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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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Czares da Rússia, o primeiro e o actual

Alexandre Guerra, 10.05.21

Nos tempos recentes o autoritarismo do regime russo tem vindo a ficar mais musculado, com a introdução de uma série de medidas que, por um lado, reforçam e perpetuam o poder de Vladimir Putin e, por outro, instituem de forma brutal e audível o factor medo junto dos actuais e potenciais opositores. A estratégia não é nova, mas se outrora havia uma certa dissimulação na sua concretização ou alguma preocupação do regime em tentar disfarçar associações directas do Kremlin a tudo o que eram manobras ou acções para silenciar opositores indesejáveis ou oligarcas rivais, agora as coisas começam a ser feitas às claras, assumidas política e publicamente por Putin. Como referia há dias Mark Galeotti, especialista em assuntos russos, num interessante artigo no The Moscow Times, durante estes últimos vinte anos a Rússia viveu num regime de “autoritarismo pós-moderno”. Era algo “híbrido” em que a relação de poder entre o Kremlin e a sociedade russa não assentava tanto na força e no medo, mas antes numa narrativa de grandeza patriótica e de nacionalismo exacerbado, alimentada por uma certa ideia romântica de renascimento russo e por uma exortação quase bélica contra os inimigos internos e externos da “Mother Russia”.

Importa recordar que, naquilo que foi a sua construção de poder, Putin beneficiou da anarquia herdada do então Presidente Boris Yeltsin, que conduziu a Rússia e o orgulho do seu povo à sarjeta da História. Em contraste absoluto, Putin emergiu aos olhos dos russos como um novo Czar, o líder que iria restituir a dignidade perdida. Durante vinte anos, este modelo de governação foi resultando, com Putin a manter taxas de popularidade muito elevadas e com a oposição interna reduzida a alguns casos pontuais, mais mediatizados pela imprensa internacional do que propriamente potenciadores de movimentos contestatários internos. No entanto, foram-se abrindo algumas brechas na sociedade e nas elites, ao mesmo tempo que a popularidade de Putin foi descendo. Por exemplo, há cinco anos, andava à volta dos 80 por cento, actualmente rondará os 60. Muito alta ainda, mas a decrescer.

Aos 68 anos e após duas décadas de poder incontestado, Putin percebeu que chegara a hora de reajustar a estratégia e assumir de forma desinibida o seu autoritarismo. Nestes primeiros meses de 2021 já formalizou alterações constitucionais necessárias para que possa servir durante mais dois mandatos, o que é o mesmo que dizer que se manterá no Kremlin até, pelo menos, 2036. Caminho aberto para a perpetuação de poder. Deteve sem qualquer hesitação ou camuflagem o seu principal rival à chegada ao aeroporto de Moscovo, indiferente ao aparato mediático ou às pressões internacionais, ou ainda a eventuais consequências internas provocadas por movimentos contestatários. E há dias, Alexei Navalny foi declarado como inimigo público da Rússia e a sua organização classificada como “terrorist-linked”. Pelo meio, restringiu o trabalho dos meios de comunicação social internacionais no país, classificando-os como foreign agents. Como se não bastasse, na passada Sexta-feira assinou uma lei em que exige aos meios de comunicação nacionais que, sempre que repliquem uma notícia de um destes órgãos estrangeiros, tenham que citar a fonte como foreign agents. E ainda houve tempo para uma mobilização massiva de poder de fogo para a fronteira com a Ucrânia e costa do Mar Negro.

Putin intensifica a repressão e reforça o seu controlo, evolui no modelo de “autoritarismo pós-moderno”, para o que Galeotti chama de “autoritarismo pós-pós-moderno”, o que na prática representa um regresso ao “autoritarismo à moda antiga”, em linha com aquilo que tem sido o comportamento histórico dos vários líderes russos desde os tempos de Ivan III (1440-1505). A este propósito eu escrevia em 2015 no Público um artigo sobre a longa história de autoritarismo na Rússia, no qual sustentava a tese de que havia quase como que uma espécie de predisposição da sociedade russa para aceitar essa forma de Governo. Uma ideia sustentada por vários estudos sociológicos e defendida, em certa medida, por Richard Pipes, um dos maiores especialistas da Rússia, falecido em 2018, com mais de 90 anos.

É preciso relembrar que, desde os tempos da sua formação enquanto reino, a Rússia tem sido uma região muito especial no que à dinâmica entre governantes e governados diz respeito. Para quem conhece e segue a história das lideranças russas, constatará uma tendência crónica para o autoritarismo (já para não falar em totalitarismo, nalguns períodos). É uma evidência histórica. Quando no século XV Moscovo era ainda um Principado, o Grão-Príncipe Ivan III foi o primeiro líder russo a adoptar uma política clara de agregação de vários territórios no sentido de unificar um Estado grande e poderoso. Influenciado pela tradição política mongol, e à semelhança do que iria acontecer com todos os governantes russos até aos dias de hoje, Ivan III impôs um estilo autocrático na prossecução dos seus objectivos. Embora não fosse propriamente um líder sanguinário, nunca deixou de recorrer à violência sempre que não conseguia alcançar os seus propósitos pela via negocial. É através de uma lógica agressiva que vai conquistando alguns territórios para a Rússia que ainda estavam sob jugo mongol-tártaro. Para aquele líder, Moscovo tinha que se assumir como um pólo imperial. E, para isso, era preciso transformar o Principado num centro metropolitano da Igreja, ou seja, a “Terceira Roma”.

O estilo autocrático dos poderes de Roma e de Constantinopla foram uma inspiração para Ivan III, inspiração essa que se tornou uma marca no estilo de liderança russa. Moscovo passava a ser o centro da Igreja Ortodoxa e esta assumia-se como um instrumento fundamental para a sua legitimação junto do povo e como correia de transmissão entre o poder e a sociedade feudal. Basta ver a forma como todos os líderes russos, incluindo Vladimir Putin, se relacionam com os patriarcas ortodoxos e percebe-se a proximidade entre a Igreja e o Estado.

Quando morreu, Ivan III deixou um Estado russo independente, centralizado e poderoso, tendo Moscovo como capital e um vasto território. Introduziu a cerimónia da coroação e foi o primeiro a denominar-se Czar da Rússia. Hoje, e apesar da tal título ter desaparecido do léxico russo com a Revolução de 1917, Putin continua a personificar o espírito dessa figura autoritária, poderosa e quase semi-divina. Em muitos aspectos, poucas diferenças há entre Ivan III e Vladimir Putin. Na verdade, ao longo dos séculos, os traços de autoritarismo e, por vezes, de algum totalitarismo aliado a uma violência extrema, estiveram sempre presentes na forma de governar dos líderes russos. Putin não é mais do que um Czar dos tempos modernos.

Porém, houve um processo evolutivo na entronização de Putin. Quando a 9 de Agosto de 1999 o então Presidente Yeltsin demitia o seu Governo e apresentava ao mundo uma nova figura na vida política russa, poucos eram aqueles que conheciam Vladimir Putin. Aos 46 anos, Putin, ligado ao círculo de São Petersburgo, e antigo oficial do KGB (serviços secretos), assumia a chefia do novo Executivo, com a motivação manifestada por Yeltsin de que gostaria de vê-lo como seu sucessor nas eleições presidenciais de 2000. Segundo alguns registos, Putin nunca terá tido a intenção de seguir uma carreira política, no entanto, teve sempre um alto sentido de servidão ao Estado, como aliás fica bem evidente na biografia de Steven Lee Myers, "O Novo Czar" (2015, Edições 70). Na altura, terá confessado que jamais tinha pensado no Kremlin, mas outros valores se erguiam: “We are military men, and we will implement the decision that has been made”, disse Putin.

Muitos viram na decisão de Yeltsin o corolário de uma carreira recheada de erros e que conduzira o país ao caos e anarquia. A ascensão de Putin era vista como mais um erro. Citado pelo The Moscow Times, Boris Nemtsov, então um dos líderes do bloco dos "jovens reformistas" na Duma e que viria a ser assassinado em Fevereiro de 2015, disse que Putin causou uma fraca impressão na primeira intervenção naquela câmara. "Não era carismático. Era fraco." Também ao mesmo jornal, Nikolai Petrov, do Carnegie Moscow Center, relembrava que Putin deixou uma "patética imagem", sendo um desconhecido dos grandes círculos políticos e que demonstrava ter pouco à vontade com aparições públicas, chegando mesmo a ter alguns comportamentos provincianos. Apesar disso, a Duma acabaria por aprovar a sua nomeação para a liderança do Governo, embora por uma margem mínima.

É preciso não esquecer que Putin reunia apoio nalguns sectores, nomeadamente naqueles ligados aos serviços de segurança, que o viam como um homem inteligente e com grandes qualidades pessoais. E, efectivamente, após ter assumido os desígnios do Governo, Putin começou de imediato a colmatar algumas das suas falhas, nomeadamente ao nível de comunicação, e a desenvolver capacidades que se viriam a revelar fundamentais na sua vida política. É o próprio Nemtsov que reconheceu o facto de Putin se ter tornado mais agressivo e carismático, dando às pessoas a imagem do governante que os russos prezam. Características que se encaixaram na perfeição ao estilo musculado necessário para responder às explosões que ocorreram em blocos de apartamentos de três cidades russas, incluindo Moscovo, em Setembro de 1999, vitimando sensivelmente 300 pessoas, colocando o tema da segurança no topo da agenda da vida política russa, para nunca mais sair de lá. Em Outubro desse ano, como resposta, Putin dava ordem para o envio de tropas para a Chechénia. O novo Czar mostrava-se ao povo russo como um guerreiro implacável. 

Nas eleições presidenciais de 2000, Putin obteve 53 por cento dos votos, contrastando com os 71 por cento conquistados quatro anos mais tarde. Por imposição constitucional ficou impedido de concorrer a um terceiro mandato presidencial. Putin teve então de fazer uma passagem pela chefia do Governo entre 2008 e 2012, mas era claro que não tinha verdadeiras intenções de deixar os desígnios da nação nas mãos do novo ocupante do Kremlin. Conhecendo-se um pouco da história política russa e da sua liderança, facilmente se chegaria à conclusão que Putin era o homem por detrás do poder, enquanto o novo Presidente em exercício, Dimitri Medvedev, seria apenas um "fantoche". Medvedev compreendeu bem o seu papel nesta lógica de coabitação, remetendo-se praticamente a uma mera representação institucional, sem ousar discutir com Putin a liderança da política russa. Como na altura se constatou, a forma seria apenas um pormenor porque o que estava em causa era a substância da decisão. Ouvido na altura pela rádio Ekho Moskvy, o analista russo Gleb Pavlovsky ia directo à questão central: "We can forget our favourite cliche that the president is tsar in Russia." E neste caso o Czar é Vladimir Putin que tanto o poderia ser na presidência (Kremlin), na chefia do Governo ou noutro cargo qualquer, desde que fizesse as devidas alterações constitucionais e que continuasse acompanhado dos seus siloviki.

Texto publicado originalmente no Novo Semanário

A questão palestiniana

Alexandre Guerra, 25.11.20

Estávamos no Verão de 2001 e um dia, numa das suas aulas de especialização em Estudos Palestinianos na Universidade de Birzeit, Abdul Sattar Kassem, reputado professor de Ciência Política e antigo candidato presidencial contra Yasser Arafat em 2002, explicou-nos que havia uma regra na Palestina: nunca assinar nada com os israelitas. Não esqueci esta frase. Na altura, a violência instalara-se na Cisjordânia e na Faixa de Gaza por causa da intifada de al-Aqsa e o que restava de todos os acordos e tratados de paz eram meros resquícios. Aquela afirmação algo extremada de Sattar Kassem, ele próprio um activista que esteve várias vezes detido nas prisões israelitas e palestinianas — neste caso, devido às críticas feitas à Autoridade Palestiniana —, era consequência de décadas de desconfiança em relação a Israel. Mas percebi também que Sattar Kassem, professor residente na An-Najah National University em Nablus (a maior da Palestina), tinha uma outra perspectiva ao responsabilizar em parte os palestinianos pela situação a que se tinha chegado. Por um lado, achava que muitos dos seus concidadãos tinham aceitado passivamente o domínio israelita, desresponsabilizando-se da gestão dos seus desígnios. Por outro lado, a elite política de Ramallah era dominada pela corrupção e estava mais interessada na sua sobrevivência do que propriamente numa solução duradoura com Israel.

Independentemente da validade destes argumentos, o facto é que quando rebentou a intifada de al-Aqsa, em Setembro de 2000, com a visita provocatória do então recém-eleito primeiro-ministro hebraico, Ariel Sharon, à Mesquista de Al-Aqsa, na cidade velha de Jerusalém, no lado palestiniano já quase ninguém acreditava no processo negocial com Israel.

Dentro das fileiras da Autoridade Palestiniana faltavam interlocutores e apenas um homem continuava focado nessa missão: Saeb Erekat. Era o rosto da diplomacia e da negociação em terra de conflito. Morreu aos 65 anos no passado dia 10 de Novembro num hospital israelita em Jerusalém ocidental, por complicações provocadas pela covid-19, desaparecendo, assim, uma das poucas figuras consensualmente respeitadas interna e externamente por diferentes quadrantes políticos e estatais. O “Dr. Erekat”, como a ele se dirigia respeitosamente qualquer cidadão comum da Cisjordânia ou da Faixa de Gaza, fosse da Fatah ou do Hamas, foi o principal rosto palestiniano no interminável processo negocial. Ao longo de um quarto de século foi um dos membros da Autoridade Palestiniana mais próximos de Yasser Arafat e de Mahmoud Abbas, tendo sido quase sempre o chefe-negociador junto da comunidade internacional.

Desde a Conferência de Paz de Madrid, em 1991, Erekat esteve presente em todos os acordos e planos negociais. Todas estas tentativas fracassaram. Outra coisa não seria de esperar. Podem ser encontradas inúmeras razões, mas a explicação mais certeira é aquela mais óbvia e que há muitos anos vários palestinianos me disseram: a causa palestiniana serve apenas para os “irmãos árabes” ficarem bem na fotografia, porque, na prática, nunca existiu uma verdadeira solidariedade pan-árabe em relação à questão israelo-palestiniana. Talvez também por isso o pensador e professor Edward Said (1935-2003), uma das grandes referências culturais palestinianas, tenha escrito um dia que “a história palestiniana tomou um curso peculiar e muito diferente da história árabe” (The Question of Palestine, Vintage Books, 1992 [ed. orig.1 972]).

O que se assistiu historicamente foi uma instrumentalização da causa palestiniana – muitas vezes, através de meras operações de relações públicas – para servir interesses próprios de Estados árabes vizinhos e até mesmo de Washington ou Moscovo (ainda no cenário de Guerra Fria), sem que tal implicasse uma efectiva pressão sobre Israel na prossecução de uma solução permanente que servisse os interesses palestinianos.

O que se viu recentemente com o acordo patrocinado por Washington entre os Emirados Árabes Unidos e Israel, “embrulhado” como uma oportunidade de “paz e prosperidade” para os palestinianos, é um excelente exemplo desse aproveitamento e que, na verdade, não é mais do que uma réplica do que já tinha acontecido com os acordos de paz entre o Egipto e Israel, em 1979, e entre a Jordânia e o Estado Hebraico, em 1994. Todos eles sob os auspícios de Washington, deixando satisfeitas as partes envolvidas, trazendo claros benefícios para a região em termos de estabilidade, mas deixando os palestinianos cada vez mais isolados, na medida em que os seus “irmãos” trocariam a solidariedade pela “realpolitik”, sem que com isso promovessem qualquer contrapartida para a independência do povo palestiniano.

A história palestiniana está cheia de traições dos vizinhos árabes. Uma delas aconteceu logo a seguir à Guerra do Golfo, quando o secretário de Estado norte-americano de então, James Baker, realizou várias viagens à região para promover um espírito de concórdia, mas ao mesmo tempo toda a comunidade palestiniana que teve de fugir do Kuwait aquando da invasão das tropas iraquianas foi impedida de regressar às suas casas após o fim do conflito. Milhares de palestinianos acabaram por ser obrigados a deslocarem-se para a Jordânia, sobrecarregando, ainda mais, os campos de refugiados que ali existiam (e existem).

Anos depois, Washington, através do então Presidente Bill Clinton, acabaria por conseguir sentar na mesma mesa palestinianos e israelitas, enquanto delegações únicas, através do Processo de Oslo, que se iniciaria em 1993 e culminaria em dois acordos, o primeiro dos quais assinado nos Jardins da Casa Branca, a 13 de Setembro desse ano, entre Yasser Arafat, na qualidade de líder da OLP, e Yitzhak Rabin, enquanto primeiro-ministro israelita – que seria assassinado dois anos depois por um judeu ortodoxo.

Ficou célebre aquele aperto de mão entre os dois antigos inimigos – e aquela fotografia “behind the scenes” momentos antes de ser assinado o documento, com Clinton, Mubarak, Hussein e Rabin em privado a ajeitarem as suas gravatas em frente ao espelho, sob o olhar atento de Arafat. Apesar do rejúbilo da comunidade internacional, para muitos palestinianos foi uma traição. E, mais tarde, os próprios líderes, incluindo Arafat, perceberam isso à custa da dura realidade.

Aquilo que era para ser o início de um processo em direcção à construção de um Estado Palestiniano independente acabou por ser um fim em si mesmo. Ou seja, os Acordos de Oslo consolidaram e formalizaram uma situação intermédia que, embora contemplasse alguns avanços – como a criação da própria Autoridade Palestiniana, a retirada israelita da Faixa de Gaza e de algumas zonas da Cisjordânia, ou a soberania policial palestiniana em áreas determinadas –, deixava em suspenso por tempo indeterminado tudo o resto (capital do país, retorno dos refugiados, impostos, colonatos judaicos, acesso a recursos hídricos, ente outras questões vitais). Com a morte de Rabin deixou de haver condições e vontade do lado israelita para se concretizar o Processo de Oslo até ao seu fim. E o que estava em prática, além de servir os interesses de Israel e agradar à comunidade internacional, tinha a legitimidade de ter sido aceite e assinado pelos palestinianos.

Oslo foi para muitos palestinianos uma “opção errada” e, por isso, nunca perdoaram o seu antigo líder Arafat pelas concessões feitas nesses acordos ou por ter sido tão ingénuo ao ponto de acreditar nas suas virtudes. Se Rabin não tivesse sido assassinado, quem sabe se Oslo não teria sido um sucesso, mas a história dos povos não se faz com realidades alternativas.

Opção errada ou não, a verdade é que outras alternativas eram mera ilusão. O sonho foi-se esvanecendo e Oslo seria o máximo que Israel estaria disposto a dar, bem longe daquilo que estaria contemplado nas Resoluções do Conselho de Segurança da ONU 242 e 338. Como escreveu Said, também ele um feroz crítico de Oslo, a história palestiniana “está cheia de opções erradas e até mesmo de catástrofes para as quais, na altura, as alternativas plausíveis eram apenas teóricas e, efectivamente, irrealizáveis”.

“Catástrofes” que marcaram profundamente a consciência colectiva dos palestinianos, como a data de 14 de Maio de 1948, que instituiu o Estado de Israel. Ou ainda o dia 2 de Novembro de 1917, com a Declaração Balfour, através da qual Londres, pela pena do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Arthur Balfour, manifestou o apoio da Inglaterra ao movimento sionista, na pessoa de Lord Rothschild, para a criação de um Estado hebraico na Palestina, numa altura em que a presença de judeus naquela região estava circunscrita a uma pequena minoria. Para muitos palestinianos, este foi o pecado original para todos os males.

Importa referir que, após a criação do Estado de Israel, a causa palestiniana foi mobilizando a comunidade internacional, chegando a ser nos anos 70 acarinhada pela maioria dos movimentos políticos progressistas em todo o mundo, não havendo figura de relevo ou “freedom fighter” que não se identificasse com a sua luta, transigindo com os vários atentados terroristas realizados por facções e grupos militares, directa ou indirectamente, ligados à OLP de Arafat.

Nesta altura, mesmo no seio da cúpula palestiniana, instalou-se a ideia materializável da coexistência de dois Estados independentes na Palestina. O problema é que no final dos anos 70 começa-se a criar um ambiente político em Israel que vira à direita, para dar lugar a vários Governos do Likud, entre 1977 e 1992, praticamente de forma ininterrupta, liderados por Menachem Begin e Yitzhak Shamir. Os anos 80 foram dramáticos para os palestinianos a vários níveis. Conflitos no Líbano, na Jordânia, os massacres de Sabra e Shatila, entre outros episódios. Nos territórios ocupados da Cisjordânia e da Faixa de Gaza estala a primeira intifada, que ficou conhecida como a “Guerra das Pedras”.

O fim da Guerra Fria e dos seus alinhamentos perversos, a globalização e a crença ingénua de que um admirável mundo novo liberal e pacífico estava a despontar, e o entusiasmo do carismático Clinton aliado à chegada dos trabalhistas ao poder em Israel, com Shimon Peres e Yitzhak Rabin, foram alguns dos factores que permitiram criar um certo desanuviamento no quadro da problemática israelo-palestiniana e que conduziria a Madrid e depois a Oslo. Estava aberta uma janela de oportunidade, mas foi efémera. Na segunda metade dos anos 90 as esperanças que ainda havia foram esmorecendo e o processo foi-se degradando. Nos territórios da Cisjordânia o descontentamento e a frustração aumentavam. Para a história, começava um dos períodos mais sangrentos entre palestinianos e israelitas desde que o Estado de Israel fora fundado. A intifada de al-Aqsa estava nas ruas.

Apesar das frustrações e da falta de apoio dos “irmãos” árabes, Saeb Erekat nunca cedeu à fácil tentação de cair na radicalização do discurso ou na defesa da violência. Conheci-o nesse Verão de 2001, onde tive oportunidade de o entrevistar para o Expresso, na sua cidade natal de Jericó, na altura sitiada pelas Forças de Segurança Israelitas (IDF) – só à segunda tentativa consegui entrar.

Nessa entrevista, e apesar da violência diária que se fazia sentir nas ruas das cidades da Cisjordânia e Faixa de Gaza, dos feridos e mortos, da pobreza, dos confinamentos e checkpoint impostos arbitrariamente pelas IDF, Erekat reforçou o seu compromisso com o processo negocial, apelando à comunidade internacional para que mobilizasse observadores externos. E, ao recuperar essa entrevista, há uma das frases que resume bem o que ele sempre defendeu: “Nós queremos que o processo de paz chegue a bom porto. Desde Madrid que tentamos que as resoluções da ONU sejam aplicadas para atingirmos a independência. Porém, Israel não cumpre os acordos e continua com a expansão dos colonatos. Nós queremos atingir os nossos objectivos pacificamente, pois estamos a pagar um preço muito alto. Queremos um processo de paz que acabe com esta ocupação, através da concretização das Resoluções 242 e 338 das Nações Unidas.”

Naquela altura, Erekat era o único que ainda se fazia ouvir, porque Arafat já se havia desligado há muito do processo, sendo aliás visto por Israel como um alvo a abater. Os anos passaram e Erekat continuou a tentar, mas condenado ao insucesso e sem que do lado palestiniano se tivesse desenvolvido qualquer tipo de estrutura negocial sólida para lidar com esta questão. Com a morte de Erekat deixou de haver interlocutor, como sublinhavam há dias no Haaretz antigos diplomatas americanos que trabalharam ou conheceram aquele negociador.

Sobretudo a partir do falhanço de Oslo, o sistema político palestiniano e as suas elites foram-se acomodando a um status quo que sempre funcionou a favor de Israel, mas que também trouxe algumas comodidades políticas para os governantes em Ramallah, desresponsabilizando-os dos erros da gestão quotidiana dos territórios da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Também uma parte do povo – não obstante as provações diárias de que foi e é alvo – se resignou a uma lógica de vitimização constante, culpabilizando o “inimigo” por todos os males nos territórios. Como um dia me disse um jovem palestiniano: “Podemos culpar os israelitas por muitos dos nossos problemas, mas não podemos culpá-los por tudo. Chegámos a um ponto em que, se temos um botão a desprender-se da nossa camisa, culpamos os israelitas.”

Com os anos a passarem e a ausência de uma solução efectiva, o território palestiniano foi sempre encolhendo (basta olhar os mapas) e os direitos de soberania minguando. O cumprimento das Resoluções 242 e 338 é hoje uma miragem. A morte de Erekat não deixa também de ser, simbolicamente, o fim da réstia de esperança que, porventura, alguns ainda teriam na criação de um Estado Palestiniano em condições mínimas de independência. Ainda há uns dias, foi anunciado que a Autoridade Palestiniana ia retomar as relações com Israel, nomeadamente ao nível da coordenação de segurança e de política fiscal, depois de Telavive se ter comprometido a guiar pelos acordos assinados entre as duas partes. Isto pouco significa em termos de processo de paz, porque o que está em causa com estas “relações” é apenas a gestão quotidiana entre territórios. É uma necessidade prática de Telavive e Ramallah perante duas realidades de tal forma intrincadas social, económica e geograficamente, que estão condenadas a conviverem, seja com uma solução de dois Estados independentes ou não.

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.

Portugal à conquista de novo território

Alexandre Guerra, 29.09.20

“A política dos Estados está na sua geografia”, terá escrito Napoleão em 1804 numa carta enviada ao Rei da Prússia, para enfatizar a importância do território como factor de poder nas relações internacionais. No início do século XIX talvez fosse ainda o mais importante, aquele que, porventura, mais vezes ditou o desfecho de guerras. Seja como for, mais de duzentos anos depois da missiva do imperador francês, o critério do território perdeu algum do seu peso na hierarquização das potências no sistema internacional, no entanto, continua a ser um importante atributo na caracterização do poder das nações. Por essa razão, a sua conquista – legal ou ilegal, formal ou informal – permanece como um objectivo válido na política externa de alguns Estados. Veja-se, por exemplo, a disputa do Ártico pela Rússia, a expansão chinesa ao Mar do Sul da China através da apropriação e transformação de vários ilhéus em bases militares, ou a construção de colonatos israelitas na Cisjordânia. Citando três exemplos que correspondem a diferentes tipos de motivações. No caso de Israel, a conquista territorial apresenta-se como uma questão de sobrevivência do seu Estado. Há uma necessidade de aumentar a sua profundidade estratégica. Já a política expansionista territorial desenvolvida por Pequim é uma afirmação de poder de um país que se assume como uma superpotência mundial e que vê como natural o controlo espacial do que considera ser a sua esfera de influência. Moscovo, por seu lado, não vê no Ártico uma motivação em termos de segurança ou de projecção de poder no sentido mais clássico. O que mobiliza o Kremlin são factores económicos e energéticos

A última vez que Portugal tinha embarcado numa tentativa de conquista de novo território foi, precisamente, no século XIX. Era o sonho imperial da África Meridional Portuguesa, que estenderia a soberania portuguesa da costa atlântica à costa índica, entre Angola e Moçambique. De certa maneira, 130 anos depois, Portugal volta a abraçar o desígnio nacional de alargamento do seu espaço territorial para além das fronteiras definidas e reconhecidas. É um feito grandioso que está em curso, mas desta vez assente em pressupostos realistas que o podem tornar concretizável e aceitável à luz do Direito Internacional.

Das notícias que se vão lendo e do que se vai sabendo, parece haver boas probabilidades de vir a ser reconhecida formalmente a Portugal, num futuro não muito longínquo, a tão ambicionada extensão da sua Plataforma Continental numa área muito considerável para além do limite das 200 milhas náuticas da Zona Económica Exclusiva (ZEE). Quando acontecer – como se espera –, será um dos momentos marcantes da História de Portugal, porque a comunidade internacional reconhecer-lhe-á uma nova configuração em termos de soberania de território.

Tem sido um processo longo, laborioso e muito técnico, envolvendo várias disciplinas e entidades, como o Instituto Hidrográfico ou o IPMA, e conduzido pela Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental (EMEPC), que tem trabalhado na “fundamentação e defesa da proposta de Portugal, junto das Nações Unidas, para a determinação do limite exterior da plataforma continental para além das 200 milhas marítimas das linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial”. Na prática, Portugal, o Estado costeiro, pretende alargar os seus direitos de soberania no solo e subsolo das áreas submarinas para efeitos de exploração e aproveitamento dos seus recursos naturais.

O processo submetido em 2009 à Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) no quadro da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que prevê a demarcação dos limites exteriores da sua plataforma continental para além das 200 milhas náuticas, é em si mesmo uma fonte de conhecimento científico. Porém, além das questões técnicas envolvidas num processo tão complexo e das potencialidades de exploração dos recursos naturais subjacentes a um vasto território, existe uma dimensão geopolítica e geoestratégica que merece uma reflexão profunda e que, inevitavelmente, terá de ser enquadrada na visão de Portugal no mundo para as próximas décadas. A extensão da Plataforma Continental não pode nem deve ser encarada exclusivamente numa lógica economicista ou oportunista.

É muito mais do que isso. É uma mobilização colectiva da identidade nacional, que moldará o papel de Portugal no sistema internacional e na forma como assumirá nas décadas vindouras temas estratégicos para a Humanidade, tais como as questões ambientais e a protecção dos mares, o combate ao tráfico ilegal de pessoas e a vigilância do Altântico Norte, ou as relações entre a Europa e a América, entre a Europa e África. São muitas as dimensões para lá das potencialidades económicas. Ao “conquistar” uma imensidão de território, Portugal está a projectar a sua soberania nas relações internacionais. O que está em causa é a definição de um novo limite externo do solo e subsolo marinhos. Ou seja, um limite até onde o Estado pode exercer poderes de soberania e jurisdição (já exerce alguns no âmbito do processo em curso).

Espera-se que a CLPC venha a reconhecer todo o trabalho que está a ser desenvolvido pela EMEPC. Será um dia histórico, para o qual as elites e a opinião pública em geral ainda não estão verdadeiramente sensibilizadas. Há tempo para esse trabalho de pedagogia, mas terá de ser feito. Se é verdade que a candidatura em curso já implica um esforço técnico e financeiro considerável, chegará o momento em que Portugal necessitará de assumir convictamente as suas responsabilidades e deveres na gestão daquele que será o seu novo território. E nessa altura, os portugueses têm de estar cientes de que existirão, muito provavelmente, investimentos que terão de ser feitos.

Como alertava recentemente o Almirante António Silva Ribeiro, Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, “as responsabilidades decorrentes da extensão da plataforma continental reforçam o requisito de maior presença aeronaval no nosso vasto espaço atlântico e, sobretudo nas regiões autónomas onde é reduzida” (Sábado, 27 de Agosto). Por presença aeronaval leia-se capacidade naval e aérea para assegurar o exercício de soberania nacional em toda a plenitude no novo território.

A História já ensinou a Portugal que a ambição desmesurada de conquista territorial sem a capacidade efectiva para a sua concretização resulta em desastre. A lição do tristemente célebre “Ultimato inglês” de 1890 foi dura e humilhante, mas compreensível à luz daquilo que eram os novos contornos das regras internacionais. A ilusão do Mapa Cor-de-Rosa assentava no princípio dos “direitos históricos” e num ambiente europeu que já não existia. A nova realidade sistémica saída da Conferência de Berlim (1884-85) era de competição entre as potências europeias em África e impunha o novo princípio da “ocupação efectiva”. Portugal, por mais ambição e engenho diplomático que tivesse, não tinha as ferramentas necessárias para concretizar o seu sonho africano.

Se as Nações Unidas anuírem nas pretensões nacionais, estarão certamente a dar como válidas todas as garantias que as autoridades portuguesas terão dado quanto às suas capacidades civis, científicas e militares para assegurar os compromissos e responsabilidades inerentes a tamanha tarefa. O alerta do CEMGFA vai nesse sentido, já que se perspectiva a necessidade de investimentos em material militar e técnico. É importante lembrar que Portugal é um dos países do mundo com a maior ZEE, onde várias entidades militares e civis exercem a soberania, nomeadamente a Marinha e a Força Aérea Portuguesa (FAP). Além de todas as operações militares inerentes ao conceito mais clássico de Segurança & Defesa, a soberania na ZEE acarreta inúmeras obrigações, tais com a fiscalização e controlo das actividades de pesca, a detecção e controlo de actividades ilícitas, o combate à imigração Ilegal, busca e salvamento, entre outras.

Além do seu papel importante no combate às ameaças, os meios militares surgem como importantes elementos dissuasores de potenciais movimentações hostis em relação aos interesses portugueses. Da usurpação de recursos naturais à violação de tratados internacionais de pesca por parte de Estados vizinhos, passando pela poluição dos mares provocada por embarcações estrangeiras através de lavagens ilegais de tanques ou de derrames, as forças militares desempenham, muitas vezes, um trabalho pouco visível ao grande público, mas de enorme importância para Portugal.

Embora a Plataforma Continental compreenda “apenas” o solo e subsolo marinhos (e não a coluna de água), a sua extensão para além das 200 milhas náuticas da ZEE obrigará a um reforço da presença aeronaval no Atlântico, porque essa área passará a fazer parte do território português. Além da protecção dos seus recursos naturais vivos e minerais marinhos no solo e subsolo, Portugal tem de ter capacidade para enfrentar ou dissuadir a parafernália de potenciais ameaças acima identificadas.

Quando há mais de 15 anos se gerou um debate tão aceso por causa da aquisição de dois submarinos mais modernos da classe Tridente, ficou demonstrado que uma parte das elites e da opinião pública ainda não estava sensibilizada para as exigências de um território marítimo como o português. Atente-se ao seguinte: actualmente, a ZEE equivale a quase 20 vezes o território nacional terrestre; é a terceira mais extensa da UE e a décima primeira a nível mundial. Esse debate tornou-se ainda mais desajustado se tivermos em consideração que os submarinos são um instrumento racional, com características únicas quanto à sua capacidade de agir de forma encoberta, sendo de enorme valia enquanto dissuasor de ameaças, já para não falar no seu longo raio de alcance. O seu potencial é extraído ao máximo quando usado em complementaridade com outos meios, sejam marítimos, aéreos ou terrestes.

Se queremos que Portugal seja efectivamente o “país do mar” num mundo de ameaças assimétricas, não podemos olhar para aquisição de material militar para a defesa do seu território marítimo como um luxo ou capricho, mas, sim, como uma necessidade – por exemplo, há muito que Portugal talvez já devesse ter investido num navio polivalente logístico, dotada para missões humanitárias ou crises de saúde pública.

Neste aspecto, importa reconhecer, encontra-se algum conforto no célebre documento “A Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030”, da autoria do consultor governamental António Costa Silva, no qual o mar é apresentado como um dos vectores fundamentais no reposicionamento de Portugal no sistema internacional. E é por isso que “é fundamental reforçar a capacidade de conhecimento, controlo e fiscalização do mar”, sendo “necessário acelerar o programa de construção dos navios-patrulha oceânicos e apostar em capacidade de vigilância própria no espaço”.

A julgar pela estratégia plasmada nesse documento, há uma perspectiva de “renascimento comercial e energético” para o Atlântico. “Se olharmos para a geopolítica mundial, nós temos uma posição absolutamente extraordinária. O maior dos nossos recursos é o recurso geográfico e, como dizem muitos analistas de geopolítica, a geografia é a determinante primária do nosso destino”, lê-se.

Perante a dimensão e o alcance de tamanho empreendimento, a extensão da Plataforma Continental reforçará o estatuto de Portugal como potência central no Atlântico e como player mundial na gestão dos oceanos. Espera-se, assim, que os governantes portugueses, as suas Forças Armadas e o seu Povo estejam à altura desta missão.

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.

Estrategos (e estratégias) por detrás dos líderes políticos

Alexandre Guerra, 03.02.20

 

O político carismático desempenha um papel. É esse a sua condição natural. Entre a esfera pública e o domínio privado há uma “cortina” que separa as duas dimensões. No entanto, nenhuma personagem política é construída a partir do zero, porque há sempre algo inato. Um político contém uma espécie de ADN, que vai sendo editado de acordo com o ambiente que o rodeia e os interesses que o norteiam. Se o trabalho for bem feito por aqueles que estão por detrás dessa tal “cortina” (leia-se conselheiros e assessores), essa edição preservará a autenticidade que é reconhecida ao político pelo eleitorado. Poucos duvidarão de que existe algo (ou muito) de autêntico na simpatia de Barack Obama, no populismo de Donald Trump, na traquinice de Boris Johnson, na rigidez de Vladimir Putin, na elegância de Emanuel Macron, na austeridade de Angela Merkel, na jovialidade de Justine Trudeau ou no justicialismo de Jair Bolsonaro, citando apenas alguns líderes. Todos eles potenciam estas caraterísticas junto dos seus eleitorados, porque é o seu elemento identitário, é aquilo que os distingue de todos os outros. De notar que esta autenticidade não implica qualquer conotação moral ou valorativa, já que o estado natural do político, numa escala de valores, tanto pode ir do “príncipe” virtuoso ao déspota implacável. Há sempre uma problemática de perspectiva em matéria de juízo aos políticos e às suas lideranças.

 

É nos bastidores, no circuito fechado, que se prepara, que se encena, que se dramatiza e teatraliza a acção política para alimentar as “percepções” do eleitorado: ora através das “impressões”, de que o filósofo David Hume falava no seu Tratado da Natureza Humana (1739), e que considerava serem as “sensações, as paixões e as emoções”; ora através das “ideias”, pela construção de uma imagem sustentada no pensamento e na razão. Há um quadro expectável de actuação, onde o político se deve movimentar o mais naturalmente possível. Os eleitores querem produtos que considerem ser genuínos, independentemente do crivo político e moral que se possa fazer de um determinado político.

 

Na sua irreverente e cativante biografia sobre Winston Churchill (O Factor Churchill, D. Quixote, 2015), o agora primeiro-ministro britânico Boris Johnson sublinha esse facto, exemplificando com um episódio que aconteceu no final de Julho de 1940, quando a Alemanha tentava destruir a Força Aérea britânica: “Churchill desloca-se à cidade de Hartlepool para inspecionar as defesas. Detém-se perante um soldado britânico equipado com uma arma de fabrico americano, uma Thompson SMG, espingarda semiautomática de 1928. Churchill arranca-a das mãos do soldado e empunha-a, de cano apontado para baixo e para a frente, como se estivesse a patrulhar o litoral britânico. Vira-se para encarar a câmara…e a imagem que daí resulta torna-se um dos grandes retratos da sua determinação de resistir.”

 

Ninguém duvidará que, perante a oportunidade, Churchill tenha visto ali um momento valioso de comunicação, sendo “impossível imaginar que qualquer dos seus adversários políticos pudesse conseguir tal proeza”, como também observou Johnson. “Nenhum dos dirigentes políticos britânicos da época teria conseguido empunhar aquela espingarda e ser credível”. Este é um dos ensinamentos mais úteis em comunicação política: um político nunca deve tentar desempenhar um papel que não é o seu e nunca deve forçar uma situação que não colará com a imagem que o eleitorado tem dele. Como sintetiza Johnson (e sabe bem do que fala), deve ser respeitada “a regra de ouro de todos os instantâneos fotográficos na política” e que o bom assessor terá o dever de avisar o seu político: “Não toque na arma!” É uma metáfora exemplar que se aplica a qualquer tempo e a qualquer circunstância, mas que tantas vezes é ignorada, colocando, por vezes, os políticos num plano de descrédito e, até mesmo, de ridículo. As massas não são assim tão amorfas como o conceito sociológico nos quer fazer querer, já que na sua sapiência popular acabam por saber identificar o papel natural reservado a cada um dos políticos. E é dentro desse quadro previsível que esperam que actue e represente.

 

Churchill tinha um faro apurado para identificar as oportunidades históricas e uma grande sensibilidade para a comunicação política. Tinha na oratória a sua principal arma e na encenação a maior aliada, tendo devotado muitas horas de trabalho para aperfeiçoar estas técnicas. Como ele dizia, “a aptidão retórica não é nem inteiramente inata, nem inteiramente adquirida, mas sim cultivada” e que “o aperfeiçoamento é encorajado pela prática” (Churchill – Caminhando com o Destino, Texto Editores/2019). O seu método era rigoroso e tudo obedecia a uma coreografia previamente ensaiada, mesmo os pequenos gestos, como aquele que ele fazia durante os discursos, de levar a mão lentamente ao bolso do casaco, como se estivesse à procura de algo. Uma técnica para criar suspense e que aprendeu com o seu pai, Randolph. Poucos terão compreendido que esta sua forma de estar aparentemente espontânea “era inteiramente intencional”, escreve o historiador Andrew Roberts na biografia acima citada.

 

A comunicação política não é propriamente uma ciência, mas resulta da experimentação e assenta em pressupostos racionais e metódicos. Há uma técnica e um saber acumulados que têm de ser dominados, que vêm única e exclusivamente com a prática. Não se ensina nas universidades, apesar de serem muitos os académicos a presumirem que o sabem fazer. A abordagem no plano teórico pode remeter até aos clássicos gregos e, admite-se, suscitar um debate intelectual interessante, mas é no plano prático, naquilo que é a realidade quotidiana de governantes e políticos no seu relacionamento com o eleitorado e opinião pública, que se faz e se aprende comunicação política. Um tipo de comunicação que acontece numa arena onde, normalmente, e como diria Max Weber, “a política não existe em função da filosofia ética", mas sim em razão do poder.

 

Filmes clássicos como All the King’s Men (1949), de Robert Rossen, baseado no romance homónimo de Robert Penn Warren, ou algumas películas de John Ford, como Young Mr. Lincoln (1939), The Last Hurrah (1958) ou The Man Who Shot Liberty Valance (1962), ou ainda a aclamada série The West Wing (1999-2006), transportam-nos com bastante realismo para esse universo da comunicação política, onde os líderes e os homens que os rodeiam procuram conquistar e manter o poder, alguns de forma populista e com fins egoístas, outros bem-intencionados, que acreditam ser "possível fazer corresponder a política a um padrão ético" e moral.

 

Embora o exercício do poder seja em si solitário, por trás desses líderes, que podem ser mais ou menos virtuosos, há sempre uma equipa, um staff, um conjunto de “wise men” que aconselham e assessoram, que pensam, reflectem e dão suporte ao processo de decisão. Já dizia Maquiavel, num dos muitos ensinamentos do seu autêntico “manual” de política, que o “príncipe prudente” deveria estar rodeado de sábios que lhe pudessem responder de forma livre e sem adulação. Esta regra continua a ser aplicável na política dos nossos dias, sendo expectável encontrar-se pelo menos um “sábio” influente no apoio a um político que alcance relativo sucesso na busca ou manutenção do poder. Se tivermos em consideração a alta política anglo-saxónica nos últimos 30 anos, facilmente encontramos essas pessoas que trabalharam durante muito tempo na sombra. Nomes como Dominic Cummings, Steve Bannon, David Axelrod, Karl Rove, Alastair Campbell ou James Carville tornaram-se referências incontornáveis na comunicação política. Todos eles foram responsáveis, em parte, por levarem os “seus” políticos ao poder, citando apenas alguns dos casos mais relevantes que fizeram escola na comunicação política nas décadas mais recentes. Assessores de imprensa, estrategos políticos, consultores de comunicação, speechwriters, spin doctors, foram (e são) tudo isto num só. Lordes do “dark side” com instinto predador, dirão muitos, mas todos lhes reconhecem inteligência e capacidade operacional. Cada um terá o seu estilo e perfil, uns mais agressivos do que outros, uns mais “dark” do que outros, mas ninguém lhes retira o talento para o ofício. São homens de terreno e intelectualmente sofisticados, que lêem como ninguém as dinâmicas e vontades do eleitorado, antecipam as tendências do sistema e adaptam o político ao ambiente. São homens que se movimentam nos bastidores até ao dia em que o sucesso dos seus líderes é o seu sucesso.

 

Normalmente, depois de passada a euforia inicial com a glória do “frontman”, há uma tendência por parte dos media (e agora redes socais) de irem à procura do estratego que está na “sombra”. A ascensão de Boris Johnson ao poder, através de um roteiro previamente definido e calculado, não fugiu a esse escrutínio por parte dos jornalistas e dos analistas. Depois de tudo se ter dito e escrito sobre Johnson, o alvo da atenção mais especializada passou a ser Cummings, o orquestrador de uma campanha de sucesso. Tal como Axelrod, Rove, Campbell ou Carville, há muito que Cummings andava nos corredores da comunicação política. Nos Tories, entre outros cargos, Cummings fora conselheiro do antigo líder conservador, Ian Duncan Smith, e posteriormente de Michael Gove. Recentemente, foi director de campanha da Vote Leave, a organização pró-Brexit que terá contribuído decisivamente para o desfecho do processo no sentido de saída do Reino Unido da UE. Cummings não é uma novidade, mas só saltou para ribalta internacional embalado pelo sucesso de Johnson que, no passado mês de Julho, o nomeou seu conselheiro especial.

 

A mesma ribalta que alcançou o “ideólogo” Steve Bannon depois de Donald Trump ter causado uma hecatombe no sistema político americano ao sentar-se na Sala Oval. Nestes últimos anos, Bannon acabou por atingir uma notoriedade imensa, provavelmente mais do que qualquer um dos “mestres” da arte da comunicação política aqui citados, no entanto, terá sido o que menos peso teve na vitória do seu candidato. As razões são várias e não cabe neste texto escrutiná-las, mas a personalidade de Trump não é alheia a esse facto. Bannon e Trump nunca foram amigos e muito menos tiveram uma relação sólida de trabalho. O antigo homem da Breitbart News foi mais um entre vários que iam entrando e saindo do círculo restrito de Trump, onde apenas alguns familiares mantiveram lugar cativo. O fenómeno Bannon resulta essencialmente da curiosidade que Trump tinha nos seus textos. Alguém intermediou o contacto entre os dois e assim começa o seu relacionamento profissional, efémero, diga-se, à semelhança de tantos outros que Trump tem desenvolvido na Casa Branca.

 

Trump nunca reconheceu nem considerou profissionalmente quem o rodeia. Basta conhecer um pouco a sua vida e percurso. É literalmente “one man show”, acreditando que tudo o que alcançou foi única e exclusivamente à sua conta. Trump nunca viu em Bannon um estratego ou conselheiro, considerou-o sempre mais como um fã ou uma espécie de “groupie”. Foi sempre assim que Trump esteve na vida empresarial e agora na política. Basta ver como tudo acabou entre os dois, com Bannon a ser despedido de forma humilhante e Trump a desabafar que o seu antigo conselheiro “chorou quando foi despedido e que implorou pelo seu emprego”. Mais recentemente, Trump veio reforçar essa ideia condescendente num dos seus célebres tweets: “É bom ver que um dos meus melhores pupilos é ainda um fã gigante de Trump […]”

 

Bannon foi mais um figurante no já vasto elenco deste “filme” e esteve longe de ter sido o que mais influenciou Trump. Há uma sobrevalorização do seu papel e até mesmo o slogan “Make America Great Again” nada teve a ver com Bannon, não sendo mais do que uma reciclagem do tema de campanha de Ronald Reagan, em 1980, feita pelo infame consultor político, Roger Stone, talvez aquele que mais responsabilidades terá tido na ascensão de Trump à Casa Branca. O que não é de estranhar, tendo em conta que é profunda a ligação de Stone com o “lado mais sombrio da política” e que aos 19 anos já andava metido nas confusões do Watergate.

 

Na verdade, e vendo bem as coisas numa lógica de ganhos e perdas na relação entre Trump e Bannon, é um dos poucos casos onde o conselheiro terá beneficiado muito mais do que o candidato. Mas nem por isso Bannon deixou de ter importância na construção da personagem política Trump, porque lhe deu uma roupagem ideológica que, mesmo sendo inconsequente durante o mandato na Casa Branca, conseguiu criar algum lastro nas correntes mais conservadoras da América.

 

Incontestável foi a influência e importância de David Axelrod no sucesso de de Barack Obama. Foi um dos grandes estrategos, não apenas da primeira vitória presidencial de Obama em 2008 (e também em 2012), mas da euforia comunicacional que se gerou à volta daquela que era então a grande esperança para os Estados Unidos e para o mundo. Amigo íntimo de Obama do círculo de Chicago, David Axelrod tornou-se numa estrela mundial da comunicação política a quem o New York Times chamou em tempos o “narrador” de Obama. Axelrod tinha alguns traços que o diferenciavam num sector, por vezes, marcado por algum mimetismo. Ainda antes de Obama, sempre se assumiu como um homem de causas, algumas bastante progressistas, e partiu desta sua maneira de pensar e viver para trabalhar, sobretudo, campanhas de políticos afro-americanos nos Estados Unidos. Com bastante sucesso, diga-se. Esta vertente era, aliás, uma das suas imagens de marca. Tendo trabalhado com vários políticos negros, obtendo importantes vitórias, como a de Deval Patrick, que em 2006 se tornou no primeiro governador negro de Massachusetts. Axelrod também já tinha no seu currículo nomes como os de Hillary Clinton, Chris Dodd ou John Edwards. Antigo jornalista do Chicago Tribune, Axelrod começou a trabalhar na comunicação política no início dos anos 80. Um dos segredos para o seu sucesso é "acreditar" nas pessoas e nos projectos em que se envolve. O famoso slogan da campanha de Obama, "Yes, we can!", é também o reflexo dessa atitude. Há uns anos, o já falecido Paul Green, então director do Instituto de Política da Roosevelt University, dizia o seguinte: "Axelrod é o que eu chamo de uma banda de um homem só - ele é bom a fazer campanhas, formular a mensagem, fazer os anúncios de TV e escrever discursos."

 

Após ter reeleito Obama em 2012, Axelrod afastou-se das lides da Casa Branca para se dedicar à sua empresa de consultoria. Axelrod sempre foi, de certa forma, um idealista político e, talvez por isso, o seu trabalho só seja compatível com candidatos dotados de um perfil específico. À luz desta lógica, não é de estranhar a tímida experiência comunicacional que Axelrod teve com o antigo comissário europeu Mário Monti, na campanha para as eleições gerais em Itália de Fevereiro de 2013. Ao contrário de Obama, Monti não era um homem de paixões nem de causas. Era um economista e académico, um tecnocrata sem qualquer chama, aclamado apenas pelos “mercados” e por alguns ministros europeus das Finanças. Monti, ao contrário de Obama, não tinha qualquer carisma, nem sequer “matéria-prima” inata para ser trabalhada. E quando assim é, por mais gente talentosa que o rodeie, dificilmente esse político ascenderá ao Olimpo.

 

Não era o caso de George W. Bush quando se lançou na corrida presidencial. Bush filho é um clássico exemplo de um político que, não tendo uma aura brilhante, tinha alguns atributos que, devidamente trabalhados e potenciados, podiam fazê-lo sonhar com a Casa Branca. Além de pertencer a uma dinastia política (os americanos são muito receptivos a esse tipo de dinâmica), tinha sido governador do Texas durante dois mandatos e apresentava características que podiam facilitar a entrada no eleitorado conservador moderado. Talvez, por isso, estrategicamente, o seu slogan de campanha nas eleições de 2000 tenha sido “compassionate conservatism”. Karl Rove foi o responsável enquanto estratego chefe da campanha.

 

Embora fosse um autêntico “falcão” da ala mais conservadora republicana, Rove percebeu claramente que o conservadorismo de Bush teria que ser suavizado para chegar a um eleitorado mais vasto. Foi ele o principal responsável por ter levado George W. Bush à Casa Branca, não sem antes ter orquestrado as suas vitórias enquanto Governador do Texas, em 1994 e 1998. O verdadeiro “polítical mastermind” de Bush, reconhecido no discurso de vitória da sua reeleição presidencial em 2004, no Ronald Reagan Building, em Washington, quando o Presidente apelidou Rove como “the architect”. Este momento de comunicação é marcado pela forma como o recém-eleito Presidente a prepara, com uma breve pausa e aquele sorriso matreiro que o caracterizou, antes de prestar homenagem à sua estrela maior, ao seu mais bravo guerreiro.

 

Quando Kove começou a trabalhar com George W. Bush já apresentava um currículo invejável de muitos anos no combate político, com dezenas de campanhas e inúmeras vitórias de relevo nas fileiras republicanas, mas foi a dramática eleição de 2000 que lhe deu a notoriedade universal. Em Novembro de 2004, a revista The Atlantic escrevia o seguinte: “São as corridas renhidas que fazem as reputações dos grandes estrategos políticos, e muito poucas foram tão disputadas como as presidenciais de 2000. […] George W. Bush saiu vitorioso por uma margem de 537 votos na Florida – suficiente para elevá-lo à presidência e ao seu estratego chefe, Karl Rove, ao estatuto de lenda.”

 

Também Alastair Campbell se encaixa nesse panteão das celebridades da comunicação política. Responsável pela estratégia de comunicação do ex-primeiro-ministro, Tony Blair, entre 1997 e 2003, Campbell, como em tempos disse o The Telegraph, deixara de lado uma carreira promissora no jornalismo ou na televisão, para assumir o papel de orquestrador do “assalto” de Tony Blair ao número 10 da Downing Street. Um trabalho que desempenhou com êxito, através de “manobras” e “esquemas” que, segundo aquele jornal, foram reconhecidos como eficazes e que fizeram escola até mesmo junto dos opositores políticos. Efectivamente, Campbell foi um dos obreiros do sucesso do New Labour, conseguindo obter sondagens com resultados “estratosféricos”, nas palavras de outro jornal, The Guardian, contribuindo decisivamente para aquela que seria a primeira de três vitórias seguidas do New Labour em legislativas, em Maio de 1997. Campbell demonstrou igualmente uma habilidade comunicacional para lidar com a sanguinária imprensa britânica, fazendo dele um consultor feroz na defesa dos interesses de Blair e um temível adversário para os seus opositores políticos.

 

Poucos meses depois de ter sido eleito primeiro-ministro, Tony Blair é confrontado com a morte da Princesa Diana, na madrugada de domingo de 31 de Agosto de 1997, um acontecimento que chocou brutalmente o Reino Unido (e não só), numa dimensão, provavelmente, nunca vista desde o pós-II GM. A inabilidade da Casa Real empurrou-a para uma das suas maiores crises de reputação e de comunicação. Blair e os seus assessores, com especial destaque para Campbell, perceberam que tinham de reagir rapidamente, perante o silêncio de Buckingham. A concretização dessa estratégia dá-se horas após a tragédia, já durante a manhã, quando Blair presta uma declaração aos jornalistas à entrada da Igreja de Santa Maria Madalena, em Trimdon, seu círculo eleitoral, para onde se dirigia para a habitual missa dominical. O discurso não tem mais de três minutos, mas é uma autêntica obra-prima de comunicação política. O conteúdo emocional, as pausas, o tom, a linguagem corporal, o discurso sem hesitações, tudo impecavelmente decorado… O exímio encadeamento do fraseado até ao climax, quando Blair se refere a Diana como a “Princesa do Povo”.

 

Ainda hoje é pouco claro sobre quem, efectivamente, incluiu essa expressão no discurso, mas no filme The Queen (2006) de Stephen Frears, que retrata os trágicos acontecimentos, a autoria é atribuída a Campbell que, após receber um telefonema de Blair na madrugada desse Domingo, se disponibilizou a fazer de imediato um rascunho. Quem está familiarizado com estas dinâmicas da comunicação política, facilmente admitirá que esta versão é perfeitamente verosímil, sendo que a verdade dos factos não andará muito longe, até porque nessa madrugada Blair pouco tempo teria para estar focado no discurso. Certo é – e isto dito por Alastair Campbell – que o rascunho foi discutido entre os dois. Um trabalho de excelência, porque aquele discurso, e sobretudo aquela expressão, conduziu Blair àquela que muitos consideram ser a sua “finest hour” enquanto político, reflectindo-se de imediato num record absurdo de popularidade de 93 por cento.

 

O carisma num político não é uma qualidade de subjectiva classificação. Mesmo os seus maiores inimigos lhe conseguem reconhecer esse atributo. Blair, seguramente, tinha esse carisma. O desafio está, por vezes, em identificar esse potencial à partida, trabalhá-lo e potenciá-lo. De certa maneira, James Carville fez esse trabalho quando aceitou ser o principal estratego da campanha do então semi-desconhecido governador do Arkansas, Bill Clinton, nas presidenciais de 1992. Carville já tinha uma considerável experiência em consultoria política, tendo-se movimentado sempre pelas fileiras do Partido Democrata e quando aceitou o desafio de levar Clinton à Casa Branca tinha bem noção de que a mensagem daquela campanha teria que ser disruptiva com o tom e registo do mandato do Presidente George H. W. Bush, marcado pela glória da grandeza militar dos EUA. É importante recordar que a América celebrava a vitória sobre os despojos da União Soviética e estava em plena Guerra do Golfo, um conflito tido como “justo” aos olhos da comunidade internacional e que granjeou todo o tipo de apoios dos aliados e da opinião pública. Aliás, após este conflito que os EUA venceram rápida e facilmente no início de 1991, Bush chegou a ter quase 90 por cento nos índices de popularidade, afastando das primárias do Partido Democrata potenciais candidatos de alto perfil, que receavam perder no derradeiro confronto com o Presidente republicano em exercício. Clinton acabaria por avançar contra nomes de segunda linha, vencendo facilmente as primárias dentro do seu partido, abrindo-lhe caminho ao embate com Bush.

 

Carville sabia que dificilmente venceria Bush recorrendo às emoções e aos corações dos americanos, depois de quatro anos de patriotismo insuflado pelos feitos geopolíticos e geoestratégicos dos EUA no mundo. Bush tivera o privilégio e a oportunidade histórica de ter vivido quatros anos únicos nas Relações Internacionais. Não conseguindo bater Bush nesse campo, Carville teve a capacidade de ler a conjuntura, identificou a fragilidade do Presidente e antecipou o grande tema que iria marcar a agenda nos anos seguintes: a economia. E a síntese dessa estratégia consubstanciou-se na sua célebre frase, “The economy, stupid” (esta é a frase original, sem o “it’s”). Como todas as criações brilhantes, também esta parece ter resultado de um qualquer sopro divino, pelo menos a dar crédito ao relato de George Stephanopoulos, nas suas memórias sobre essa campanha, na qual foi director de comunicação. Conta Stephanopoulos que Carville estava na sede de candidatura a escrever várias frases soltas num cartaz branco e pregou-o numa pilar no meio da sala. Entre as várias frases, lá estava aquela que iria levar Clinton à Casa Branca. A ideia era de tal forma poderosa que ganhou vida e se interiorizou na cultura política e popular americana. Se George H. W. Bush durante quatro anos tinha governado para os patriotas americanos, Clinton dirigia-se agora aos trabalhadores e contribuintes americanos. Carville, tal como todos os outros que ajudaram os seus líderes na caminhada triunfal, teve a sensibilidade e a audácia para saber o que dizer no momento certo. Quase sempre, é na concretização virtuosa deste exercício que um político deixa de ser uma nota de rodapé na História para passar a fazer História.

 

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.