuclear iminente à escala global. A natureza competitiva do sistema bipolar conduziu a uma disputa pelo domínio militar e a uma corrida aos armamentos (convencional e nuclear), gerando uma situação insustentável com potencial destrutivo da Humanidade. Era a primeira vez que a História do Homem estava confrontada com essa possibilidade. Como escreveu Aldous Huxley no seu prefácio à edição de 1946 da sua célebre obra Admirável Mundo Novo, “a libertação do atómico representou uma grande revolução na história humana”.

 

Quando os líderes ocidentais das duas superpotências nucleares tomaram consciência de que a escalada nuclear ilimitada poderia conduzir a um desastre de proporções bíblicas, Washington e Moscovo, sob forte pressão das suas opiniões públicas, construíram um regime internacional que permitiu “controlar” a problemática da “corrida” às armas nucleares. Além disso, este regime pretendia também conter a proliferação nuclear além dos Estados que já estivessem no “clube”. De certa forma, este regime tem funcionado durante décadas, embora tenha começado a revelar algumas brechas no pós-Guerra Fria, mais concretamente nos últimos anos, com o Irão e a Coreia do Norte.

 

Porém, é importante relembrar que nas ruas de algumas capitais ocidentais, o que se exigia na altura era uma solução irrealista e inalcançável, que apontava para o desarmamento total e global. Por mais mérito e virtude que essa ideia tivesse, jamais seria colocada em prática. Não havia condições objectivas para tal. Num mundo ideal, próximo da utopia, talvez. Mas nunca naquele sistema de Guerra Fria. Além disso, as receitas excessivamente idealistas já se tinham revelado no passado contraproducentes em termos sistémicos, bastando recordar as consequências desastrosas das políticas bem intencionadas, mas totalmente irrealistas, de Woodrow Wilson.

 

Idealismo à parte, foi o realismo político de então que permitiu viabilizar um modelo de entendimento na questão nuclear, concretizável e com resultados quantificáveis. Em vez de se falar de desarmamento total, algo que Washington e Moscovo nunca iriam aceitar, o objectivo passou a ser o “controlo” da corrida às armas e o combate à proliferação nuclear. Um feito mais modesto, mas realizável.

 

O debate público que actualmente se faz ouvir em torno da questão ambiental tem semelhanças com os movimentos pacifistas que se manifestaram no pico da crise nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética. Além de estar carregado de hipocrisia e contradição, a retórica ambientalista mainstream contém os elementos do seu próprio falhanço, porque assenta numa abordagem ingénua e, muitas vezes, populista, distante de possíveis modelos racionais que possam contribuir, efectivamente, para uma resposta prática. As proclamações genéricas soam bem para quem as ouve e as manifestações imprimem uma sensação de obra para quem participa nelas, mas, realisticamente, estas acções em pouco ou nada se repercutem, eficazmente, no ataque ao problema.

 

O mundo tem continuado a fazer a sua caminhada imparável para a beira do precipício, com a cumplicidade de todos, seja por irresponsabilidade, negligência ou puro egoísmo, com as sociedades a entrarem numa espiral cada vez mais consumista, incapazes de abdicarem dos seus níveis crescentes de conforto, sejam gerações mais velhas ou mais novas. Não tem sido por falta de sensibilização e muito menos de conhecimento científico que se chegou ao ponto onde se chegou. Não é de agora que as questões ambientais agitam as opiniões públicas. Basta recuar até há quase 25 anos, quando a Humanidade despertou para a ameaça à sua existência com a descoberta do “buraco” na camada de ozono na região da Antártida. Perante o anúncio chocante, gerou-se um debate intenso, alimentado por um sentimento de alarme geral que obrigou os governos a subscreverem muito rapidamente o Protocolo de Montreal, em 1987. Este documento, à semelhança de tantos outros do género, poderia ter sido mais uma declaração vazia de princípios, sem qualquer foco. Continha a grandiosidade imensa de um acordo universal, tendo sido a primeira vez que todas as nações do mundo subscreveram um documento deste tipo. Ou seja, tinha tudo para dar em nada, no entanto, a grande diferença é que o Protocolo de Montreal se centrou num objectivo muito concreto e realista: acabar com a comercialização de produtos com compostos químicos gasosos de clorofluorcarbonetos (CFC). As metas ficaram muito bem definidas e especificadas.

 

Este protocolo revelou-se um dos mecanismos mais eficazes de sempre, conseguindo em pouco mais de duas décadas alcançar uma grande parte dos objectivos propostos, com resultados ambientais evidentes ao nível da redução do “buraco” na camada de ozono. E como foi possível tal feito? Através de um modelo mais realista. Embora estivesse assente numa base alargada a todas as nações, o Protocolo foi construído de modo a que todos os Estados, independentemente do seu estádio de desenvolvimento, pudessem alcançar as metas.

 

É preferível ter uma medida concretizada do que um enunciado delas que revelam ser não mais do que meras declarações de circunstância. Ainda recentemente na Cimeira da Acção Climática realizada em Nova Iorque, à margem da 74.ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, 77 países, Portugal incluído, anunciaram a intenção de alcançar a meta de emissão zero de gases com efeito de estufa até 2050. Uma declaração que vai ao encontro da agenda mediática e das vozes que ecoam nas ruas, mas, na verdade, o que é que em termos práticos isso significa? Rigorosamente nada. Não há medidas concretas que acompanhem estas declarações e, provavelmente, nem todos os países estarão nas mesmas condições para porem em prática qualquer plano digno desse nome. É verdade que, por exemplo, o Protocolo de Quioto, que foi prorrogado para lá de 2012, previa algumas diferenças de tratamento na abordagem às reduções das emissões dos gases com efeito de estufa, porém, todo o seu conceito era de tal maneira genérico e abrangente que os resultados foram modestos para não dizer nulos. Se forem analisados os períodos dos primeiro e segundo compromissos (até 2020), o que se verifica é que em vez de uma diminuição, houve um aumento das emissões.

 

Estamos agora prestes a entrar na “era” do Acordo de Paris (pós-2020), mas os erros de sempre estão lá e basta ver o pressuposto basilar do documento: “O Acordo de Paris é ambicioso, dinâmico e universal. É um acordo que abrange as emissões de gases de todos os países.” Esta proclamação desmesurada é, por si só, reveladora da sua própria irrelevância, uma fórmula que se tem revelado inadequada à causa ambiental. Na verdade, o que é preciso é menos ambição e universalidade e mais realismo e pragmatismo no processo de construção de soluções, porque, à semelhança do que aconteceu na era nuclear, só assim se conseguem regimes consequentes.

 

A pergunta que os líderes mundiais devem fazer a si próprios é a seguinte: no âmbito de um quadro negocial (sim, porque é disso que estamos a falar), valerá a pena continuar a tentar forçar um compromisso global (mas artificial) com quase 200 nações? Forçar um acordo cheio de promessas pomposas e vãs, técnica e humanamente impraticáveis?

 

Ou, por outro lado, não será mais eficaz que alguns líderes promovam um fórum de trabalho permanente e exequível com as 15 nações responsáveis por mais de 70 por cento das emissões? Nações essas que estão em condições de adoptarem medidas concretas e realistas a curto e médio prazo. Uma espécie de G15 para o ambiente ou algo parecido, mas que contemple canais de diálogo abertos e formatos de negociação, quer multilateral ou bilateral. Seguramente que qualquer medida concretizada neste âmbito, por mais pequena que fosse, teria efeitos mais positivos do que as proclamações genéricas feitas nas grandes cimeiras. Basta sublinhar que só os EUA e a China são responsáveis por cerca de 40 por cento das emissões de gases com efeito de estufa. Qualquer acordo bilateral entre as duas partes terá implicações directas no ambiente.

 

Seria aconselhável que os líderes das principais potências mundiais regressassem a uma retórica mais realista e pragmática, assumindo uma solução que terá de ser negociada num círculo mais fechado de países: aqueles que mais poluem, mas também aqueles que estão em melhores condições para implementarem medidas imediatas e concretas. À primeira vista poderá parecer uma opção mais modesta, menos global e universal, mas é sem dúvida um caminho mais inteligente e concretizável. Ao contrário do que tem sido a tónica generalizada, este é o momento de sermos menos ambiciosos e sonhadores, para dar lugar ao racionalismo e à efectiva negociação. Há compromissos que têm de ser feitos, cedências acordadas e incentivos atribuídos. E isso não se faz com quase 200 nações sentadas à mesa, até porque a maioria delas tem pouco para oferecer em termos de capacidade de resposta na mudança de hábitos no seu tecido social e na transformação técnica do seu complexo industrial.

 

Não vem mal ao mundo que as vozes nas ruas se continuem a expressar entusiasticamente, mesmo que, muitas vezes, esse discurso esteja impregnado daquilo a que o investigador José Pedro Teixeira Fernandes, aqui no PÚBLICO, chamou de “populismo ambientalista dos perpetuamente ofendidos”. O importante para o futuro da Humanidade é que, para lá desses movimentos de massas, surjam uns quantos “wise men” com visão e capacidade de negociar acordos para serem cumpridos a curto e médio prazo. Conhecimento científico já o têm e tecnologia também. Faltam as decisões inteligentes e práticas.

 

 (1) GUERRA, Alexandre - A Política e o Homem Pós-Humano, prefácio de Viriato Soromenho-Marques, texto de contracapa de José Manuel Durão Barroso (Lisboa: Alêtheia, Outubro de 2016)

(2) Quando na universidade tirei uma cadeira específica sobre estas matérias, chamava-se precisamente “Problemática do Controlo de Armamentos”, sendo que um dos primeiros ensinamentos foi evitar a palavra “desarmamento”. Um conceito que ficava bem nos jornais, mas com pouca repercussão prática: o correcto era “redução” e “controlo” de armamentos.

 

Texto publicado originalmente no jornal PÚBLICO

 

A questão palestiniana

Alexandre Guerra, 16.07.19

 

Quando visitei a Faixa de Gaza pela primeira vez, no Verão de 2001, em plena intifada de Al-Aqsa, o recentíssimo e único aeroporto internacional que servia aquele enclave estava desactivado. Localizado perto de Rafah, junto à fronteira com o Egipto, a infraestrutura tinha sido bombardeada meses antes pelas Forças de Segurança Israelitas (IDF). Com uma curta existência de apenas três anos, foi construída com fundos estrangeiros e inaugurada com toda a pompa e circunstância, tendo como convidados o histórico líder Yasser Arafat e o Presidente americano Bill Clinton.

 

Estava-se em Novembro de 1998, na senda eufórica dos Acordos de Oslo de 1993 (Washington) e de 1995 (Taba) e aquele aeroporto era muito mais do que uma pista pronta para receber voos internacionais: tornara-se num motivo de esperança para as aspirações palestinianas na conquista de um Estado independente e autónomo. Como admitia o chefe-engenheiro daquela obra numa recente visita ao seu terminal, tratava-se do primeiro símbolo de soberania do povo palestiniano. Efectivamente, e perante as muitas críticas feitas aos Acordos de Oslo por parte das várias correntes palestinianas, que nunca perdoaram Arafat por ter assinado aquele documento, o Aeroporto Internacional de Gaza acabou por ser o primeiro elemento “tangível” dessas negociações.

 

Porém, mais de 20 anos depois da sua inauguração, a tal esperança, assim como o aeroporto, está em ruínas. Os Acordos de Oslo colapsaram na Cimeira de Camp David (2000), para darem lugar, quase de imediato, à intifada de Al-Aqsa, espoletada por uma visita provocatória do então primeiro-ministro israelita, Ariel Sharon, em Setembro de 2000, ao Templo do Monte, também conhecido como Haram al-Sharif ou complexo de Al-Aqsa, na cidade antiga de Jerusalém. Daquele processo negocial, pouco restou: a Autoridade Palestiniana e a definição das “zonas A, B e C”.

 

Nos anos seguintes, o conflito israelo-palestiniano viveu uma das suas fases mais violentas desde a criação do Estado de Israel, em 1948. Entre 2000 e 2005, morreram cerca de três mil palestinianos e mil israelitas. Nos territórios palestinianos implementaram-se checkpoints, intensificou-se a construção de colonatos de ortodoxos radicais. A circulação entre cidades palestinianas tornou-se um desafio e, muitas vezes, uma impossibilidade no quotidiano. As famílias deixaram de poder deslocar-se entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. E até mesmo muitos palestinianos que diariamente trabalhavam em Israel deixaram de o fazer. As incursões das IDF tornaram-se diárias, com a violência e as perseguições a alastrarem-se. As condições de vida degradaram-se, a economia deteriorou-se e a miséria instalou-se. Desde então, os territórios palestinianos nunca mais recuperaram.

 

No lado israelita, sucediam-se quase semanalmente atentados bombistas. Civis e militares eram mortos indiscriminadamente. O medo instalou-se na sociedade hebraica e o turismo desapareceu literalmente das ruas de Jerusalém. Em termos económicos e políticos, Israel viveu uma das suas piores fases. Mas também ao nível sociológico houve consequências profundas. O tecido social “rasgou-se” em diferentes tendências, com as correntes mais à esquerda a manifestarem com mais assertividade a sua posição na defesa do fim da ocupação israelita nos territórios palestinianos. De lá para cá, essas fracturas têm-se mantido.

 

A intifada de Al-Aqsa alterou a configuração e a jurisdição dos territórios da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, e se, por um lado, acabou por levar ao “disengagement” israelita daquele enclave, por outro, reforçou a presença de colonatos judaicos na outra parte do território palestiniano – uma política que tem persistido com bastante intensidade ao longo dos últimos anos. As IDF acabaram por reocupar muitas das zonas de onde tinham retirado no âmbito dos Acordos de Oslo, mais concretamente o de Taba. Ao mesmo tempo, o exercício de governação da Autoridade Palestiniana ficou enfraquecido, acabando por fragmentar-se, gerando, na prática, com as eleições de 2007 em Gaza, duas entidades de poder distintas, uma dominada pelo Hamas, no enclave, e a outra pela Fatah, em Ramalhah.

 

Apesar das dificuldades económicas e das condições adversas de vida na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, o problema nunca se colocou prioritariamente em termos económicos ou financeiros. Quando se trata da questão israelo-palestiniana, essa matéria foi sempre secundária, até porque houve uma integração considerável das economias israelita e palestiniana. Mesmo durante a intifada de Al-Aqsa, em qualquer supermercado palestiniano, muitos dos produtos vendidos eram de origem israelita. E até ao início daquela revolta, muitos palestinianos trabalhavam diariamente em Israel.

 

A intifada de Al-Aqsa trouxe um clima de conflitualidade para o processo israelo-palestiniano que perdura até aos dias hoje. Embora de 2005 em diante o nível da violência tenha descido em termos genéricos, a verdade é que nunca mais foi possível estabelecer um ambiente de relativa acalmia que pudesse criar condições para a prossecução de uma solução definitiva para a questão palestiniana. Basta ver o que aconteceu com o conflito entre o Hamas e as IDF, que fez mais de dois mil mortos na Faixa de Gaza entre Maio e Julho de 2014, ou então constatar-se que, desde há dois anos a esta parte, foram anunciados mais de três mil novas unidades em colonatos na Cisjordânia.

 

A criação de condições negociais não está dependente do factor económico-financeiro. Longe disso. Nunca foi tema no processo israelo-palestiniano durante todos estes anos, já que as difíceis condições económicas e sociais no terreno decorrem da questão política e não o contrário. Veja-se, por exemplo, a situação humanitária dramática que se vive em Gaza, onde cerca de 80% da sua população precisa de assistência e as infraestruturas que prestam os serviços básicos foram destruídas. Circunstâncias que derivam do bloqueio e dos bombardeamentos das IDF sobre o enclave que, por sua vez, Israel diz serem uma resposta às acções terroristas do Hamas. Na Cisjordânia, onde a situação humanitária não é tão grave, verifica-se igualmente um forte constrangimento por causa das dinâmicas políticas: em Jerusalém Oriental e nas zonas C, que representam 60% da Cisjordânia, registam-se muitas dificuldades de circulação e de acesso a condições que permitam uma vida quotidiana normal. De notar que, nestas áreas, Israel tem autoridade na segurança, no planeamento urbano e na construção.

 

É também importante referir que a Autoridade Palestiniana tem sido das entidades estatais que mais fundos recebe da comunidade internacional. Por exemplo, desde 2000, só a Comissão Europeia já disponibilizou a fundo perdido 770 milhões de euros, muitos dos quais veiculados para projectos que, entretanto, foram destruídos pelo conflito. No âmbito da ONU, no mesmo período, já foram disponibilizados quase cinco mil milhões de dólares.

 

O “negócio do século” apresentado há dias por Jared Kushner, conselheiro e cunhado do Presidente Donald Trump, não é mais do que uma repetição da uma estratégia de há muitos anos e esgotada. A diferença agora tem apenas a ver com a quantidade de dinheiro. Mas até neste ponto há algo de enganador, visto que, dos potenciais 50 mil milhões de dólares que possam vir a ser “facilitados” para os próximos dez anos, uma considerável parte é em forma de empréstimos.

 

De inovador o “Peace to Prosperity” tem pouco ou nada, desiludindo por completo aqueles que esperavam um autêntico plano político, após meses de expectativas alimentadas pela própria Casa Branca. Não foi propriamente uma surpresa que tenha sido condenado de imediato pelas autoridades palestinianas. Na verdade, esta terá sido uma das iniciativas no âmbito do processo israelo-palestiniano que menos tempo de vida teve. Um autêntico nado morto diplomático.

 

No workshop realizado nos dias 25 e 26 de Junho em Manama, Bahrein, onde o “Peace to Prosperity” foi apresentado, quase todo o mundo árabe marcou presença para ouvir atentamente Kushner, vendo neste documento um plano de negócio do qual possam beneficiar. Também aqui nada de novo, já que a “causa palestiniana”, em diferentes momentos da História, tem servido os interesses egoístas dos “países irmãos”. A este propósito, é importante referir que muitos palestinianos têm a noção de que estão por sua conta e risco, sentindo-se como um “parente pobre” do pan-arabismo das redondezas, tendo a noção de que são mais as vezes em que os estados árabes os “utilizam” em proveito próprio do que aquelas em que os defendem ou lutam pela criação de um Estado palestiniano.

 

Lendo-se o “Peace to Prosperity” facilmente se constata que é um esforço ingénuo e até inócuo por parte de Kushner, desprovido de qualquer sensibilidade político-diplomática no contexto histórico israelo-palestiniano, e que apenas faria sentido noutro tempo e noutras circunstâncias. O documento, que identifica até com elevado grau de detalhe potenciais projectos, contém algumas ideias económicas interessantes e propósitos sociais positivos, mas totalmente desadequados à realidade actual da Cisjordânia e da Faixa de Gaza.

 

Não é sobre isto que os palestinianos querem falar. Um plano que não tome uma posição clara quanto ao estatuto de Jerusalém e ao fim da construção de colonatos não tem qualquer hipótese de sobrevivência. Já para não falar na retirada das IDF de algumas zonas da Cisjordânia e no fim dos checkpoints e controlo de fronteiras (com o Egipto, na Faixa de Gaza, e com a Jordânia, na Cisjordânia). Questões como o direito de retorno dos refugiados ou o acesso a fontes de água potável são outros temas que podem estar incluídos num plano para ser levado minimamente a sério pelos palestinianos.

 

Kushner não teve nada disto em consideração. Pensou que bastava um PowerPoint com um plano de negócios para seduzir os líderes palestinianos. Não percebeu que do outro lado está um povo que não luta por dólares, mas, sim, por um Estado independente. E quando assim é, exige-se uma diplomacia de alto nível que possa ser mobilizadora ao ponto de alterar o curso da História. Sob este aspecto, a diplomacia americana falhou estrondosamente.

 

Texto publicado originalmente no Público.

 

Defesa europeia dá passo importante e Washington irritou-se

Alexandre Guerra, 22.05.19

 

Dias depois do Parlamento Europeu ter aprovado as verbas destinadas ao novo Fundo Europeu de Defesa, no valor de 13 mil milhões de euros, proposto pela Comissão Europeia no âmbito do Quadro Financeiro Plurianual (QFP) para 2021-2027, com o objectivo de promover a inovação tecnológica e a cooperação no sector da defesa e segurança entre Estados-membros, nomeadamente no apoio ao seu complexo militar-industrial, Washington enviou uma carta a Bruxelas com um tom bastante agressivo, deixando implícitas várias ameaças políticas e represálias comerciais. A missiva, à qual vários meios de comunicação social internacionais tiveram acesso, tinha a data de 1 de Maio e foi enviada a Frederica Mogherini, Alta Representante da União Europeia (UE) para a Política Externa e Segurança, tendo como remetentes a Sub-Secretária de Defesa dos EUA, Ellen M. Lord, e a Sub-Secretária de Estado, Andrea L. Thompson. Nesse “duríssimo texto” (palavras do El País), Washington mostra-se “profundamente preocupado” já que, à luz das regras do Fundo – e não obstante países fora da UE poderem participar –, toda a propriedade intelectual dos projectos abrangidos por aquelas verbas comunitárias tem de ser exclusivamente europeia. Mas mesmo para que um país externo possa participar nestes projectos, estará sempre sujeito a uma votação por unanimidade no âmbito da Cooperação Estruturada Permanente (PESCO), entidade contemplada no Tratado de Lisboa e lançada em finais de 2017. Além disso, o regulamento do Fundo impede que um país terceiro que participe num projecto europeu imponha restrições à exportação comunitária da tecnologia e armamento produzidos. 

 

A União Europeia parece estar finalmente a dar corpo a uma estratégia comum na investigação e desenvolvimento (I&D) da sua indústria de segurança e defesa, ainda para mais, validada pelo Parlamento Europeu, dando-lhe um carácter mais democrático, que vai muito além das decisões circunscritas ao Conselho Europeu. Para quem acompanha estas questões no seio da União Europeia consegue elencar um role de medidas que, durante anos, foram sendo anunciadas, muitas delas com grande pompa mas sem qualquer efeito prático. O Fundo Europeu de Defesa, por seu lado, passou praticamente despercebido (Teresa de Sousa faz referência ao tema na edição do Público de 16 de Maio) apesar de revelar concretização e assertividade dos governantes europeus ao nível da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD). É um passo importante que, acima de tudo, vai ao encontro dos interesses europeus, não deixando de se constatar algum realismo político europeu e “proteccionismo” (eventualmente saudável) face à concorrência de potências externas, nomeadamente os Estados Unidos.

 

Perante isto, Washington reagiu e na carta de Ellen M. Lord e Andrea L. Thompson é referido que o Fundo Europeu de Defesa e a PESCO “pressupõe um retrocesso dramático depois de três décadas de crescente integração da indústria de defesa transatlântica”. Palavras que não deixam de ser cínicas quando lidas à luz daquilo que tem sido a política proteccionista da administração norte-americana e o desinteresse (e até animosidade) com que tem tratado os seus aliados europeus e a própria NATO.

 

Nessa mesma carta, ficam subentendidas potenciais represálias por parte de Washington ao mesmo tempo que exige a Bruxelas que altere as regras do Fundo, especialmente aquelas que dizem respeito à exclusividade europeia da propriedade intelectual e à liberdade de os países europeus poderem exportar livremente material militar, mesmo em projectos participados por empresas americanas. O Pentágono e o Departamento de Estado querem ainda que seja eliminado o direito de veto na PESCO, porque desconfiam que esta medida tenha como intuito afastar deliberadamente empresas norte-americanas.

 

Se foi esse ou não o verdadeiro objectivo que esteve por detrás da medida europeia, não se sabe. Certo é que Bruxelas “ripostou” contra a administração de Donald Trump, precisamente numa das áreas que lhe é mais sensível: o complexo militar-industrial. A julgar pelo grau de irritação patente na carta de Lord e Thompson, dir-se-ia que Bruxelas está, de forma inédita, a concretizar uma política com alguma solidez.

 

Na génese do Fundo Europeu de Defesa, a UE assume claramente que pretende fomentar a “autonomia estratégica na protecção e defesa dos seus cidadãos” através da coordenação, reforço e potenciação dos investimentos dos Estados-membros na área da defesa e segurança. Esta posição representa uma mudança de paradigma perante aquilo que tem sido a “política” europeia ao longo das últimas décadas, resumida a iniciativas de cariz protocolar ou a projectos embrionários que rapidamente ficaram condenados.

 

E importante relembrar que o Fundo Europeu de Defesa foi anunciado pela primeira vez em Setembro de 2016, pelo presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, por ocasião do Discurso do Estado da União, com o objectivo de inovar e potenciar a indústria de defesa europeia. Três meses depois, sairia do Conselho Europeu o convite para a Comissão apresentar propostas para a criação desse mecanismo, que incluísse uma vertente para o desenvolvimento conjunto de capacidades definidas de comum acordo pelos Estados-Membros. O Fundo viria a ser criado formalmente em Junho de 2017 e há poucas semanas a Comissão aprovou para o biénio 2019-2020 o primeiro programa de co-financiamento no valor de mais de 590 milhões de euros para vários projectos industriais nas áreas da cibersegurança, sistemas de alarme e comunicações, vigilância marítima e tecnologia de drones. Note-se que é a primeira vez na história da UE que, no âmbito do orçamento corrente, é disponibilizada uma verba desta dimensão para incentivar os países comunitários a cooperarem na área da defesa. É importante também sublinhar que o período entre 2017 a 2020 deve ser visto como uma fase preliminar do Fundo, antes de arrancar a todo o gás em 2021, com o orçamento já aqui referido de 13 mil milhões de euros.

 

Também esta quantia vai sair directamente do orçamento comunitário, não implicando um aumento da contribuição por parte dos Estados-membros, o que torna a medida ainda mais relevante politicamente, porque decorre de uma opção clara da Comissão e do Parlamento em desviar para a defesa e segurança verbas que podiam ser aplicadas noutras áreas. A medida foi aprovada por 328 eurodeputados, tendo 231 votos contra e 19 abstenções.

 

“Acredito que o Fundo Europeu de Defesa irá ajudar ao desenvolvimento conjunto de produtos e tecnologias de defesa inovadoras em cooperação entre indústrias de diferentes Estados-membros, incluindo aqueles que nunca estiveram envolvidos neste processo até hoje. Graças ao Fundo Europeu de Defesa, não vamos apenas evitar que se desperdice dinheiro dos contribuintes em duplicação desnecessária de recursos de defesa, como, mais importante, vamos aumentar a segurança europeia e criar novos empregos no sector da indústria da defesa”, palavras proferidas por Zdzisław Krasnodebski, o eurodeputado relator do texto aprovado. Caberá agora ao novo Parlamento Europeu que sair das eleições de 26 de Maio continuar as negociações das questões que ainda têm de ser finalizadas. Seja como for, com esta votação, o Parlamento Europeu já fez história e deu um passo muito concreto na construção de uma verdadeira política europeia comum de defesa.

 

Texto publicado originalmente no Público.

 

A Guiné Equatorial devia sair da CPLP*

Alexandre Guerra, 18.04.19

 

As razões que motivaram o interesse e consequente adesão da Guiné Equatorial à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em 2014, nunca foram devidamente explicadas aos portugueses (pelo menos àqueles que seguem estas matérias). Ficou-se com a ideia de que o processo foi desenrolado de forma envergonhada nos bastidores da diplomacia, sem que se compreendesse verdadeiramente por que é que um Estado como a Guiné Equatorial, detentor de um lamentável registo em matéria de Direitos Humanos e sem qualquer ligação histórico-linguística relevante com a CPLP, tenha sido acolhido nesta organização.

 

A X Cimeira da CPLP realizada em Díli, a 23 de Julho de 2014, serviu de palco para os líderes lusófonos formalizarem a adesão, num ambiente “restrito”, como se estivessem a fazer algo às escondidas. Aliás, a própria resolução de “admissão” é de uma pobreza confrangedora, limitando-se a seis curtíssimos parágrafos numa folha A4, sem qualquer elemento marcante ou inspirador, ostentando meras declarações burocráticas. Segundo um take da Lusa na altura, houve “um consenso generalizado" favorável à entrada da Guiné Equatorial, mas também um "debate intenso", suscitado por Portugal. É certo que a diplomacia portuguesa não deixou de manifestar (timidamente) o seu desagrado, mas o que é facto é que acabou por anuir numa decisão que em nada contribuiu para o fortalecimento da CPLP. Pelo contrário.

 

Passaram quase cinco anos desde a adesão e a única justificação encontrada, mas nunca assumida directa e frontalmente por ninguém, teria a ver com a vontade de Luanda, embora nunca se percebendo bem o que ganharia o regime angolano com esta manobra. Mais petróleo? Nessa mesma cimeira de Díli, em que se decidiu admitir a Guiné Equatorial na CPLP, a Lusa citava uma fonte da delegação brasileira, em que informava não ter havido qualquer votação, mas antes "uma formação de uma opinião geral". Conceito vago e revelador da névoa que se tinha abatido sobre todo o processo.

 

Desde então que a Guiné Equatorial tem sido um embaraço no seio da CPLP e, em particular, para Portugal, que dificilmente poderá ser, por muito mais tempo, conivente com o regime que Teodoro Obiang lidera desde 1979. Ainda recentemente, nas páginas do PÚBLICO, a jornalista Bárbara Reis espelhava bem a realidade interna daquele país africano e assumia que: “Temos uma Coreia do Norte na CPLP”. Aliás, a partir do momento em que passou a estar em cima da mesa a eventual adesão da Guiné Equatorial à CPLP, foram várias as ONG e entidades de países africanos que se manifestaram contra essa possibilidade, alegando, precisamente, o cariz ditatorial e repressivo de Obiang.

 

A incoerência (talvez forçada) de Portugal fica evidente quando o próprio Presidente de então, Cavaco Silva, enaltece nessa mesma cimeira de Díli “os princípios fundadores” da CPLP, “que incluem o respeito pelos direitos humanos e o uso do português como língua oficial”. É importante notar que, de todos os países da CPLP, e por diferentes razões histórico-políticas, naturalmente, Portugal talvez fosse aquele que mais desconforto sentisse com a situação.

 

A saída airosa encontrada para Lisboa foi um “roteiro” de Direitos Humanos para Obiang seguir, uma espécie de analgésico para o desconforto sentido nas Necessidades. Entre as várias medidas (nunca efectivamente concretizadas) estava a abolição da pena de morte, que até hoje se traduziu apenas numa moratória, sem que o regime tenha dado sinais de querer resolver o problema definitivamente. Cinco anos depois da adesão e das condições impostas, Obiang desafia claramente Lisboa e, por isso, Cabo Verde, país que actualmente ocupa a presidência da CPLP, está a envidar todos os esforços para que a pena de morte seja abolida rapidamente na Guiné Equatorial.

 

Teodoro Obiang esteve na cidade da Praia, no passado dia 15, reunindo com o seu homólogo cabo-verdiano, onde prometeu que iria abolir a pena de morte, mas sem “pressa”. Esta declaração deve ser recebida sem grande entusiasmo, porque não é mais do que uma resposta cínica de Obiang para aliviar a pressão feita pelo primeiro-ministro português na V Cimeira Luso-Cabo verdiana que se realizou dois dias antes em Lisboa (13). António Costa foi claro nas palavras: ou a Guiné Equatorial cumpre e se revê “neste quadro comum” da CPLP, “um espaço democrático, respeitador do Estado de Direito e sem pena de morte”; ou então, ficou implícito nas suas declarações, terá que deixar de ser membro da CPLP.

 

Porém, o problema não se coloca apenas na questão da pena de morte, porque o regime de Obiang padece de inúmeros males, incompatíveis com os princípios e valores democráticos. A organização não governamental Human Rights Watch destaca a corrupção endémica, o nepotismo e a repressão violenta como algumas das piores violações de Obiang. Ainda há dias divulgou um vídeo para sensibilizar os governos com assento no Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas (HRC) a serem particularmente vigilantes no âmbito do terceiro ciclo da Universal Periodic Review (UPR). A UPR é um mecanismo de acompanhamento e de escrutínio aos indicadores dos Direitos Humanos, em que cada Estado-membro da ONU tem que “prestar contas”, de quatro em quatro anos, sobre o “estado da arte” nesta área. No caso da Guiné Equatorial, está previso que o processo de revisão seja colocado à consideração do HRC no próximo dia 13 de Maio, esperando-se que desta nova avaliação fique bem evidenciado o “silenciamento” brutal de activistas e opositores políticos, com inúmeros casos de detenções arbitrárias, intimidação e tortura. Este processo ganha particular relevância neste momento, uma vez que a Guiné Equatorial integra o Conselho de Segurança, enquanto membro não permanente.

 

Não é preciso ser-se um especialista em relações internacionais ou diplomacia para perceber que a Guiné Equatorial, sob o regime ditatorial de Obiang, nunca deveria ter tido lugar numa organização como a CPLP e é por isso que, agora, a diplomacia portuguesa devia assumir, com toda a convicção, a correcção do erro histórico cometido há cinco anos em Díli, iniciando o processo de saída daquele país. Uma espécie de “Brexit”, mas ao contrário. Além disso, as circunstâncias políticas em Angola alteraram-se radicalmente, soprando ventos de alguma mudança, que poderão ajudar Lisboa no afastamento da Guiné Equatorial e, ao mesmo tempo, na revitalização e credibilização da CPLP.

 

*Artigo publicado esta Quinta-feira (18) no jornal Público.