O político carismático desempenha um papel. É esse a sua condição natural. Entre a esfera pública e o domínio privado há uma “cortina” que separa as duas dimensões. No entanto, nenhuma personagem política é construída a partir do zero, porque há sempre algo inato. Um político contém uma espécie de ADN, que vai sendo editado de acordo com o ambiente que o rodeia e os interesses que o norteiam. Se o trabalho for bem feito por aqueles que estão por detrás dessa tal “cortina” (leia-se conselheiros e assessores), essa edição preservará a autenticidade que é reconhecida ao político pelo eleitorado. Poucos duvidarão de que existe algo (ou muito) de autêntico na simpatia de Barack Obama, no populismo de Donald Trump, na traquinice de Boris Johnson, na rigidez de Vladimir Putin, na elegância de Emanuel Macron, na austeridade de Angela Merkel, na jovialidade de Justine Trudeau ou no justicialismo de Jair Bolsonaro, citando apenas alguns líderes. Todos eles potenciam estas caraterísticas junto dos seus eleitorados, porque é o seu elemento identitário, é aquilo que os distingue de todos os outros. De notar que esta autenticidade não implica qualquer conotação moral ou valorativa, já que o estado natural do político, numa escala de valores, tanto pode ir do “príncipe” virtuoso ao déspota implacável. Há sempre uma problemática de perspectiva em matéria de juízo aos políticos e às suas lideranças.
É nos bastidores, no circuito fechado, que se prepara, que se encena, que se dramatiza e teatraliza a acção política para alimentar as “percepções” do eleitorado: ora através das “impressões”, de que o filósofo David Hume falava no seu Tratado da Natureza Humana (1739), e que considerava serem as “sensações, as paixões e as emoções”; ora através das “ideias”, pela construção de uma imagem sustentada no pensamento e na razão. Há um quadro expectável de actuação, onde o político se deve movimentar o mais naturalmente possível. Os eleitores querem produtos que considerem ser genuínos, independentemente do crivo político e moral que se possa fazer de um determinado político.
Na sua irreverente e cativante biografia sobre Winston Churchill (O Factor Churchill, D. Quixote, 2015), o agora primeiro-ministro britânico Boris Johnson sublinha esse facto, exemplificando com um episódio que aconteceu no final de Julho de 1940, quando a Alemanha tentava destruir a Força Aérea britânica: “Churchill desloca-se à cidade de Hartlepool para inspecionar as defesas. Detém-se perante um soldado britânico equipado com uma arma de fabrico americano, uma Thompson SMG, espingarda semiautomática de 1928. Churchill arranca-a das mãos do soldado e empunha-a, de cano apontado para baixo e para a frente, como se estivesse a patrulhar o litoral britânico. Vira-se para encarar a câmara…e a imagem que daí resulta torna-se um dos grandes retratos da sua determinação de resistir.”
Ninguém duvidará que, perante a oportunidade, Churchill tenha visto ali um momento valioso de comunicação, sendo “impossível imaginar que qualquer dos seus adversários políticos pudesse conseguir tal proeza”, como também observou Johnson. “Nenhum dos dirigentes políticos britânicos da época teria conseguido empunhar aquela espingarda e ser credível”. Este é um dos ensinamentos mais úteis em comunicação política: um político nunca deve tentar desempenhar um papel que não é o seu e nunca deve forçar uma situação que não colará com a imagem que o eleitorado tem dele. Como sintetiza Johnson (e sabe bem do que fala), deve ser respeitada “a regra de ouro de todos os instantâneos fotográficos na política” e que o bom assessor terá o dever de avisar o seu político: “Não toque na arma!” É uma metáfora exemplar que se aplica a qualquer tempo e a qualquer circunstância, mas que tantas vezes é ignorada, colocando, por vezes, os políticos num plano de descrédito e, até mesmo, de ridículo. As massas não são assim tão amorfas como o conceito sociológico nos quer fazer querer, já que na sua sapiência popular acabam por saber identificar o papel natural reservado a cada um dos políticos. E é dentro desse quadro previsível que esperam que actue e represente.
Churchill tinha um faro apurado para identificar as oportunidades históricas e uma grande sensibilidade para a comunicação política. Tinha na oratória a sua principal arma e na encenação a maior aliada, tendo devotado muitas horas de trabalho para aperfeiçoar estas técnicas. Como ele dizia, “a aptidão retórica não é nem inteiramente inata, nem inteiramente adquirida, mas sim cultivada” e que “o aperfeiçoamento é encorajado pela prática” (Churchill – Caminhando com o Destino, Texto Editores/2019). O seu método era rigoroso e tudo obedecia a uma coreografia previamente ensaiada, mesmo os pequenos gestos, como aquele que ele fazia durante os discursos, de levar a mão lentamente ao bolso do casaco, como se estivesse à procura de algo. Uma técnica para criar suspense e que aprendeu com o seu pai, Randolph. Poucos terão compreendido que esta sua forma de estar aparentemente espontânea “era inteiramente intencional”, escreve o historiador Andrew Roberts na biografia acima citada.
A comunicação política não é propriamente uma ciência, mas resulta da experimentação e assenta em pressupostos racionais e metódicos. Há uma técnica e um saber acumulados que têm de ser dominados, que vêm única e exclusivamente com a prática. Não se ensina nas universidades, apesar de serem muitos os académicos a presumirem que o sabem fazer. A abordagem no plano teórico pode remeter até aos clássicos gregos e, admite-se, suscitar um debate intelectual interessante, mas é no plano prático, naquilo que é a realidade quotidiana de governantes e políticos no seu relacionamento com o eleitorado e opinião pública, que se faz e se aprende comunicação política. Um tipo de comunicação que acontece numa arena onde, normalmente, e como diria Max Weber, “a política não existe em função da filosofia ética", mas sim em razão do poder.
Filmes clássicos como All the King’s Men (1949), de Robert Rossen, baseado no romance homónimo de Robert Penn Warren, ou algumas películas de John Ford, como Young Mr. Lincoln (1939), The Last Hurrah (1958) ou The Man Who Shot Liberty Valance (1962), ou ainda a aclamada série The West Wing (1999-2006), transportam-nos com bastante realismo para esse universo da comunicação política, onde os líderes e os homens que os rodeiam procuram conquistar e manter o poder, alguns de forma populista e com fins egoístas, outros bem-intencionados, que acreditam ser "possível fazer corresponder a política a um padrão ético" e moral.
Embora o exercício do poder seja em si solitário, por trás desses líderes, que podem ser mais ou menos virtuosos, há sempre uma equipa, um staff, um conjunto de “wise men” que aconselham e assessoram, que pensam, reflectem e dão suporte ao processo de decisão. Já dizia Maquiavel, num dos muitos ensinamentos do seu autêntico “manual” de política, que o “príncipe prudente” deveria estar rodeado de sábios que lhe pudessem responder de forma livre e sem adulação. Esta regra continua a ser aplicável na política dos nossos dias, sendo expectável encontrar-se pelo menos um “sábio” influente no apoio a um político que alcance relativo sucesso na busca ou manutenção do poder. Se tivermos em consideração a alta política anglo-saxónica nos últimos 30 anos, facilmente encontramos essas pessoas que trabalharam durante muito tempo na sombra. Nomes como Dominic Cummings, Steve Bannon, David Axelrod, Karl Rove, Alastair Campbell ou James Carville tornaram-se referências incontornáveis na comunicação política. Todos eles foram responsáveis, em parte, por levarem os “seus” políticos ao poder, citando apenas alguns dos casos mais relevantes que fizeram escola na comunicação política nas décadas mais recentes. Assessores de imprensa, estrategos políticos, consultores de comunicação, speechwriters, spin doctors, foram (e são) tudo isto num só. Lordes do “dark side” com instinto predador, dirão muitos, mas todos lhes reconhecem inteligência e capacidade operacional. Cada um terá o seu estilo e perfil, uns mais agressivos do que outros, uns mais “dark” do que outros, mas ninguém lhes retira o talento para o ofício. São homens de terreno e intelectualmente sofisticados, que lêem como ninguém as dinâmicas e vontades do eleitorado, antecipam as tendências do sistema e adaptam o político ao ambiente. São homens que se movimentam nos bastidores até ao dia em que o sucesso dos seus líderes é o seu sucesso.
Normalmente, depois de passada a euforia inicial com a glória do “frontman”, há uma tendência por parte dos media (e agora redes socais) de irem à procura do estratego que está na “sombra”. A ascensão de Boris Johnson ao poder, através de um roteiro previamente definido e calculado, não fugiu a esse escrutínio por parte dos jornalistas e dos analistas. Depois de tudo se ter dito e escrito sobre Johnson, o alvo da atenção mais especializada passou a ser Cummings, o orquestrador de uma campanha de sucesso. Tal como Axelrod, Rove, Campbell ou Carville, há muito que Cummings andava nos corredores da comunicação política. Nos Tories, entre outros cargos, Cummings fora conselheiro do antigo líder conservador, Ian Duncan Smith, e posteriormente de Michael Gove. Recentemente, foi director de campanha da Vote Leave, a organização pró-Brexit que terá contribuído decisivamente para o desfecho do processo no sentido de saída do Reino Unido da UE. Cummings não é uma novidade, mas só saltou para ribalta internacional embalado pelo sucesso de Johnson que, no passado mês de Julho, o nomeou seu conselheiro especial.
A mesma ribalta que alcançou o “ideólogo” Steve Bannon depois de Donald Trump ter causado uma hecatombe no sistema político americano ao sentar-se na Sala Oval. Nestes últimos anos, Bannon acabou por atingir uma notoriedade imensa, provavelmente mais do que qualquer um dos “mestres” da arte da comunicação política aqui citados, no entanto, terá sido o que menos peso teve na vitória do seu candidato. As razões são várias e não cabe neste texto escrutiná-las, mas a personalidade de Trump não é alheia a esse facto. Bannon e Trump nunca foram amigos e muito menos tiveram uma relação sólida de trabalho. O antigo homem da Breitbart News foi mais um entre vários que iam entrando e saindo do círculo restrito de Trump, onde apenas alguns familiares mantiveram lugar cativo. O fenómeno Bannon resulta essencialmente da curiosidade que Trump tinha nos seus textos. Alguém intermediou o contacto entre os dois e assim começa o seu relacionamento profissional, efémero, diga-se, à semelhança de tantos outros que Trump tem desenvolvido na Casa Branca.
Trump nunca reconheceu nem considerou profissionalmente quem o rodeia. Basta conhecer um pouco a sua vida e percurso. É literalmente “one man show”, acreditando que tudo o que alcançou foi única e exclusivamente à sua conta. Trump nunca viu em Bannon um estratego ou conselheiro, considerou-o sempre mais como um fã ou uma espécie de “groupie”. Foi sempre assim que Trump esteve na vida empresarial e agora na política. Basta ver como tudo acabou entre os dois, com Bannon a ser despedido de forma humilhante e Trump a desabafar que o seu antigo conselheiro “chorou quando foi despedido e que implorou pelo seu emprego”. Mais recentemente, Trump veio reforçar essa ideia condescendente num dos seus célebres tweets: “É bom ver que um dos meus melhores pupilos é ainda um fã gigante de Trump […]”
Bannon foi mais um figurante no já vasto elenco deste “filme” e esteve longe de ter sido o que mais influenciou Trump. Há uma sobrevalorização do seu papel e até mesmo o slogan “Make America Great Again” nada teve a ver com Bannon, não sendo mais do que uma reciclagem do tema de campanha de Ronald Reagan, em 1980, feita pelo infame consultor político, Roger Stone, talvez aquele que mais responsabilidades terá tido na ascensão de Trump à Casa Branca. O que não é de estranhar, tendo em conta que é profunda a ligação de Stone com o “lado mais sombrio da política” e que aos 19 anos já andava metido nas confusões do Watergate.
Na verdade, e vendo bem as coisas numa lógica de ganhos e perdas na relação entre Trump e Bannon, é um dos poucos casos onde o conselheiro terá beneficiado muito mais do que o candidato. Mas nem por isso Bannon deixou de ter importância na construção da personagem política Trump, porque lhe deu uma roupagem ideológica que, mesmo sendo inconsequente durante o mandato na Casa Branca, conseguiu criar algum lastro nas correntes mais conservadoras da América.
Incontestável foi a influência e importância de David Axelrod no sucesso de de Barack Obama. Foi um dos grandes estrategos, não apenas da primeira vitória presidencial de Obama em 2008 (e também em 2012), mas da euforia comunicacional que se gerou à volta daquela que era então a grande esperança para os Estados Unidos e para o mundo. Amigo íntimo de Obama do círculo de Chicago, David Axelrod tornou-se numa estrela mundial da comunicação política a quem o New York Times chamou em tempos o “narrador” de Obama. Axelrod tinha alguns traços que o diferenciavam num sector, por vezes, marcado por algum mimetismo. Ainda antes de Obama, sempre se assumiu como um homem de causas, algumas bastante progressistas, e partiu desta sua maneira de pensar e viver para trabalhar, sobretudo, campanhas de políticos afro-americanos nos Estados Unidos. Com bastante sucesso, diga-se. Esta vertente era, aliás, uma das suas imagens de marca. Tendo trabalhado com vários políticos negros, obtendo importantes vitórias, como a de Deval Patrick, que em 2006 se tornou no primeiro governador negro de Massachusetts. Axelrod também já tinha no seu currículo nomes como os de Hillary Clinton, Chris Dodd ou John Edwards. Antigo jornalista do Chicago Tribune, Axelrod começou a trabalhar na comunicação política no início dos anos 80. Um dos segredos para o seu sucesso é "acreditar" nas pessoas e nos projectos em que se envolve. O famoso slogan da campanha de Obama, "Yes, we can!", é também o reflexo dessa atitude. Há uns anos, o já falecido Paul Green, então director do Instituto de Política da Roosevelt University, dizia o seguinte: "Axelrod é o que eu chamo de uma banda de um homem só - ele é bom a fazer campanhas, formular a mensagem, fazer os anúncios de TV e escrever discursos."
Após ter reeleito Obama em 2012, Axelrod afastou-se das lides da Casa Branca para se dedicar à sua empresa de consultoria. Axelrod sempre foi, de certa forma, um idealista político e, talvez por isso, o seu trabalho só seja compatível com candidatos dotados de um perfil específico. À luz desta lógica, não é de estranhar a tímida experiência comunicacional que Axelrod teve com o antigo comissário europeu Mário Monti, na campanha para as eleições gerais em Itália de Fevereiro de 2013. Ao contrário de Obama, Monti não era um homem de paixões nem de causas. Era um economista e académico, um tecnocrata sem qualquer chama, aclamado apenas pelos “mercados” e por alguns ministros europeus das Finanças. Monti, ao contrário de Obama, não tinha qualquer carisma, nem sequer “matéria-prima” inata para ser trabalhada. E quando assim é, por mais gente talentosa que o rodeie, dificilmente esse político ascenderá ao Olimpo.
Não era o caso de George W. Bush quando se lançou na corrida presidencial. Bush filho é um clássico exemplo de um político que, não tendo uma aura brilhante, tinha alguns atributos que, devidamente trabalhados e potenciados, podiam fazê-lo sonhar com a Casa Branca. Além de pertencer a uma dinastia política (os americanos são muito receptivos a esse tipo de dinâmica), tinha sido governador do Texas durante dois mandatos e apresentava características que podiam facilitar a entrada no eleitorado conservador moderado. Talvez, por isso, estrategicamente, o seu slogan de campanha nas eleições de 2000 tenha sido “compassionate conservatism”. Karl Rove foi o responsável enquanto estratego chefe da campanha.
Embora fosse um autêntico “falcão” da ala mais conservadora republicana, Rove percebeu claramente que o conservadorismo de Bush teria que ser suavizado para chegar a um eleitorado mais vasto. Foi ele o principal responsável por ter levado George W. Bush à Casa Branca, não sem antes ter orquestrado as suas vitórias enquanto Governador do Texas, em 1994 e 1998. O verdadeiro “polítical mastermind” de Bush, reconhecido no discurso de vitória da sua reeleição presidencial em 2004, no Ronald Reagan Building, em Washington, quando o Presidente apelidou Rove como “the architect”. Este momento de comunicação é marcado pela forma como o recém-eleito Presidente a prepara, com uma breve pausa e aquele sorriso matreiro que o caracterizou, antes de prestar homenagem à sua estrela maior, ao seu mais bravo guerreiro.
Quando Kove começou a trabalhar com George W. Bush já apresentava um currículo invejável de muitos anos no combate político, com dezenas de campanhas e inúmeras vitórias de relevo nas fileiras republicanas, mas foi a dramática eleição de 2000 que lhe deu a notoriedade universal. Em Novembro de 2004, a revista The Atlantic escrevia o seguinte: “São as corridas renhidas que fazem as reputações dos grandes estrategos políticos, e muito poucas foram tão disputadas como as presidenciais de 2000. […] George W. Bush saiu vitorioso por uma margem de 537 votos na Florida – suficiente para elevá-lo à presidência e ao seu estratego chefe, Karl Rove, ao estatuto de lenda.”
Também Alastair Campbell se encaixa nesse panteão das celebridades da comunicação política. Responsável pela estratégia de comunicação do ex-primeiro-ministro, Tony Blair, entre 1997 e 2003, Campbell, como em tempos disse o The Telegraph, deixara de lado uma carreira promissora no jornalismo ou na televisão, para assumir o papel de orquestrador do “assalto” de Tony Blair ao número 10 da Downing Street. Um trabalho que desempenhou com êxito, através de “manobras” e “esquemas” que, segundo aquele jornal, foram reconhecidos como eficazes e que fizeram escola até mesmo junto dos opositores políticos. Efectivamente, Campbell foi um dos obreiros do sucesso do New Labour, conseguindo obter sondagens com resultados “estratosféricos”, nas palavras de outro jornal, The Guardian, contribuindo decisivamente para aquela que seria a primeira de três vitórias seguidas do New Labour em legislativas, em Maio de 1997. Campbell demonstrou igualmente uma habilidade comunicacional para lidar com a sanguinária imprensa britânica, fazendo dele um consultor feroz na defesa dos interesses de Blair e um temível adversário para os seus opositores políticos.
Poucos meses depois de ter sido eleito primeiro-ministro, Tony Blair é confrontado com a morte da Princesa Diana, na madrugada de domingo de 31 de Agosto de 1997, um acontecimento que chocou brutalmente o Reino Unido (e não só), numa dimensão, provavelmente, nunca vista desde o pós-II GM. A inabilidade da Casa Real empurrou-a para uma das suas maiores crises de reputação e de comunicação. Blair e os seus assessores, com especial destaque para Campbell, perceberam que tinham de reagir rapidamente, perante o silêncio de Buckingham. A concretização dessa estratégia dá-se horas após a tragédia, já durante a manhã, quando Blair presta uma declaração aos jornalistas à entrada da Igreja de Santa Maria Madalena, em Trimdon, seu círculo eleitoral, para onde se dirigia para a habitual missa dominical. O discurso não tem mais de três minutos, mas é uma autêntica obra-prima de comunicação política. O conteúdo emocional, as pausas, o tom, a linguagem corporal, o discurso sem hesitações, tudo impecavelmente decorado… O exímio encadeamento do fraseado até ao climax, quando Blair se refere a Diana como a “Princesa do Povo”.
Ainda hoje é pouco claro sobre quem, efectivamente, incluiu essa expressão no discurso, mas no filme The Queen (2006) de Stephen Frears, que retrata os trágicos acontecimentos, a autoria é atribuída a Campbell que, após receber um telefonema de Blair na madrugada desse Domingo, se disponibilizou a fazer de imediato um rascunho. Quem está familiarizado com estas dinâmicas da comunicação política, facilmente admitirá que esta versão é perfeitamente verosímil, sendo que a verdade dos factos não andará muito longe, até porque nessa madrugada Blair pouco tempo teria para estar focado no discurso. Certo é – e isto dito por Alastair Campbell – que o rascunho foi discutido entre os dois. Um trabalho de excelência, porque aquele discurso, e sobretudo aquela expressão, conduziu Blair àquela que muitos consideram ser a sua “finest hour” enquanto político, reflectindo-se de imediato num record absurdo de popularidade de 93 por cento.
O carisma num político não é uma qualidade de subjectiva classificação. Mesmo os seus maiores inimigos lhe conseguem reconhecer esse atributo. Blair, seguramente, tinha esse carisma. O desafio está, por vezes, em identificar esse potencial à partida, trabalhá-lo e potenciá-lo. De certa maneira, James Carville fez esse trabalho quando aceitou ser o principal estratego da campanha do então semi-desconhecido governador do Arkansas, Bill Clinton, nas presidenciais de 1992. Carville já tinha uma considerável experiência em consultoria política, tendo-se movimentado sempre pelas fileiras do Partido Democrata e quando aceitou o desafio de levar Clinton à Casa Branca tinha bem noção de que a mensagem daquela campanha teria que ser disruptiva com o tom e registo do mandato do Presidente George H. W. Bush, marcado pela glória da grandeza militar dos EUA. É importante recordar que a América celebrava a vitória sobre os despojos da União Soviética e estava em plena Guerra do Golfo, um conflito tido como “justo” aos olhos da comunidade internacional e que granjeou todo o tipo de apoios dos aliados e da opinião pública. Aliás, após este conflito que os EUA venceram rápida e facilmente no início de 1991, Bush chegou a ter quase 90 por cento nos índices de popularidade, afastando das primárias do Partido Democrata potenciais candidatos de alto perfil, que receavam perder no derradeiro confronto com o Presidente republicano em exercício. Clinton acabaria por avançar contra nomes de segunda linha, vencendo facilmente as primárias dentro do seu partido, abrindo-lhe caminho ao embate com Bush.
Carville sabia que dificilmente venceria Bush recorrendo às emoções e aos corações dos americanos, depois de quatro anos de patriotismo insuflado pelos feitos geopolíticos e geoestratégicos dos EUA no mundo. Bush tivera o privilégio e a oportunidade histórica de ter vivido quatros anos únicos nas Relações Internacionais. Não conseguindo bater Bush nesse campo, Carville teve a capacidade de ler a conjuntura, identificou a fragilidade do Presidente e antecipou o grande tema que iria marcar a agenda nos anos seguintes: a economia. E a síntese dessa estratégia consubstanciou-se na sua célebre frase, “The economy, stupid” (esta é a frase original, sem o “it’s”). Como todas as criações brilhantes, também esta parece ter resultado de um qualquer sopro divino, pelo menos a dar crédito ao relato de George Stephanopoulos, nas suas memórias sobre essa campanha, na qual foi director de comunicação. Conta Stephanopoulos que Carville estava na sede de candidatura a escrever várias frases soltas num cartaz branco e pregou-o numa pilar no meio da sala. Entre as várias frases, lá estava aquela que iria levar Clinton à Casa Branca. A ideia era de tal forma poderosa que ganhou vida e se interiorizou na cultura política e popular americana. Se George H. W. Bush durante quatro anos tinha governado para os patriotas americanos, Clinton dirigia-se agora aos trabalhadores e contribuintes americanos. Carville, tal como todos os outros que ajudaram os seus líderes na caminhada triunfal, teve a sensibilidade e a audácia para saber o que dizer no momento certo. Quase sempre, é na concretização virtuosa deste exercício que um político deixa de ser uma nota de rodapé na História para passar a fazer História.
Texto publicado originalmente no PÚBLICO.