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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

As nuances da Palestina

Alexandre Guerra, 24.05.21

Quando comecei a estudar Relações Internacionais, já no longínquo ano de 1995, sabia que, por mais livros que lesse, por mais artigos que analisasse ou por mais especialistas que ouvisse, nunca iria compreender o conflito do Médio Oriente na sua plenitude ou ter uma leitura equilibrada e correcta das suas verdadeiras dinâmicas se não fosse directamente ao terreno. Tinha a noção de que a realidade nos territórios da Palestina era de tal maneira intrincada e complexa, com contornos específicos e únicos, que qualquer tentativa de construção de um quadro analítico teórico estaria condenada, no mínimo, a um desonesto e enviesado exercício intelectual. Tinha consciência de que a teoria acumulada, por mais robusta e sofisticada que fosse, nunca me dotaria do conhecimento necessário para compreender as dinâmicas quotidianas entre duas realidades muito interligadas, enquadradas por factores históricos, sociais, políticos e religiosos de enorme complexidade.

Aos vinte e cinco anos, na altura enquanto jornalista, e em plena intifada de Al Aqsa viajei para a Palestina, onde passei uma temporada (voltaria lá depois). Ali estudei, fiz amigos, entrevistei políticos, convivi com militantes armados, fui acolhido por bons samaritanos nas montanhas de Nablus, dormi em campos de refugiados, visitei os Montes Golã e as Shebaa Farms, andei de Gaza a Haifa, de Jericó a Telavive. Concretizei o sonho de conhecer uma terra tão fascinante, que um dia o poeta inglês George Sandys a definiu como “uma terra onde corre leite e mel”. Sabia que, para entender o poder da atracção milenar da Cidade Velha de Jerusalém, só vendo com os meus próprios olhos, ouvindo os seus sons, calcorreando as suas ruas, falando com as suas gentes de diferentes religiões, sentindo os seus cheiros, confrontando as suas idiossincrasias, vendo as suas fissuras, aceitando as suas virtudes e reconhecendo os seus males.

Sabia que só entenderia verdadeiramente a frustração de milhares de palestinianos se observasse o sistema apartheid montado nos territórios da Cisjordânia, através de checkpoints entre diferentes localidades palestinianas, através de estradas reservadas a judeus com acesso directo entre Israel e colonatos ultra-ortodoxos, através de raides gratuitos das IDF, através do contraste entre o conforto dos colonatos judaicos e as condições debilitadas de muitas localidades palestinianas, algumas delas sem infraestruturas dignas. Sabia que só estando no terreno compreenderia a revolta de uma mãe que queria levar o filho ao médico ou à escola e, sem qualquer justificação, via-se impedida de o fazer pelas IDF ou pela polícia israelita. Ou a raiva sentida por um jovem palestiniano ao ser detido ou agredido pelos soldados ou polícias israelitas por querer, simplesmente, regressar a casa depois das aulas.

Tinha a noção de que só entenderia a manta de retalhos em que se tornou a Cisjordânia se fosse ao território ver o desenho das três zonas administrativas (A,B,C) consignadas nos Acordos de Oslo (II), para saber que, neste momento, mais de 60 por cento do território está sob administração civil e militar de Israel (Zona C). Um território ligado continuamente a Israel, que integra uma grande parte de Jerusalém Oriental e as áreas mais férteis e mais ricas em termos hídricos da Cisjordânia, mas na qual não vivem mais do que 200 mil palestinianos, a maioria dos quais em localidades sem quaisquer condições de habitabilidade e infraestruturas de saneamento. Além disso, nestas áreas, os direitos de construção estão praticamente vedados aos palestinianos, ao contrário daquilo que tem sido a política de expansionismo judaica e de construção de colonatos nas localidades da Zona C. A tão ambicionada transferência destas áreas da Zona C para a Autoridade Palestiniana nunca chegou a efectivar-se e, actualmente, deverão viver cerca de 400 mil judeus ortodoxos e ultra-ortodoxos nestes territórios espalhados por mais de 200 colonatos.

Também nunca entenderia a vida de muitos palestinianos se não conhecesse os campos de refugiados nalgumas cidades onde vivem à margem de uma sociedade já ela própria marginalizada por Israel e pela comunidade internacional. Nunca perceberia o que é a autêntica prisão a céu aberto na Faixa de Gaza, se não tivesse visitado este território por duas vezes, com pouco mais de 40 quilómetros de comprimento e 10 de largura, onde vivem cerca de dois milhões de palestinianos em condições de enorme fragilidade social e económica, sendo que, na maior parte dos casos, a única rede de apoio social vem dos partidos políticos Hamas e Jihad Islâmica, ambos criados sob forte inspiração da Irmandade Muçulmana, movimento pan-árabe com um forte cariz social e que durante décadas no Egipto teve um envolvimento muito profundo com as comunidades locais. Importa referir que a Jihad, criada em 1981, e o Hamas em 1987, resultam, em grande parte, das circunstâncias políticas que se abateram sobre os palestinianos durante essa década. Com a viragem à direita em Israel, entre 1977 e 1992, o Likud governou praticamente de forma ininterrupta, com Governos liderados por Menachem Begin e Yitzhak Shamir, tendo os anos 80 sido dramáticos para os palestinianos a vários níveis. Conflitos no Líbano, na Jordânia, os massacres de Sabra e Shatila, entre outros episódios. Nos territórios ocupados da Cisjordânia e da Faixa de Gaza estala a primeira intifada em 1987, que ficou conhecida como a “Guerra das Pedras”.

E sem ir à Palestina também não me aperceberia o quão a cidade de Belém era um símbolo de integração entre muçulmanos e cristãos, da mesma maneira que Haifa, no norte de Israel, é (ou era?) um exemplo da convivência pacífica entre judeus e árabes israelitas, uma cidade progressista que se orgulha dos seus valores e princípios. Mas sem ir à região também nunca sentiria os receios de um qualquer cidadão israelita, sentado numa esplanada entregue à sorte da lotaria da vida, nunca sabendo quando chegaria a sua hora de ser alvo de um rocket ou de um atentado suicida. Relembre-se que os atentados suicidas foram uma realidade muito presente nos anos 90 e ainda mais durante a intifada de al Aqsa (2000-2005). Para se ter uma ideia, e segundo os números que consegui apurar, nos anos 90, sobretudo no período a seguir aos Acordos de Oslo II (1995), morreram cerca de 120 israelitas, em 14 ataques suicidas perpetrados maioritariamente pelo Hamas, através do seu braço armado, Brigadas Izz ad-Din al Qassam, e pela Jihad, pelas mãos das Brigadas al Quds. Esta prática intensificou-se brutalmente durante a intifada de al Aqsa, que se iniciou em Setembro de 2000. Até 2005 foram realizados mais de 130 atentados suicidas, provocando mais de 600 mortos em Israel, com as Brigadas de al Aqsa, ligadas à Fatah, a contribuírem também para esta mortandade. Historicamente, foi Fati Shaqaqi, um dos fundadores da Jihad, quem pela primeira vez, nos anos 80, falou na possibilidade de serem utilizados mártires na luta contra Israel. A partir de 2006/2007 praticamente deixou de haver atentados suicidas, ao contrário do uso de rockets por parte do Hamas, a partir da Faixa de Gaza, e do Hezbollah, desde o sul do Líbano.

Só estando no terreno é que é possível compreender os receios e os medos de uma parte da consciência colectiva judaica, que se sente rodeada de inimigos, num Estado em que a zona mais estreita de profundidade estratégica tem apenas 14 quilómetros, e que acredita convictamente que do “outro lado” existem algumas correntes (minoritárias, note-se) que continuam a acalentar o sonho de “empurrar os israelitas para o mar”. Um Estado, apesar de tudo ainda marcado, pelas três guerras que travou com os países árabes (1948, 1967 e 1973). Factores que reforçam uma certa psicose que perpassa uma parte da sociedade israelita, que lida no seu quotidiano com actos e gestos algo perturbadores para um qualquer cidadão europeu. Basta ir a uma simples esplanada israelita ou a um restaurante para se perceber o nível de militarização da sociedade hebraica, onde facilmente se vêem jovens militares fardados, sempre acompanhados da sua arma, numa convivência natural com os civis e crianças. Muitos destes jovens, a quem é privada uma parte da sua juventude para servir nos territórios ocupados, acabam por ficar com marcas emocionais que condicionam a sua forma de verem o “vizinho” palestiniano. E quando digo “vizinho”, é importante ter a noção da proximidade territorial entre os dois povos. Por exemplo, de Ramalhah a Jerusalém é pouco mais do que 20 quilómetros, da cidade de Gaza a Telavive não chega a 80 quilómetros. Além disso, em períodos de maior acalmia, é há um forte fluxo diário de trabalhadores palestinianos da Cisjordânia para Israel. Importa ainda saber que mais de 20 por cento da população israelita é árabe, muita dela com ligações familiares à Cisjordânia e Faixa de Gaza. Aliás, a título de curiosidade, as três irmãs do líder máximo do Hamas, Ismail Haniyeh, são cidadãs israelitas há muitos anos, tendo inclusive alguns dos seus filhos já servido nas IDF.

No terreno constata-se também o quão progressistas são muitos sectores da sociedade israelita, alguns deles muito activos ao longo dos anos a exigir a retirada dos colonatos judaicos da Cisjordânia. Aliás, de ambos os lados, existem movimentos e pessoas envolvidas em lutas por melhores condições de vida e por uma solução de estabilidade para ambos os povos. É certo que as franjas radicais das duas sociedades, ora que se apresentam sob a forma Política, ora munidas de uma herança histórico-religiosa que lhes dá uma aura quase divina, são uma evidência impossível de contornar e que, lamentavelmente, continuam a ditar os desígnios dos dois povos. Mas a maioria anseia por uma vida normal. A maior parte dos israelitas não vive sob os ditames da Promessa da Terra Prometida que Deus fez a Abrão ou na obsessão de um dia verem reconstruído o Terceiro Templo de Jerusalém. E sim, a historia palestiniana é traumática, mas a maioria dos palestinianos não vive rancorosa com a traição britânica da Declaração Balfour de 1917 e muito menos quer “empurrar os israelitas para o Mediterrâneo”.

Edward Said escreveu um dia que o orientalismo e o anti-semitismo moderno tinham raízes comuns. Penso que o autor com isso quis dizer que se tratam de construções mentais exteriores à vivência dos povos árabe e judeu, feitas a partir de ilusões, percepções, preconceitos, estigmas, dogmas, ideias preconcebidas, que acabam por criar um turbilhão de discussão e ódio. É curioso constatar que as inúmeras considerações teóricas e políticas que decorrem dos modelos de análise exteriores ao conflito e à vivência no terreno, e que vemos agora diariamente plasmados amiúde na imprensa e redes sociais, muitas vezes não têm qualquer eco no quadro racional e motivacional de um simples cidadão palestiniano ou israelita. De certa maneira, o mundo exterior continua a olhar para o conflito israelo-palestiniano através de lentes desfocadas, escapando-lhe as nuances do terreno, perpetuando, assim, convicções pessoais inabaláveis e posições de princípio inamovíveis que vão alimentando uma ideia de rivalidade ancestral dos tempos bíblicos entre palestinianos e judeus.  

Texto publicado originalmente no Novo Semanário

PESCO reaproxima EUA e UE em matéria de Segurança e Defesa

Alexandre Guerra, 18.05.21

Uma das medidas mais importantes alcançadas até ao momento pela presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (UE) passou um pouco despercebida nos meios de comunicação social nacionais, mas reveste-se de enorme importância no quadro de Segurança e Defesa das relações transatlânticas, nomeadamente entre a NATO e a UE. Foi o próprio ministro português da Defesa, João Gomes Cravinho, que, em vésperas do Conselho Europeu com os seus homólogos em Bruxelas há precisamente uma semana, anunciou a disponibilidade da Noruega, Canadá e Estados Unidos se associaram à Cooperação Estruturada Permanente (PESCO). É um mecanismo instituído no Conselho Europeu de Dezembro de 2017 e que estava previsto no Tratado de Lisboa, com o objectivo de aprofundar a cooperação militar entre os Estados-membros, através de projectos comuns que contribuam para a autonomia estratégica da UE e para o reforço do complexo militar-industrial e tecnológico.

A PESCO é o primeiro mecanismo permanente da UE vocacionado para o desenvolvimento de projectos na área da Segurança e Defesa. Pode ser o embrião de um possível complexo militar-industrial europeu. Para isso, a PESCO conta com financiamento comunitário através do Fundo Europeu de Defesa (EDF), um dos pilares deste mecanismo. É importante relembrar que o EDF foi anunciado pela primeira vez em Setembro de 2016, pelo ex-presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, por ocasião do Discurso do Estado da União, com o objectivo de inovar e potenciar a indústria de Defesa europeia. Três meses depois, sairia do Conselho Europeu o convite para a Comissão apresentar propostas para a criação desse Fundo, que incluísse uma vertente para o desenvolvimento conjunto de capacidades definidas de comum acordo pelos Estados-membros. O Fundo viria a ser criado formalmente em Junho de 2017 e dois anos depois o Parlamento Europeu dava luz verde para dotar o fundo de 13 mil milhões de euros, propostos pela Comissão Europeia no âmbito do Quadro Financeiro Plurianual (QFP) para 2021-2027.

Sendo este Fundo vital para sustentar os projectos da PESCO, dias depois da votação do Parlamento Europeu, Washington, sob a presidência de Donald Trump, enviou uma carta a Bruxelas com um tom bastante agressivo, deixando implícitas várias ameaças políticas e represálias comerciais. A missiva, à qual vários meios de comunicação social internacionais tiveram acesso, tinha a data de 1 de Maio de 2019 e foi enviada a Frederica Mogherini, a então Alta Representante da UE para a Política Externa e Segurança, tendo como remetentes na altura a sub-secretária de Defesa dos EUA, Ellen M. Lord, e a sub-secretária de Estado, Andrea L. Thompson. Nesse “duríssimo texto” (palavras do El País), Washington mostrava-se “profundamente preocupado” já que, à luz das regras do Fundo – e não obstante países fora da UE poderem participar –, toda a propriedade intelectual dos projectos abrangidos por aquelas verbas comunitárias tem de ser exclusivamente europeia. Além disso, o regulamento do Fundo impede que um país terceiro que participe num projecto europeu imponha restrições à exportação comunitária da tecnologia e armamento produzidos.

Estas regras – que surpreenderam e irritaram Washington pela assertividade pouco habitual com que Bruxelas defendeu e protegeu os seus interesses – serão agora aplicadas no projecto da PESCO ao qual os Estados Unidos, Noruega e Canadá se irão associar, já que é financiado pelo EDF no valor de 1,7 mil milhões de euros. Um sinal particularmente importante por parte dos Estados Unidos que, com esta nova presidência de Joe Biden, demonstra vontade de participar num esforço conjunto para a segurança transatlântica no âmbito da NATO e da UE. Por outro lado, esta disponibilidade da UE à participação de outros países terceiros na PESCO, em especial os Estados Unidos, comporta uma mensagem política relevante para Washington, uma vez que é uma contribuição financeira efectiva por parte de Bruxelas para o esforço colectivo da defesa transatlântica no quadro conjunto da UE e NATO. Compreendem-se, por isso, as declarações entusiásticas da ministra alemã da Defesa, Annegret Kramp-Karrenbauer, que considerou estar-se perante um "salto quântico em termos de cooperação". Também João Gomes Cravinho foi muito claro nas declarações que deu ao site Politico: "É muito positivo que os EUA se juntem a isto, em vez de dizerem que a PESCO é, como ouvi noutras alturas da anterior administração, negativa para os interesses da NATO.”

O projecto em causa está relacionado com mobilidade militar europeia e prevê a uniformização de informação entre países da UE, harmonização de regulamentos fronteiriços e melhoramento de pontes e vias terrestres para a passagem de tanques e outras viaturas blindadas. Medidas que possam facilitar o transporte de equipamento pesado e a mobilização de tropas entre diferentes países na Europa. Uma preocupação que a NATO tem demonstrado perante o cenário de um eventual conflito com a Rússia, onde será precisa uma projecção rápida e eficaz de forças. "Actualmente, há barreiras administrativas e de infraestruturas que tornam difícil para o pessoal militar e equipamento se movimentar através da Europa. Muitas vezes, é mais fácil para um turista viajar pela UE do que o pessoal militar”, informou a ministra holandesa da Defesa, Ank Bijleveld, país que lidera este novo projecto em concreto. É um dos 46 projectos que neste momento estão a ser desenvolvidos no âmbito da PESCO, com naturezas e finalidades diferentes, que podem ir da logística à mobilidade militar, passando por sistemas militares de índole variada, cibersegurança ou comunicações.

Com a operacionalização da PESCO, que apenas não integra a Dinamarca e Malta, a UE parece estar finalmente a dar corpo a uma estratégia comum na investigação e desenvolvimento da sua indústria de Segurança e Defesa, ainda para mais, validada pelo Parlamento Europeu através do financiamento do EDF, dando-lhe um carácter mais democrático, que vai muito além das decisões circunscritas ao Conselho Europeu. Para quem acompanha estas questões no seio da UE, consegue elencar um rol de medidas que, durante anos, foram sendo anunciadas, muitas delas com grande pompa, mas sem qualquer efeito prático.

A PESCO corporiza essa vontade partilhada ao nível da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD), sendo um passo importante para ir ao encontro da tal “linguagem do poder” que Josep Borrell, Alto Representante da UE para a Política Externa e Política de Segurança, referia há tempos que a Europa teria que reaprender a falar. Além disso, a medida anunciada pelo ministro João Gomes Cravinho, e formalizada no Conselho Europeu dos ministros da Defesa da passada semana, tem um importante simbolismo, porque dá um sinal de reaproximação política nas relações entre os EUA e a Europa em matéria de Segurança e Defesa. No entanto, é importante relembrar que, apesar do distanciamento político-diplomático imposto pela administração de Trump em relação à segurança europeia, os aliados da NATO, incluindo os EUA, nunca descuraram os seus compromissos militares e operacionais no quadro dos objectivos da Aliança. A questão é que com esta nova parceria com os EUA no âmbito da PESCO, entra-se numa nova fase, na qual a UE assume as “despesas” em matéria de Segurança e Defesa num esforço comum e complementar com os interesses da NATO. Como o próprio João Gomes Cravinho reconheceu, cada organização tem vocações diferentes e, seguramente, à NATO não compete estar a reconstruir pontes em território europeu. Nesse sentido, a PESCO pode ser um mecanismo fundamental para a UE reforçar o seu contributo financeiro em prol da Segurança e Defesa transatlântica.

Texto publicado originalmente no Novo Semanário

Para que servem as presidências rotativas do Conselho da UE?

Alexandre Guerra, 05.05.21

À medida que a União Europeia (UE) foi alargando e crescendo, mais dificuldade foi tendo em acomodar a sede de protagonismo político dos seus vários Estados-membros. Ao mesmo tempo, foi ficando mais complexa na sua estrutura de gestão política, adensando o intricado burocrático nas hierarquias de poder e precedências entre os vários órgãos institucionais europeus. O recente episódio do “sofagate” em Ancara – que num primeiro momento foi analisado à luz da intransigência turca ou do erro protocolar europeu (ambos os casos se verificaram) – é um bom exemplo dessa “competição” interna nos corredores de Bruxelas pela cadeira do poder. Uma disputa embaraçosa permitida pela indefinição política sobre quem é a figura de proa do edifício europeu, percebendo-se, por exemplo, a renitência cautelosa dos líderes internacionais antes de pegarem no telefone e ligarem para Bruxelas, não se vá dar o caso de ferirem inadvertidamente susceptibilidades, ora da presidência da Comissão Europeia, actualmente nas mãos de Ursula von der Leyen, ora da presidência do Conselho Europeu, detida neste momento por Charles Michel. A esta liderança bicéfala junta-se ainda a figura da presidência rotativa do Conselho da UE, instituída pelo Tratado de Lisboa, que, tendo uma função mais decorativa, não deixa de baralhar aqueles que, menos elucidados sobre estas nuances europeias, tentam descortinar “quem é quem?” na cúpula decisória e de poder do edifício europeu.

Esta sobreposição de cargos europeus resulta, em parte, de um acumular de legislação e tratados e de uma indefinição crónica sobre a delimitação das esferas de poderes políticos. Se nos sistemas políticos internos de cada Estado-membro as constituições definem claramente os contornos do regime e o “papel” do Presidente e do primeiro-ministro, já os tratados europeus não são propriamente claros na hierarquização das suas figuras de topo. Ou melhor dizendo, definem as suas funções e responsabilidades, mas são omissos na atribuição da relevância política, até porque nenhum desses cargos é sufragado pelos cidadãos europeus. Tudo isto deixa margem para uma interpretação criativa, e por vezes abusiva, por parte de quem ocupa os órgãos de poder, sobre onde acha que se deve sentar. Por exemplo, Von der Leyen considerou que tinha o direito de se sentar ao lado do Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, já Charles Michel parece ter tido uma perspectiva diferente sobre este “jogo” das cadeiras, que, na verdade, é uma disputa séria sobre a interpretação de ambos do seu próprio poder. A isto somam-se as dinâmicas das presidências rotativas do Conselho da UE que, em bom rigor, acrescentam pouco àquilo que é o “output” do sistema europeu.

As presidências rotativas são mais uma camada de burocracia institucional na liderança europeia, embora praticamente irrelevante naquilo que é o exercício de poder interno e, muito menos, no reconhecimento externo desse mesmo poder nas Relações Internacionais. É preciso assumir que estas presidências não existem propriamente por necessidade e são pouco fulcrais no exercício quotidiano dos desígnios europeus. A sua utilidade prática é questionável, já que dificilmente se poderá atribuir às presidências rotativas os créditos daquilo que é resultado do normal funcionamento dos órgãos europeus permanentes ou da acção político-diplomática das principais potências, França e Alemanha.

Dificilmente uma presidência rotativa inicia e concluiu um dossier específico, sendo que em muitos casos os “sucessos” dependem da casualidade dos calendários, permitindo que aquela possa celebrar uma determinada cimeira ou tratado, mas que é fruto de um processo complexo e moroso – como aconteceu com a presidência portuguesa de 2007, ao assinar o Tratado de Lisboa. Naturalmente que a arte diplomática de cada Estado-membro poderá facilitar e acelerar a conclusão de um dossier nos bastidores ou agilizar a realização de determinado evento, mas nada que altere o curso dos desígnios europeus ou que se substitua ao trabalho desenvolvido pelos órgãos competentes e serviços próprios da UE. Nas presidências rotativas cada Estado-membro define um programa próprio que se esgota ao fim do semestre. Sendo certo que existe em permanência uma troika de Estados-membros que procura assegurar a transição nas agendas programáticas das presidências rotativas, cada país não se coíbe de aproveitar o “palco” semestral para dar o seu cunho criativo na construção do projecto europeu.

Tendo em consideração o que acima foi exposto, admitamos que a mais-valia das presidências rotativas seja a promoção de um certo sentimento de pertença de cada Estado-membro ao projecto comum europeu. O problema é que esse sentimento fica confinado a determinadas elites e circuitos. Para a maioria dos cidadãos europeus, este conceito de presidência rotativa pouco ou nada diz. E se já olham com distanciamento para aqueles que são os órgãos tradicionais de topo da UE, quanto mais para uma presidência semestral, com pouco ou nenhum eco mediático no panorama nacional do Estado-membro presidente e muito menos nos outros países europeus. Com um elevado grau de certeza, diria que a maioria dos portugueses não faz qualquer ideia que Portugal ocupa a presidência rotativa da UE neste momento e muito menos identificará a sua finalidade.

 Além disso, as presidências rotativas acarretam um esforço adicional e uma “distração” aos governos dos Estados-membros. Por um lado, há uma mobilização de recursos humanos e financeiros que se inicia meses antes da presidência no âmbito dos trabalhos preparatórios da troika. Isto implica reorganizações internas nos ministérios, com realocação de profissionais e reagendamento de prioridades políticas. É também necessário contratar pessoal e serviços externos, com os impactos financeiros inerentes. Por outro lado, politicamente, uma presidência rotativa exige uma atenção quase total de alguns responsáveis máximos de um Governo, nomeadamente do primeiro-ministro ou do Presidente (dependendo do sistema). Além dos eventos públicos, diariamente são inúmeras as iniciativas de bastidores, entre reuniões de trabalho e actos protocolares.

A presidência rotativa da UE absorve uma parte da liderança governamental durante seis meses, sem que isso traga um retorno relevante na consolidação do projecto europeu. Nem sequer cumpre aquele objectivo vago de “aproximar os cidadãos à Europa”. Também a liderança política bicéfala da UE, partilhada entre Conselho e Comissão, deveria ser clarificada, não em termos das suas funções, mas na óptica da sua afirmação e projecção de poder. A simplificação e clarificação deste tríptico – presidência rotativa do Conselho da UE, presidência do Conselho Europeu, presidência da Comissão – seria um excelente ponto de partida de debate na Conferência Sobre o Futuro da Europa, mas que, infelizmente, não contemplará qualquer reforma institucional.

Esta iniciativa vai ser lançada formalmente no próximo Dia da Europa (9 de Maio) por António Costa, enquanto primeiro-ministro do país que ocupa actualmente a presidência rotativa do Conselho da UE. Será, sem dúvida, uma das marcas desta presidência que até ver, e por motivos vários – nomeadamente a pandemia Covid-19 –, não será tão luminosa como as três anteriores que o nosso País assumiu (1992, 2000 e 2007). Esta Conferência consiste “numa série de debates e discussões promovidos pelos cidadãos e que permitirão às pessoas de toda a Europa partilhar as suas ideias e ajudar a moldar o nosso futuro comum”. Uma definição algo vaga à qual a Comissão chama de “grande exercício democrático pan-europeu”, que proporcionará um “fórum público para travar um debate aberto, inclusivo e transparente com os cidadãos em torno de uma série de prioridades e desafios fundamentais”.

O princípio é meritório, mas os objectivos parecem ser demasiado dispersos e inconsequentes, residindo aqui uma diferença substancial com a célebre Convenção Sobre o Futuro da Europa, liderada pelo antigo Presidente francês, Giscard D’Estaing, e que tinha como propósito a reforma das instituições europeias. Se a actual Conferência abre espaço ao diálogo e à participação da sociedade civil, mas com um horizonte mais longínquo e menos evidente nas suas metas, já a Convenção circunscrevia-se a um circuito limitado de políticos e decisores, porém com impacto mais imediato e substancial na estrutura organizacional da UE.

Ou seja, a Convenção criada pelo Conselho Europeu de Nice, em Dezembro de 2000, teve uma abordagem mais técnica e burocrática, no entanto, distanciada dos cidadãos. Ao invés, a Conferência prestes a ser lançada propõe-se a algo mais alargado, num modelo de debates e conferências dispersos pelos Estados-membros que se prolongará até à Primavera do próximo ano, porém sem que se perceba bem qual a finalidade concreta deste exercício – se há coisa que a UE não tem falta é de conferências e debates.

Neste momento já é possível aceder a plataforma digital interactiva multilingue (https://futureu.europa.eu/) da Conferência, que permite aos cidadãos inscreverem-se em eventos ou debates e apresentarem as suas ideias e propostas relativas a diferentes áreas. Esta plataforma funcionará como uma espécie de hub, a partir do qual toda a informação será sistematizada e agregada para depois ser debatida em painéis de discussão e conferências descentralizadas. O ideal teria sido um modelo misto entre a Convenção e a Conferência, definindo-se, por um lado, objectivos claros e concretos e, por outro, permitindo a participação da sociedade civil. Dessa forma, eu teria a possibilidade de propor que se acabasse com as presidências rotativas do Conselho da UE e se hierarquizasse politicamente de forma inequívoca as presidências do Conselho Europeu e da Comissão Europeia.

Texto publicado originalmente no NOVO Semanário

A inércia da guerra mais longa

Alexandre Guerra, 26.04.21

Quando a 28 de Setembro de 2001, ainda enquanto jornalista de Internacional, um texto da minha autoria fez manchete na edição do extinto Semanário desse dia e que titulava “Força Delta estará no Afeganistão”, estava muito longe de imaginar que seria o início de uma presença militar americana naquele país que se arrastaria durante vinte anos. Nem eu, nem ninguém na altura, antecipou ou prospectivou um envolvimento militar americano que se estendesse temporal e materialmente bem para lá daquilo que tinha sido, por exemplo, a Guerra do Vietname.

Porém, entre analistas e especialistas havia uma quase certeza quanto ao desfecho da guerra lançada pelo então Presidente George W. Bush: como a História já tinha demonstrado com os britânicos e com os soviéticos, os soldados americanos iam partir para um país que nunca se deixara invadir por forças ocupantes e que, de uma maneira ou outra, seriam repelidas daquele território sem os objetivos verdadeiramente alcançados.

Importa notar que logo após os atentados de 11 de Setembro de 2001, num primeiro momento de choque, toda a gente foi apanhada de surpresa em Washington, das estruturas militares às várias agências de segurança e contra-terrorismo, passando pelos serviços de intelligence. Uns meses mais tarde em Bruxelas, alguns altos responsáveis militares da NATO diziam-me precisamente isso. Por momentos, foi o desnorte. O povo americano e o mundo clamavam por uma reposta imediata contra um inimigo bárbaro, mas em Washington a dúvida era: contra quem e contra quê?

Perante uma América prostrada, receosa e revoltada, exigia-se rapidez no processo de decisão política e o Presidente George W. Bush, assim como os “falcões” que o secundavam, estava perfeitamente ciente desse facto. Rapidamente se começaram a ligar as muitas pontas soltas de informação dispersa entre as várias agências de segurança e de intelligence, ao mesmo tempo que se começava também a perceber as inúmeras falhas sistémicas que permitiram um ataque daquela magnitude sem que qualquer alarme tivesse soado ou qualquer alerta tivesse sido dado.

Bastou um olhar mais atento e integrado para se chegar facilmente a Osama bin Laden e à sua organização al Qaeda, que nem sequer eram estreantes no terrorismo islâmico contra interesses americanos. O Afeganistão e o regime Taliban (outrora financiado e treinado pelos americanos na guerra contra o Exército Vermelho da União Soviética nos anos 80) tornavam-se o alvo imediato e consensual dos Estados Unidos.

Após algumas semanas em que muito se especulou sobre a possível chegada de forças especiais ao Afeganistão, na noite de 19 de Outubro uma força conjunta composta por elementos da Delta Force e dos Rangers, transportados pelos pilotos de elite do 160º Regimento de Aviação de Operações Especiais do Exército, conhecidos como “Night Stalkers”, iniciavam as operações de combate homem a homem no terreno.

Duas companhias compostas por duzentos Rangers levavam a cabo o “Objective Rhino”, saltando de paraquedas a partir de quatro Lockheed MC-130 a sul de Kandahar. Desde as operações do Panamá em 1989 que os Rangers não faziam uma operação deste género. Agora o objetivo era destruir todas as forças Taliban e da al Qaeda que encontrassem pela frente e estabelecer um perímetro de segurança numa faixa de terreno que permitisse uma pista de aterragem para o reabastecimento da aeronaves.

Ao mesmo tempo, os homens da Delta, a alguns quilómetros distância, a bordo de quatro MH-47 Chinooks pilotados pelos “Night Stalkers”, davam “Objective Geck”, numa operação furtiva nocturna dirigida à residência do líder máximo dos Taliban, Mullah Omar, embora a intelligence tivesse avisado que seria muito pouco provável que ele estive em casa. Mas o objectivo era, sobretudo, mostrar ao inimigo que as forças americanas podiam chegar onde quisessem e que nenhum taliban estaria a salvo.

Em termos mediáticos e de percepção pública começava a mais longa guerra dos Estados Unidos, denominada de operação Enduring Freedom, cujos objectivos iniciais eram a captura/eliminação de Osama bin Laden, a erradicação da al Qaeda, a destruição do regime Taliban – objectivo que viria a mudar mais tarde – e consequente esbatimento da ameaça terrorista a partir daquele “santuário”. No entanto, em termos práticos, a operação já estava em curso com os bombardeamentos americanos no Afeganistão desde o início de Outubro. Além disso, os Delta e os Rangers não foram os primeiros a meter as “botas” em território afegão. Há semanas que já estavam infiltrados no terreno alguns elementos da CIA no vale de Panjhir, a norte de Cabul. Os homens da CIA tinham sobretudo dois objectivos: por um lado, criar canais de negociação com possíveis aliados na região, nomeadamente a Aliança do Norte, e, por outro, preparar o terreno para a chegada dos militares.

E os militares americanos chegaram e foram chegando ao longo de muitos anos. E com eles, milhares de contractors, onde se incluem serviços de segurança privada, transporte, construção, análise de intelligence, entre outros providenciados por empresas com quem o Departamento de Defesa tem contractos. No pico da presença militar americana no Afeganistão chegaram a estar em 2011 quase 100 mil soldados e no ano seguinte atingiu-se o recorde de mais de 28 mil contractors de segurança privada. Ao todo, em 2012, estavam no Afeganistão quase 120 mil contractors. Um esforço massivo em termos logísticos e de folhas de pagamentos de ordenados.

A 2 de Dezembro de 2009, Barack Obama perante os cadetes de West Point anunciava a mobilização de mais 30 mil soldados para o Afeganistão. O objectivo era alcançar uma “conclusão bem sucedida” da guerra que já se arrastava há alguns anos. Nesse mesmo discurso, Obama informava a América que num espaço de dezoito meses as tropas poderiam começar a regressar a casa, no que se subentendia como o princípio do fim do envolvimento dos EUA num país onde já ninguém queria estar.

Em finais de 2009, inícios de 2010, já era evidente o atoleiro em que se tinha transformado o Afeganistão. Os líderes da al Qaeda estavam confortavelmente instalados nas zonas tribais do Paquistão, os Taliban retomaram o controlo de parte substancial do território do Afeganistão, a violência recrudescia, assim como o cultivo de ópio. A tudo isto somava-se outro desastre ainda maior chamado Iraque.

Após quase dez anos de guerra no Afeganistão, o fardo tornava-se demasiado pesado e Washington estava a ser confrontado com o seu erro originário ao ter iniciado uma guerra sem uma estratégia de saída bem definida e que, provavelmente, nunca esteve adequada aos objectivos concretos delineados pela administração de George W. Bush.

Quando Obama toma posse em 2009 como Presidente dos EUA, a sua secretária de Estado, Hillary Clinton, nomeia o embaixador Richard Hoolbrooke para um cargo recém-criado: representante especial para o Afeganistão e Paquistão. Holbrooke era um homem com enorme experiência internacional, nomeadamente em cenários de conflito, como foram os casos da Guerra do Vietname e, muitos anos mais tarde, do conflito dos Balcãs – foi um dos grandes responsáveis pelo Acordo de Dayton. Holbrooke não perdeu tempo e viajou de imediato para Cabul, numa altura em que as chefias militares americanas pediam um reforço massivo de tropas.

Na edição de Maio/Junho da Foreign Affairs que está para sair é relatada uma reunião extraordinária na “Situation Room” da Casa Branca, onde estavam presentes Hoolbroke, através de videoconferência a partir de Cabul (Hillary Clinton não pôde participar por motivos de agenda), Obama e restantes elementos do staff. A intervenção de Holbrooke não correu bem, porque a determinada altura foi desenvolvendo a sua ideia à luz dos ensinamentos do Vietname, chegando a sustentar que a problemática do envio de mais soldados assentava numa “savage intersection of policy, politics, and history”.

Obama não percebeu Holbrooke e ignorando todo o passado do diplomata enquanto homem de terreno, acabou por remetê-lo a uma condição de teórico nostálgico sem capacidade de dar uma resposta concreta a um problema presente e que, para o Presidente, nada tinha a ver com o Vietname. E essa era a questão central, porque Obama não queria ouvir falar nisso, nessas comparações que em nada favoreciam uma retórica de vitória que se queria “vender” ao povo americano. Todo o seu staff directo era jovem e o próprio Obama tinha nascido pouco antes do início da Guerra do Vietname. Para esta gente era uma questão meramente histórica, do passado, sem qualquer utilidade para a crise presente.

Dias depois, Hillary Clinton abordava Holbrooke, após Obama ter falado com a secretária de Estado:

  • “They don’t think they have anything to learn from Vietnam”, disse Hillary.
  • They’re going to make the same mistakes!”, respondeu Holbrooke.

Na comparação entre o Vietname e o Afeganistão, Holbrooke, que viria a morrer pouco tempo depois, escreveria no seu diário o seguinte:

“Of course, everything is different — and everything is the same. And somehow, I am back in the middle of it, the only senior official who really lived it. I had not thought much about it for years, now it comes back every day. Every program has its prior incarnation—mostly unsuccessful. . . . I think we must recognize that military success is not possible, + we must seek a negotiation. But with who? The Taliban are not Hanoi, + their alliance with Al Qaeda is a deal-breaker.”

Embora Obama não quisesse ouvir falar em qualquer comparação com o Vietname, Holbrooke antecipou aquilo que viriam a ser os dez anos seguintes. Apesar da importante vitória que Obama teve a 2 de Maio de 2011, com a morte de Osama bin Laden, os Estados Unidos passariam mais dez anos no Afeganistão sem que pudessem clamar de forma peremptória qualquer vitória. Pelo contrário, a situação foi-se deteriorando.

A verdade é que desde George W. Bush, as administrações limitaram-se a gerir o “dossier afegão” herdado do antecessor, sem que tivesse havido qualquer ruptura no modelo de política que estava ser seguido em relação àquele país. Aliás, é muito interessante constatar que nos anos recentes a The National Interest recuperasse umas declarações de Obama, proferidas em 2010, onde este admitia que os EUA tanto podiam ficar no Afeganistão por mais cinco, oito ou dez anos, não por uma questão de estratégia, mas sim por “inércia”.

A mesma inércia que viria a obrigar os Estados Unidos a fazerem aquilo que seria impensável quando Bush deu luz verde para a Enduring Freedom: negociar com inimigo. Uma perspectiva cínica e cruel, mas realista. A única que impera nas Relações Internacionais. Faça-se justiça ao ex-Presidente Mário Soares, estadista em toda a sua plenitude, porque foi dos primeiros a falar nessa possibilidade em 2004, tendo, na altura, sido fortemente criticado por aqueles que, nada tinham aprendido com a história do Afeganistão e, ingenuamente, acreditavam numa solução militar clássica para derrotar a al Qaeda e o regime Taliban no Afeganistão. Houve quem também visse virtuosidade nestas palavras. Miguel Sousa Tavares escrevia na altura no Público: “Ou muito me engano, ou as palavras de Soares são premonitórias: dêem tempo ao tempo.”

Mais de 15 anos passaram até que as palavras de Mário Soares encontrassem eco na realidade, com o acordo de Doha de 29 de Fevereiro de 2020 entre os EUA e os Taliban. O tempo que passou foi o tal tempo de inércia, que foi ceifando vidas e queimando recursos. Cingindo-nos apenas aos EUA, os vinte anos de guerra no Afeganistão custaram mais de 2300 vidas, quase 20 700 feridos e cerca de 900 mil milhões de dólares. Do lado afegão, a Brown University estima que tenham morrido mais de 64 mil soldados e polícias. Quanto aos civis afegãos, os números não são claros, porque a Missão de Assistência ao Afeganistão das Nações Unidas (UNAMA) só começou a contabilizar a partir de 2009, com o número a ascender aos 110 000.

Uma fotografia impressionante e pouco entusiasmante. Talvez por isso, na hora de anunciar a retirada total dos soldados americanos até ao próximo dia 11 de Setembro (adiando por mais uns meses o que tinha sido acordado entre Washington e os Taliban há mais de um ano), Joe Biden tenha poucas razões para festejar, sublinhando que o objectivo nunca foi a estabilização ou a unificação do país, mas sim a eliminação da potencial ameaça que dali vinha. Provavelmente isso já poderia ter sido anunciado há dez anos, como referia há dias Vanda Felbab-Brwon, directora da Initiative on Nonstate Armed Actors, no blogue Order from Chaos da Brookings Institution: The U.S. primary objective in Afghanistan since 2001 has been to degrade the threat of terrorism against the United States and its allies. That basic goal was accomplished a decade ago.”

Biden pouco interesse ou vontade tinha em reverter o acordo do seu antecessor alcançado com os Taliban, tendo apenas adiado em poucos meses a sua concretização. Biden, tal como Donald Trump, sabia que chegara o momento de meter fim ao envolvimento perpétuo americano no Afeganistão. Obama já o podia ter feito (chegou a ensaiar essa retirada, como acima foi referido). Todos sabem que os últimos soldados americanos vão regressar a casa e deixar um país dilacerado, economicamente em farrapos, com uma criminalidade galopante e com os Taliban a prepararem-se para disputar o poder central em Cabul, como referia há dias o especialista Max Boot num artigo no site da Foreign Affairs.

As chefias militares americanas discordam desta retirada e já alertaram para os perigos a médio prazo. Ainda esta Terça-feira (20), numa audição do Comité dos Serviços Armados do Congresso, o General Frank McKenzie, chefe do Comando Central dos Estados Unidos, avisou que será muito difícil identificarem e anularem eventuais ameaças terroristas no Afeganistão sem tropas no terreno. Também o Afghanistan Study Group, promovido pelo Congresso dos EUA sob alçada do US Institute of Peace, referia num relatório do início de Fevereiro que “uma retirada precipitada poderia conduzir à reconstituição da ameaça terrorista ao território dos Estados Unidos num espaço de 18 meses a três anos”. É que mesmo que fiquem alguns elementos da CIA no Afeganistão, a sua capacidade operacional será substancialmente reduzida, porque deixam de poder contar com o apoio militar de retaguarda. Além disso, neste momento, os Estados Unidos não têm qualquer acordo negociado com os países vizinhos do Afeganistão para poderem instalar unidades militares de apoio.

Seja como for, a decisão está tomada e a administração Biden vai mandar regressar os cerca de 2500 militares que ainda estão no Afeganistão (a NATO retirará também o seu contingente) e cessar vínculos com os mais de 6300 contractors. Vinte anos depois, é o princípio do fim do envolvimento americano no Afeganistão, não por qualquer evidência retumbante de glória ou vitória, mas simplesmente por inércia.

Virá novamente o Afeganistão representar uma ameaça terrorista directa ao território dos EUA? É ainda cedo para se perceber, mas uma coisa é certa, os Taliban ficarão com maior margem para alargar o seu domínio ao resto do país, incluindo Cabul, e, ao contrário do que prometeram em Doha, é muito provável que venham a reforçar os laços de proximidade com a al Qaeda.

Publicado originalmente no NOVO Semanário

Srebrenica, o genocídio que a Europa não pode esquecer

Alexandre Guerra, 13.07.20

Quem visite o memorial e cemitério de Srebrenica (localizado na povoação vizinha de Potacari) é confrontado com uma visão impressionante que nos confronta com o mais vil e perverso projecto político nacionalista que a Europa viveu desde a II Guerra Mundial. Milhares de lápides brancas que repousam sobre um manto de relva, no meio de uma floresta verdejante por onde, há precisamente vinte e cinco anos, mulheres, homens e crianças bósnias muçulmanas tentaram, em desespero, fugir das forças militares bósnias sérvias. Alguns conseguiram, mas outros foram capturados, levados para “killing sites” e mortos. Os corpos foram enterrados em valas comuns espalhadas por diferentes locais desconhecidos naquela região remota da Bósnia-Herzegovina.

Hoje, celebra-se um quarto de século sobre o genocídio de Srebrenica. Todos os anos, neste dia 11, é realizada uma cerimónia naquele memorial, onde vão a enterrar novos corpos identificados que, entretanto, foram exumados das muitas valas comuns que circundam a área. É um processo doloroso que parece não ter fim, porque embora esteja identificado o número oficial de vítimas (8372), muitos corpos continuam desaparecidos, para desespero dos familiares sobreviventes.

Entre 11 e 22 de Julho de 1995, no enclave muçulmano de Srebrenica, considerada uma “safe zone” pela ONU, foram assassinados mais de 8 mil bósnios muçulmanos (bosniaks), num massacre sistematizado contra rapazes e homens, levado a cabo pelas forças militares da República Srpska (entidade sérvia auto-proclamada em 1992 dentro da Bósnia-Herzegovina). Este Exército era comandado pelo General Ratko Mladic, sob as ordens políticas de Radovan Karadzic, o Presidente de então daquela entidade política e conhecido como o “carniceiro da Bósnia”. O objectivo era claro: a limpeza étnica do enclave muçulmano de Srebrenica integrado numa região predominantemente bósnia sérvia. Tudo fazia parte do projecto para a criação da Grande Sérvia.

O Tribunal Penal Internacional para os Crimes da Ex-Jugoslávia (ICTY) acabaria por dar como provado o “genocídio” e condenar Mladic e Karadzic por aquele crime, assim como “crimes de guerra” e “crimes contra a Humanidade”. Ambos estão a cumprir pena.

Os trágicos acontecimentos de Julho de 1995 aconteceram perante a impotência do tristemente célebre contingente holandês de “capacetes azuis” estacionado no Quartel-General da Força de Manutenção de Paz das Nações Unidas (UNPROFOR) em Potacari, a poucos quilómetros de Srebrenica. Com a ofensiva de Mladic sobre esta localidade no dia 11, cerca de 20 mil a 30 mil bosniaks meterem-se em fuga pela floresta densa que cobre toda a aquela região. Muitas destas pessoas dirigiram-se para as instalações da UNPROFOR, uma antiga fábrica de baterias. Algumas centenas foram acolhidas num dos seus armazéns (que hoje em dia recebe exposições relativas ao genocídio), mas a maioria foi deixada à sua sorte e voltou a fugir para a floresta. Muitos homens foram capturados e mortos nos dias que se seguiram. Mulheres e crianças foram obrigadas a abandonar a região. Os relatos de testemunhas falam de gritos vindos da floresta. 

Para a história, o contingente holandês ficou associado negativamente a estes acontecimentos e ainda hoje, por um certo sentimento de culpa, segundo me informaram, muitos dos seus soldados acompanham a título pessoal as famílias das vítimas. O próprio Governo holandês apoia diversos projectos solidários. Mas vale a pena estudar com muita atenção tudo o que falhou ao nível da hierarquia de comando da ONU, para se perceber que muito podia ter sido feito para se evitar aquele genocídio, já para não dizer que as "rules of engagement" dos soldados holandeses nem sequer lhes permitiam disparar em legítima defesa.

Quando se deram estes acontecimentos estava a ultimar a minha entrada na universidade para o curso de Relações Internacionais. Era um jovem atento e apaixonado por aquelas temáticas e, por isso, estava profundamente sensibilizado e impressionado pelos anos de conflito nos Balcãs (1991-95). Ninguém esquece as imagens de horror e os relatos de barbárie que nos chegavam pelas grandes cadeias de televisões e jornais (incluindo o PÚBLICO), sobretudo da Bósnia, onde a guerra (1992-95) se fez sentir com particular violência, e que terá provocado no total mais de 100 mil mortos. Eram imagens dos “campos de concentração” sérvios, com milhares de homens, mulheres e crianças bósnias com corpos esquálidos à beira da morte. Massacres, perseguições étnicas, valas comuns, tudo a acontecer quase em directo aos olhos de todos e no interior da Europa (de Sarajevo a Viena não são mais do que 800 km).

O genocídio de Srebrenica foi o epílogo sangrento de todo esse conflito. A maior vergonha europeia dos últimos 75 anos e o mais trágico falhanço político-diplomático europeu desde a II GM. Nenhum europeu deve esquecer este trágico acontecimento, porque além de todo o sofrimento e morte, ele foi a expressão mais hedionda dos nacionalismos radicais numa Europa que se apresentou sempre como o farol da liberdade e dos valores humanistas. Os mais novos, que não têm memória do conflito, devem estudá-lo e compreendê-lo.

Por aqueles locais cometeu-se um extermínio em massa e hoje em dia continua a ser muito inquietante e perturbador lidar com a "normalidade" vigente. Até a empresa de autocarros que transportou sistematicamente centenas de bosniaks para os locais de extermínio ainda opera. Está lá! E perguntamo-nos: Como é possível? É difícil explicar. A verdade é que nada pode ser normal numa região que sofreu um trauma tão sangrento. Antes da limpeza étnica, o município de Srebrenica tinha cerca de 36 mil habitantes, na sua maioria muçulmanos. Hoje, esse número deverá andar por volta dos 7 a 10 mil. Na cidade propriamente dita, vivem agora apenas algumas centenas de pessoas. O ambiente é pesado e lúgubre e ainda se vêem resquícios físicos daqueles dias.

Em finais de Agosto de 2018 tive a oportunidade de visitar aquela zona. Depois de muitos anos a estudar e a ler sobre toda aquela realidade, percebi que, à semelhança do que já me tinha acontecido com o conflito israelo-palestiniano, nunca a iria compreender na sua plenitude se não fosse ao terreno. Do que vi e ouvi em Srebrenica e em Potacari, impressionou-me particularmente o testemunho doloroso, durante mais de uma hora, de um homem que, na altura criança, escapou à morte, mas perdeu o pai e o irmão no genocídio. E o mais tocante é que essa pessoa agora adulta aparece de passagem num documentário, onde se mostram imagens da altura, com colunas de centenas de pessoas a fugirem de Srebrenica para localidades circundantes. E lá está ela, a criança assustada, no meio de um conflito que servia apenas o propósito de Slobodan Milosevic: criar entre a Sérvia e a República Srpska uma homogeneidade étnica e religiosa. E o mais dramático é que comparando-se os mapas demográficos de antes de 1992 e depois de 1995, que podem ser vistos no antigo Quartel da UNPROFOR, constata-se que a ideia da "Grande Sérvia” protagonizada por Milosevic fez uma parte do caminho.

Nestes tempos que correm, com uma certa descontração e ignorância, muito se fala de nacionalismos e de líderes extremistas e também por essa razão é que escrevo este texto. As pessoas esquecem rapidamente e, muitas vezes, os líderes e as sociedades pouco aprendem com a História. Depois de ver e sentir as memórias de Srebrenica e em homenagem aos que ali morreram, é cada vez mais forte a minha convicção de que extremismos e nacionalismos devem ser combatidos com todas as nossas forças. Para que, como disse o imã de Potacari na inauguração do memorial/cemitério de Srebrenica a 11 de Julho de 2001: "That Srebrenica never happen again, to no one and nowhere".

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.

O regresso do Estado e as esferas de influência

Alexandre Guerra, 15.04.20

Num acontecimento de proporções históricas como aquele que vivemos só o Estado poderá conduzir o seu povo ao tão almejado “pico” e trazê-lo para baixo sem que o caos e o desespero se instalem. Só ele tem o poder e a autoridade para tal feito. É a única construção política que reúne os recursos e elementos necessários para mobilizar a sociedade no seu todo. É a única entidade capaz de governar em tempo de “guerra”. Não está aqui em causa qualquer apreciação valorativa no âmbito da eterna discussão ideológica de qual deve ser o papel do Estado na vivência das sociedades. É sobretudo uma questão de necessidade, quase de sobrevivência, perante algo tão perturbador que se sobrepõe a todas as outras formas intermédias de organização social e política.  

Como diz o Professor Adriano Moreira no seu manual de Ciência Política, “sempre que se admite que existe alguma coisa superior ao homem, a alternativa comum é entre Deus e o Estado”. Se partirmos do princípio que até Deus está de “quarentena”, resta o Estado. Nas guerras e nos cataclismas regressa-se sempre à fórmula mais clássica, na qual o Estado toma conta dos “seus”, do seu povo. Ainda há uns dias, aqui no PÚBLICO, Jorge Almeida Fernandes, num artigo de opinião e Manuel Carvalho, em editorial, falavam precisamente no “regresso do Estado”. Talvez nem seja propriamente um regresso, mas sim um reassumir de protagonismo depois de vários anos remetido para uma certa secundarização face às “virtudes” da “aldeia global”, com o Estado despolitizado, confinado à sua função minimalista de regulador nos sistemas das democracias liberais. Provavelmente, seria aquilo que Raymond Aron chamava de apaziguamento ideológico, uma tese que, segundo Adriano Moreira, nos conduziria à ilação lógica de que o Estado tenderia mais para ser uma “administração de coisas do que um governo de pessoas”.

Abruptamente, a ameaça de um vírus num distante mercado chinês concretiza-se em contagem diária de mortes e infectados em todo o mundo. É uma “guerra”, dizem muitos. E desta vez verdadeiramente mundial, com praticamente todas as nações afectadas (ou infectadas). Os cidadãos planetários “desligam-se” apressadamente do mundo global e — provavelmente no maior movimento de massas de sempre da História em tão curto espaço de tempo – recolhem às suas fronteiras, aos seus lares. Em muitos casos, poderíamos falar num regresso às origens, à mais antiga forma de organização social: a família.

As sociedades ficam reduzidas aos serviços mínimos. Em modo de sobrevivência, impõem-se medidas drásticas em temos de confinamento social e, se calhar, pela primeira vez nas nossas vidas, somos confrontados brutalmente com essa verdade aristotélica de que “cada homem é inevitavelmente sócio de outro homem”. Neste cenário, com contornos distópicos, os cidadãos procuram segurança e liderança na única entidade que está em condições de lhes assegurar isso: o Estado. Tem sido ele que conduz os povos nos grandes combates, nos feitos e nas desgraças. O Estado chegou-se novamente à frente e, para o bem ou para o mal, também os seus líderes (não surpreendem os bons números que estudos de opinião atribuem a alguns governantes). Se analisarmos os três acontecimentos com implicações sistémicas dos últimos 80 anos, confirma-se essa realidade. Na hora do aperto, na “darkest hour”, é o Estado que lidera. Foi assim na II Guerra Mundial, no fim da Guerra Fria e no 11 de Setembro.

Ao compararmos estes tempos disruptivos com as duas crises do pós-II GM com reflexos sistémicos, conclui-se que nem o fim da Guerra Fria nem o 11 de Setembro provocaram perturbações desta dimensão na vivência das sociedades. Sabemos, no entanto, que estes dois momentos históricos tiveram implicações sistémicas imensas, especialmente os acontecimentos ocorridos entre 1989 e 1991, que representaram aquilo a que se chama “ruptura” no paradigma das relações internacionais. Momentos raros que nem todas as gerações têm o privilégio de viver. Por sua vez, o 11 de Setembro veio “clarificar” um pouco essa transição sistémica, ao pôr cobro ao sonho idílico da “paz kantiana” e ao deitar por terra, de uma vez por todas, algumas teorias interessantes, mas ingénuas, de que a história política e ideológica tinha acabado, perante aquilo que consideravam ser o triunfo absoluto da “hegemonia liberal”.

No seu recente livro “Guerra e Paz – Uma História Política do Mundo” (D. Quixote, 2019 [ed. Orig. 2018]), Jonathan Holslag, professor de Política Internacional na Universidade Livre de Bruxelas, observa isso mesmo: “Após a queda da União Soviética, o debate foi dominado por estudiosos optimistas, os chamados liberais, que defendiam a ideia de que as trocas comerciais tornavam as entidades políticas mais dependentes umas das outras e que essa interdependência tornava os conflitos mais dispendiosos, e os chamados construtivistas, que partiam do princípio de que as normas internacionais dissuadiam as entidades políticas de usarem a força umas contra as outras e que mesmo o seu próprio ADN poderia ser alterado, afastando-as de uma predisposição para uma maior concentração no bem comum” (considero que o conceito de “interdependência complexa” que Joseph S. Nye e Robert Keohane desenvolveram teve alguma validade até determinados limites).

As transições sistémicas podem demorar anos até que se perceba de forma clara a mudança de um paradigma para outro. Trinta anos, para todos os efeitos, não é assim tanto tempo em termos históricos. Por outro lado, é tempo suficiente para se perceber que a ideia inicial de um mundo unipolar ou unimultipolar liderado pelos Estados Unidos caiu por terra. Era o tal “Unipolar Moment” de que Charles Krauthammer falava em 1990. Ruiu o entusiasmo que muitos em Washington criaram sobre os escombros da União Soviética, na esperança de poderem exportar universalmente os valores da democracia e do liberalismo. Seria a vitória mundial das chamadas democracias liberais. Uma ingenuidade que os Estados Unidos (e não só) pagaram muito caro. De certa maneira, houve uma certa dificuldade por parte de vários sectores em Washington em aceitar a realidade sistémica do pós-Guerra Fria como ela é e não como alguns gostariam que fosse.

E por isso, Holslag acrescenta a vertente realista à sua reflexão: “Nos últimos anos, no entanto, a voz dos intelectuais politicamente realistas tornou-se mais audível. Eles acreditam que as entidades políticas sempre envidarão esforços por obter autonomia, segurança e poder; por consequência, é improvável que a cooperação e a paz sejam sustentáveis. O mundo mantém-se nas garras da anarquia, o que, para estudantes de política internacional, significa competição perpétua entre entidades políticas e a ausência de uma força duradoura que possa arbitrar ou resolver as suas disputas.”

O autor tem razão quando escreve que “esta transição de um idealismo optimista para um realismo pessimista não é nada de novo”. A História dá-nos inúmeros exemplos, sendo que talvez o caso mais recente nos remeta para o período do final da II GM e anos subsequentes, onde duas visões sistémicas se confrontaram sobre o que seria o mundo das décadas vindouras. Dois homens personificaram este embate de paradigmas, ambos “The Wise Men”, especialistas em assuntos soviéticos: Charles Bohlen, principal conselheiro do Presidente Franklin Roosevelt nestas matérias, e George F. Kennan, vice-chefe da missão americana em Moscovo logo a seguir à Guerra. A visão de “um mundo” pacificado e liderado pelos Estados Unidos preconizada por Bohlen não resistiu à perspectiva realista das “esferas de influência” e do “containment” defendida por Kennan.

Ciente das perversidades e males do regime de Estaline, Kennan não acreditava, no entanto, na ideia de um conflito directo entre as duas superpotências. A sua doutrina acabaria por favorecer uma solução intermédia de estabilidade e de “contenção” perante o avanço do comunismo na Europa e em diferentes partes do mundo. O seu pensamento ajudou a forjar o sistema bipolar da Guerra Fria que, em parte, viria assentar na “contenção” e na “dissuasão”, privilegiando-se, assim, a estabilidade sistémica através da manutenção de um status quo de equilíbrio de poderes, com momentos de fricção, mas sem confrontação directa. A tal Guerra Fria que mais tarde o sociólogo realista Raymond Aron viria a caracterizar de forma sábia, como um sistema onde “a paz é impossível, a guerra é improvável”.

É ainda cedo para se perceber as implicações sistémicas da crise que vivemos e que António Guterres classificou como sendo o maior desafio para as Nações Unidas desde a sua formação. Ou que Carl Bildt, ex-primeiro ministro sueco e diplomata com muita experiência em assuntos internacionais, nomeadamente nos Balcãs, considerou ser “a primeira grande crise do mundo pós-americano”. Como em qualquer crise na história política dos Estados, podemos estar perante acontecimentos que ajudem a consolidar e clarificar dinâmicas que se vinham afirmando nas relações internacionais.

Carlos Gaspar, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL), escreveu no brief de Março do Instituto de Defesa Nacional (IDN) que “a epidemia do novo coronavírus não é um ‘cisne negro’. Não é por sua causa que nada vai mudar no sistema internacional, mas o vírus pode ser um acelerador das mudanças dos últimos dez anos, patentes na erosão da ordem liberal internacional”. Também na sua coluna habitual no Expresso (4 de Abril), Miguel Monjardino, professor universitário e investigador em Relações Internacionais, sublinhou que nos últimos anos tem chamado a atenção “para a transição na ordem internacional e nas escolhas estratégicas das principais potências mundiais”. E acrescenta: “A pandemia está a ocultar todo este processo histórico, que continua em curso. O aumento da competição entre os EUA e a China, o enfraquecimento das instituições internacionais ou a proteção de sectores tecnológicos considerados estratégicos para a segurança nacional não começaram no final de 2019”. Para Miguel Monjardino, “a covid-19 está a funcionar como catalisador” de algo que, no entanto, não pode ser visto de forma determinista. Henrique Burnay, consultor em assuntos europeus, partilha igualmente dessa visão ao observar no DN (6 de Abril) que “a pandemia acelerou, mais do que revolucionou” a dinâmica que se tem vindo a verificar relativamente ao papel dos Estados Unidos no sistema internacional.

Parece haver algum consenso entre analistas na área das Relações Internacionais de que a actual crise que se vive, embora possa provocar algumas mudanças nas sociedades, não é por si só factor de ruptura no sistema internacional. Não é o tal “cisne negro”. Poderá ser sim, o “catalisador”, o “acelerador” para a solidificação do novo paradigma das relações internacionais. Ao fim de 30 anos de transição sistémica, esta pandemia dissipou os sonhos que ainda restavam de alguns iludidos em Washington que acreditavam cegamente nas virtudes daquilo que poderia ser um poder hegemónico dos Estados Unidos no mundo.

Hoje, são obrigados a aceitar que estão numa competição sistémica com a China, mas também com a Rússia. E espera-se que, para bem da União Europeia, também esta possa vir a ser uma “competidora” nas relações internacionais.   

Nesta linha de pensamento, Graham Allison, ainda antes de esta crise ter atingido as proporções que conhecemos, admitia que Washington parece ter finalmente despertado para a realidade tal como ela é, onde existe competição com outras duas grandes potências, a Rússia e a China. “Para os Estados Unidos, isso implica ter que aceitar a realidade que existem esferas de influência no mundo de hoje – e que nem todas elas são esferas americanas.” . Efectivamente, estas “novas esferas de influência” de que fala Graham Allison não são uma realidade que decorrem da actual crise. “As esferas de influência [no pós-Guerra Fria] deram lugar a uma esfera de influência [americana]. O mais forte impôs a sua vontade sobre o fraco; o resto do mundo foi compelido a jogar sob as regras americanas, se não enfrentava um preço alto a pagar, desde sanções agressivas a mudanças de regime. As esferas de influência não desapareceram; elas colapsaram numa só, sob o poder esmagador de facto da hegemonia dos Estados Unidos. Agora, no entanto, essa hegemonia está a esbater-se e Washington acordou para aquilo que se chama uma ‘nova era de competição pelo grande poder’”.

Basta uma análise simples para facilmente se constatar que, nos últimos anos, essas esferas de influência em termos territoriais foram ganhando força, sem que Washington tivesse doutrinado sobre esse paradigma, limitando-se a aceitá-lo tácita e cinicamente. Por exemplo, em pouco mais de dez anos, a Rússia invadiu a Abecásia e a Ossétia do Sul, declarando-as como “Estados independentes”. E anexou “de facto” a região de Donbass, no Leste da Ucrânia, e a Península da Crimeia. Da parte de Washington, ao bom e velho estilo da Guerra Fria, o caminho esteve sempre livre para Moscovo investir no seu “espaço vital”. Mais recentemente, a intervenção da Rússia no conflito da Síria trouxe ao de cima os antigos jogos geoestratégicos tão característicos das dinâmicas de competição e de partilha de poder nas relações internacionais. Esta análise aplica-se igualmente a Pequim que, nos anos mais recentes, procedeu em força à militarização do Mar do Sul da China. Ao mesmo tempo lançou uma autêntica ofensiva territorial e económica denominada “Belt and Road Initiative”, que mais não é do que alargar a influência chinesa a vários Estados. Também a opressão brutal da minoria uigure e a repressão das manifestações pró-democracia em Hong Kong foi outro exercício de poder autoritário, totalmente condenável à luz dos Direitos Humanos. Perante tudo isto, e tirando algumas declarações mediáticas inconsequentes e manobras de diversão da Marinha de guerra dos Estados Unidos, Washington foi aceitando este status quo. Naturalmente que estas esferas de influência vão continuar a ser reforçadas com outras componentes além da militar, tais como a económica, a tecnológica ou a científica.

A pandemia que se vive deverá ter destruído as ilusões daqueles que ainda acreditavam em soluções globais. Há apenas quatro meses, o mundo estava confrontado com a falência do combate político universal às alterações climáticas. Os líderes não se entendiam e os compromissos foram atirados para um futuro longínquo. A crise do Covid-19 colocou igualmente os países perante um problema global cuja resposta tem sido nacional. O esforço é internacional, mas há pouca cooperação transnacional. A “competição” adensou-se. E mesmo quando se fala em colaboração científica entre nações, o que se verifica é uma autêntica “corrida” à descoberta da cura para a doença, que é também uma competição de poder e de liderança entre os EUA e a China.

Sem certezas absolutas sobre o paradigma que enquadrará as relações internacionais nas próximas décadas, foram acima expostos elementos que nos permitem antecipar sistemicamente as próximas décadas. Claro está que é sempre um exercício com algum grau especulativo, mas relativamente confortável, porque só a médio e longo prazo conseguiremos ter uma ideia clara da evolução do sistema internacional e perceber o quanto esta crise foi importante na sua consolidação.

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.

Trinta anos depois, esfriou o entusiasmo na UE para alargar as suas fronteiras

Alexandre Guerra, 15.11.19

 

Os trinta anos volvidos após a queda do Muro de Berlim já nos permitem ter uma perspectiva histórica sobre a evolução do projecto europeu na realidade sistémica pós-Guerra Fria. De forma mais simplista e imediata, dir-se-ia que em três décadas se passou do entusiasmo contagiante ao esfriamento céptico. Embora seja uma ideia (ou talvez percepção) muito popular nos dias que correm, esta leitura deve ser feita com a devida contextualização.

 

Os ventos de mudança que se fizeram sentir na Europa entre 1989 e 1991 foram de tal maneira intensos que “empurraram” toda uma elite de líderes europeus e tecnocratas em Bruxelas para o caminho comum da celebração do ideal de “união” numa Europa atormentada durante décadas pela divisão dos seus povos. Dessa força política imparável resultaram dois dos momentos mais importantes daquilo que viria a ser a (re)definição e consolidação do conceito de projecto europeu: a entrada em vigor do Tratado de Maastricht, em Novembro de 1993, e o alargamento da União Europeia (UE) a Leste, em Maio de 2004. Não sendo o Tratado de Maastricht objecto de análise deste texto, foquemo-nos no maior alargamento de sempre e das implicações que teve na concepção da ideia de União Europeia e nas expectativas dos países do antigo Bloco de Leste e dos que saíram da ex-URSS.

 

Tal como tinha acontecido com Maastricht, também o alargamento em 2004 assumiu contornos inéditos na definição da natureza do projecto europeu. A 1 de Maio de 2004, de uma só vez, aderiram dez novos Estados à UE: Polónia, República Checa, Eslováquia, Eslovénia, Hungria, Lituânia, Letónia, Estónia, Malta e Chipre. Foi um momento particularmente importante no processo de construção europeia, sobretudo por duas razões: a primeira, por tratar-se da primeira vez que a União Europeia se alargava a países que tinham pertencido ao antigo Bloco de Leste; a segunda razão pelo facto de enviar um sinal de esperança a todos os Estados que outrora tinham estado sob o jugo comunista e que continuavam às “portas” do clube europeu.

 

O alargamento de 2004, pela sua expressão e alcance geográfico, representava um compromisso claro, por parte dos Estados-membros, da intenção de se fazer chegar as fronteiras do projeto europeu o mais longe possível. Foi esse o caminho escolhido, mas não sem antes ter havido um intenso confronto de visões. Não estava em causa mais um “simples” alargamento confinado a uma Europa ocidental desenvolvida, como já tinha acontecido várias vezes. Não, em 2004, era uma nova Europa que se (re)descobria.

 

Com a queda do Muro e a implosão da URSS dois anos depois, a União Europeia podia ter esperado, adiado ou abortado essa ideia de agigantar o projecto europeu e remeter-se ao aprofundamento das fundações e dos mecanismos de uma Europa ocidental e desenvolvida a 15 ou pouco mais do que isso. Mas a decisão política e estratégica foi a de seguir em frente, mais concretamente para Leste, com todos os riscos que daí adviriam para o que já fora conquistado em termos de construção europeia. Ao alargar a Leste, a União Europeia assumiu um compromisso de disponibilidade para com todos os países que estiveram debaixo da esfera soviética, criou expectativas e alimentou sonhos.

 

Perante a dimensão histórica do que estava em causa, o alargamento foi precedido de um longo e intenso debate – pelo menos entre os mais entusiastas e atentos aos assuntos europeus. Na altura, estiveram em confronto duas correntes de pensamento: aquela que sempre defendeu a política dos “pequenos passos” e uma União Europeia geográfica mais contida; e aquela que via no alargamento uma missão intrínseca ao espírito originário da ideia de Europa.

 

A segunda corrente acabou por prevalecer. A partir daqui, novos alargamentos seriam inevitáveis. A questão é que seriam alargamentos mais motivados pelo tal espírito de missão do que propriamente pela rigidez dos famosos “Critérios de Copenhaga”. E isso ficou bem evidente a 1 de Janeiro de 2007, quando a Bulgária e a Roménia aderiram à UE. As candidaturas daqueles dois países eram de tal forma frágeis – as quais pude constatar meses antes da adesão numa visita à Bulgária –, que Bruxelas impôs algumas condições extraordinárias de vigilância e controlo aos mais recentes membros. Esta medida foi adoptada na sequência do conturbado processo de adesão daqueles dois países, que não preencheram todos os requisitos da forma esperada. Em alguns dossiers, as autoridades de Sófia e de Bucareste não conseguiram adoptar as reformas necessárias, originando fortes avisos por parte da Comissão Europeia. As áreas da justiça e do combate à corrupção foram aquelas que mais preocupações geraram. Recorde-se que na altura, Paris e Londres pressionaram a Comissão para que endurecesse sua posição, perante aquilo que consideravam ser um caso “sério de corrupção” em dois países que começavam a estar fora de controlo. Também a Suécia e a Holanda partilharam desta opinião, ao acusarem a Comissão de não estar a cumprir com as suas obrigações, colocando assim em causa o processo de alargamento da União Europeia. Esta questão adensou-se depois de vários Estados-membros terem acusado Franco Fratini, o então comissário europeu da Segurança e Justiça, responsável pela aplicação de algumas reformas na Bulgária e Roménia, de estar a “fechar os olhos” ao que se passava nos dois países.

 

Bruxelas “fechou os olhos” a muita coisa, que era por demais evidente, tal como já tinha “fechado” em 2004, em nome de uma ideia virtuosa, é certo, mas que estava cada vez mais desprovida de realismo, criando desequilíbrios estruturais no seio do edifício da UE que ainda hoje se fazem sentir, nalguns casos até de forma bastante acentuada. A entrada da Croácia em 2013 acabou por ser um passo natural dentro desta linha estratégica. Tal como o início das negociações de adesão com o Montenegro (2012) e com a Sérvia (2014), a formalização da candidatura da rebaptizada República da Macedónia do Norte (2005) e da Albânia (2014), e os pedidos de adesão da Bósnia-Herzegovina (2016) e do Kosovo (2016). Estes últimos quatro países estão abrangidos pelo Acordo de Estabilização e Associação. Quanto à Turquia, iniciou formalmente as negociações de adesão em 2005, mas trata-se, sobretudo, de uma herança e “obrigação” histórica que remonta a 1963 e que em nada se enquadra no quadro do alargamento europeu aqui falado neste texto. Na verdade, nem Bruxelas nem os líderes europeus quiseram assumir frontalmente, nos últimos anos, a inviabilidade da adesão da Turquia à UE, optando, antes, por um “arrastar” interminável do processo negocial. Aliás, basta comparar os processos dos três países nessa condição de “negociações abertas” e constata-se que existem diferentes dinâmicas e motivações: Turquia, Sérvia e Montenegro.

 

Ancara começou a negociar em 2005, mas conseguiu abrir apenas 16 capítulos e encerrou provisoriamente um. Por seu lado, Belgrado iniciou negociações com Bruxelas quase dez anos depois, conseguindo abrir 17 capítulos e fechado provisoriamente dois. Mais expressivos são os números do processo negocial entre Bruxelas e Podgorica, iniciado em 2012, no qual foram abertos até ao momento 32 dos 35 capítulos de negociação, três dos quais foram já provisoriamente encerrados. De sublinhar ainda que a última vez que a União Europeia e a Turquia abriram um novo capítulo negocial foi em Junho de 2016, enquanto com Belgrado e Podgorica foi em Dezembro de ano passado.

 

Dos três processos negociais em curso, parece evidente que a longo prazo, a Turquia continuará de fora da UE. Porém, se poucos acreditam na concretização da adesão da Turquia, aceitando-se tacitamente o “congelamento” desse processo, as coisas mudam de figura quando se fala dos países dos Balcãs. As expectativas criadas depois do fim da Guerra Fria, do alargamento de 2004 – que incluiu um país balcânico pobre (a Bulgária) – e da entrada mais recente de uma nação da antiga Jugoslávia (Croácia), alimentam a esperança de outros Estados balcânicos entrarem na UE. Ainda recentemente, o primeiro-ministro do Montenegro, Dusko Markovic, dizia em entrevista à AP estar esperançoso que, após o “Brexit”, Bruxelas voltasse a dar mais atenção ao processo de alargamento.

 

Não obstante as fragilidades do seu sistema político, o Montenegro parece estar “moderadamente” bem encaminhado nos capítulos negociais, segundo o último relatório de acompanhamento. Para Bruxelas, o Montenegro, um país que nem chega a 700 mil habitantes, representa poucos desafios, um pouco à semelhança da Croácia quando aderiu, que acabou por se tornar uma espécie de estância tranquila de férias da Europa. É muito provável que o Montenegro seja o próximo a entrar na UE e até é previsível que o faça sozinho em 2025, como referido, de forma algo tímida, no compromisso da estratégia europeia para os Balcãs Ocidentais, aprovado pela Comissão em Fevereiro de 2018.

 

Mais complicado é o processo da Sérvia, apesar de este documento também apontar a data de 2025 para a sua adesão plena. Nos últimos anos, Bruxelas não tem tido particular entusiasmo nem empenho no processo de adesão da Sérvia, por razões que vão muito além das análises dos relatórios técnicos de acompanhamento, nomeadamente do mais recente. Há vontade por parte da Sérvia para aderir à UE, como aliás é referido pelos seus líderes e como pude confirmar no ano passado numa visita àquele país. E até existem condições de partida para isso, quando comparadas, por exemplo, com as da Bulgária em 2004. Belgrado é uma cidade cosmopolita, culta, vibrante e em crescimento acentuado. O resto do país é mais rural, mas nem por isso se deve descurar a sua importância estratégica enquanto placa giratório na região, que será potenciada com a conclusão do ambicioso projecto do Corridor X Highway, uma auto-estrada que atravessará o país e que será integrada na Rede Trans-Europeia Rodoviária (TERN).

 

É certo que a Sérvia apresenta grandes debilidades ao nível de infra-estruturas e de solidez nas suas instituições, mas tem todo o potencial para colmatar essas fragilidades, tendo vindo a crescer economicamente e a apresentar melhorias significativas em várias áreas. No entanto, há uma questão que parece ser inultrapassável no actual processo negocial, que tem a ver com o nacionalismo sérvio e com a herança trágica dos vários conflitos da ex-Jugoslávia. As feridas mantêm-se mais vivas do que se possa pensar e as lideranças políticas continuam a veicular um discurso ulta-nacionalista que escapa ao radar da imprensa de referência europeia, onde constantemente se enaltecem os actos criminosos praticados durante a guerra da Bósnia (1992-95), se endeusam as lideranças militares e se alimenta constantemente uma retórica de exortação étnica. Esta questão é particularmente exacerbada na República Srpska, Bósnia Herzegovina, onde Belgrado faz sentir diariamente a sua retórica política contra os vizinhos muçulmanos bósnios. Ao mesmo tempo, Belgrado recusa qualquer tipo de moderação política exigida por Bruxelas. Perante isto, como enquadrar um país na União Europeia onde uma parte da população considera Milosevic um herói? Onde se enaltecem líderes militares como Karadzic e Mladic, que praticaram crimes hediondos? Onde existe uma realidade alternativa dos acontecimentos de Srebrenica? Onde não se reconhece o Kosovo independente?

 

É sobretudo por estas razões que não se perspectiva a adesão da Sérvia à UE em 2025. Como ainda há uns meses referia Srdjan Majstorović, presidente do European Policy Centre, um think tank que tem como objectivo acompanhar o processo de adesão da Sérvia: “O ano de 2025 não é impossível, mas, neste momento, não é muito realista porque nenhum dos lados se está a esforçar para isso.”

 

O entusiasmo de outrora, manifestado por outros líderes noutros tempos, deu lugar à prudência e até mesmo ao cepticismo por parte de alguns Estados-membros. Bruxelas vai cumprindo o calendário dentro dos seus compromissos, sem mostrar muita vontade em acelerar processos. “Ninguém irá dizer em alto e bom som que está contra o alargamento, faz parte do jogo político, mas há uma forte resistência no seio dos Estados-membros da UE, para que o alargamento não aconteça até que haja uma reconfiguração das relações poder e que novos modelos sejam implementados”, disse há umas semanas o recém-eleito redactor do Parlamento Europeu para o processo de adesão do Montenegro.

 

Essa perda de entusiasmo ficou bem evidente com a decisão recente do Presidente francês, Emmanuel Macron, que, no Conselho Europeu de Outubro último, vetou a formalização do início das negociações com a Macedónia do Norte e a Albânia, sob os argumentos de que a UE deve, primeiro, reformar-se internamente, e que se deve rever o modelo das condições dos futuros novos Estados-membros antes de se avançar para um novo alargamento. Paris esteve sozinho no veto à Macedónia do Norte, mas contou com a companhia da Holanda e da Dinamarca no caso da Albânia, ficando, assim, inviabilizado o princípio da unanimidade no voto no Conselho Europeu pelo qual se rege o processo de alargamento.

 

O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, falou num “erro histórico” e sublinhou que “a União Europeia deve respeitar os seus compromissos”. Também o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, não escondeu o seu desalento: “Fizemos promessas a esses países.” E acrescentou: “Hoje gostaria de enviar uma mensagem aos nossos amigos da Macedónia do Norte e da Albânia: por favor, não desistam! Compreendo perfeitamente a vossa frustração, porque vocês fizeram a vossa parte, e nós não. A UE é uma entidade política complexa e é verdade que, às vezes, demora muito tempo a decidir. Mas não tenho qualquer dúvida que um dia irão torna-se membros de pleno direito da União Europeia”.

 

Os vetos francês, holandês e dinamarquês foram de, certa maneira, inesperados, porque romperam com a tradição europeia desde o final da Guerra Fria e que culminou com os alargamentos de 2004, 2007 e 2013. Como dizia o FT em editorial, os argumentos de Macron têm validade, o problema é que criaram uma situação que poderá afectar a credibilidade da UE no seu relacionamento com os países limítrofes. Além disso, é importante notar que tanto a Macedónia do Norte como a Albânia não estão pior nem melhor do que estavam a Bulgária e a Roménia quando iniciaram as suas negociações. O veto isolado de Paris provocou uma autêntica desilusão na Macedónia do Norte, onde o primeiro-ministro reformista, Zoran Zaev, sentindo-se traído e fragilizado, convocou de imediato eleições antecipadas, abrindo espaço para instabilidade política naquele país. Na Albânia, que contou com o veto triplo de Paris, Haia e Copenhaga, a reacção foi menos dramática, mas nem por isso Tirana se coibiu de enviar vários “recados” para Bruxelas.

 

Não só os líderes europeus, em tempos idos, fizeram promessas, como também criaram expectativas e alimentaram esperanças. Legitimamente, a Macedónia do Norte e a Albânia esperavam ver agora os seus esforços compensados, tal como outros viram, e iniciar as negociações dos vários capítulos com vista à adesão. A França, a Holanda e a Dinamarca (estas duas parcialmente) frustraram abruptamente essas expectativas, surpreendendo vários líderes europeus, incluindo a alemã Angela Merkel, que não escondeu o seu desagrado pela atitude daqueles três parceiros. O discurso oficial neste momento em Bruxelas é de que foi apenas um revés temporário, perspectivando-se que a curto prazo se criem as condições para que na próxima cimeira de líderes da União Europeia, já com um novos líderes na Comissão Europeia e no Conselho Europeu, se possa reencaminhar a Macedónia do Norte e a Albânia para o trajecto da adesão. Resta saber se a França se voltará a entusiasmar com uma Europa mais alargada aos Balcãs.

 

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.

 

Lições da Guerra Fria para um combate realista às alterações climáticas

Alexandre Guerra, 08.10.19

 

Em tempos escrevi que “uma Humanidade criada das cinzas de um conflito nuclear à escala global teria certamente que lutar pela sobrevivência da espécie, num mundo que estaria de regresso às origens do primitivismo social, eventualmente mergulhado num ‘estádio natureza’ hobbesiano, sem qualquer tipo de ordem ou contrato social”. E acrescentava: “O decisor político, que em última instância ordenaria a auto-destruição da Humanidade, num gesto calculado e analisado (ou não tivesse na sua posse a informação necessária para antecipar as consequências do seu acto), assumiria o papel de Deus, ao interferir com a existência das espécies, incluindo a única dotada com a faculdade do ‘entendimento’.” (1)

 

Recupera-se aqui estas palavras porque, de certa forma, há um paralelismo que pode ser estabelecido entre o potencial destruidor das armas nucleares e o das alterações climáticas: na sua versão pós-apocalíptica estas duas realidades – ironicamente resultantes da “inevitabilidade” do progresso científico – contêm na sua génese elementos perturbadores à vivência do Homem, não apenas enquanto ser social, mas como entidade biológica, podendo conduzir mesmo à sua destruição.

 

I am become Death, the destroyer of worlds”, desabafou J. Robert Oppenheimer, momentos após o Trinity Test a 16 de Julho de 1945, vendo confirmada a sua teoria sobre o potencial destrutivo da tecnologia de fissão nuclear. Semanas depois, as bombas atómicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki revelaram ao mundo uma força avassaladora até então desconhecida, potencialmente capaz de aniquilar a Humanidade.

 

Da literatura ao cinema, a cultura popular foi invadida pelo imaginário dantesco do cataclisma nuclear. Durante décadas, as sociedades viveram sob o medo de um conflito nuclear iminente à escala global. A natureza competitiva do sistema bipolar conduziu a uma disputa pelo domínio militar e a uma corrida aos armamentos (convencional e nuclear), gerando uma situação insustentável com potencial destrutivo da Humanidade. Era a primeira vez que a História do Homem estava confrontada com essa possibilidade. Como escreveu Aldous Huxley no seu prefácio à edição de 1946 da sua célebre obra Admirável Mundo Novo, “a libertação do atómico representou uma grande revolução na história humana”.

 

Quando os líderes ocidentais das duas superpotências nucleares tomaram consciência de que a escalada nuclear ilimitada poderia conduzir a um desastre de proporções bíblicas, Washington e Moscovo, sob forte pressão das suas opiniões públicas, construíram um regime internacional que permitiu “controlar” a problemática da “corrida” às armas nucleares. Além disso, este regime pretendia também conter a proliferação nuclear além dos Estados que já estivessem no “clube”. De certa forma, este regime tem funcionado durante décadas, embora tenha começado a revelar algumas brechas no pós-Guerra Fria, mais concretamente nos últimos anos, com o Irão e a Coreia do Norte.

 

Porém, é importante relembrar que nas ruas de algumas capitais ocidentais, o que se exigia na altura era uma solução irrealista e inalcançável, que apontava para o desarmamento total e global. Por mais mérito e virtude que essa ideia tivesse, jamais seria colocada em prática. Não havia condições objectivas para tal. Num mundo ideal, próximo da utopia, talvez. Mas nunca naquele sistema de Guerra Fria. Além disso, as receitas excessivamente idealistas já se tinham revelado no passado contraproducentes em termos sistémicos, bastando recordar as consequências desastrosas das políticas bem intencionadas, mas totalmente irrealistas, de Woodrow Wilson.

 

Idealismo à parte, foi o realismo político de então que permitiu viabilizar um modelo de entendimento na questão nuclear, concretizável e com resultados quantificáveis. Em vez de se falar de desarmamento total, algo que Washington e Moscovo nunca iriam aceitar, o objectivo passou a ser o “controlo” da corrida às armas e o combate à proliferação nuclear. Um feito mais modesto, mas realizável.

 

O debate público que actualmente se faz ouvir em torno da questão ambiental tem semelhanças com os movimentos pacifistas que se manifestaram no pico da crise nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética. Além de estar carregado de hipocrisia e contradição, a retórica ambientalista mainstream contém os elementos do seu próprio falhanço, porque assenta numa abordagem ingénua e, muitas vezes, populista, distante de possíveis modelos racionais que possam contribuir, efectivamente, para uma resposta prática. As proclamações genéricas soam bem para quem as ouve e as manifestações imprimem uma sensação de obra para quem participa nelas, mas, realisticamente, estas acções em pouco ou nada se repercutem, eficazmente, no ataque ao problema.

 

O mundo tem continuado a fazer a sua caminhada imparável para a beira do precipício, com a cumplicidade de todos, seja por irresponsabilidade, negligência ou puro egoísmo, com as sociedades a entrarem numa espiral cada vez mais consumista, incapazes de abdicarem dos seus níveis crescentes de conforto, sejam gerações mais velhas ou mais novas. Não tem sido por falta de sensibilização e muito menos de conhecimento científico que se chegou ao ponto onde se chegou. Não é de agora que as questões ambientais agitam as opiniões públicas. Basta recuar até há quase 25 anos, quando a Humanidade despertou para a ameaça à sua existência com a descoberta do “buraco” na camada de ozono na região da Antártida. Perante o anúncio chocante, gerou-se um debate intenso, alimentado por um sentimento de alarme geral que obrigou os governos a subscreverem muito rapidamente o Protocolo de Montreal, em 1987. Este documento, à semelhança de tantos outros do género, poderia ter sido mais uma declaração vazia de princípios, sem qualquer foco. Continha a grandiosidade imensa de um acordo universal, tendo sido a primeira vez que todas as nações do mundo subscreveram um documento deste tipo. Ou seja, tinha tudo para dar em nada, no entanto, a grande diferença é que o Protocolo de Montreal se centrou num objectivo muito concreto e realista: acabar com a comercialização de produtos com compostos químicos gasosos de clorofluorcarbonetos (CFC). As metas ficaram muito bem definidas e especificadas.

 

Este protocolo revelou-se um dos mecanismos mais eficazes de sempre, conseguindo em pouco mais de duas décadas alcançar uma grande parte dos objectivos propostos, com resultados ambientais evidentes ao nível da redução do “buraco” na camada de ozono. E como foi possível tal feito? Através de um modelo mais realista. Embora estivesse assente numa base alargada a todas as nações, o Protocolo foi construído de modo a que todos os Estados, independentemente do seu estádio de desenvolvimento, pudessem alcançar as metas.

 

É preferível ter uma medida concretizada do que um enunciado delas que revelam ser não mais do que meras declarações de circunstância. Ainda recentemente na Cimeira da Acção Climática realizada em Nova Iorque, à margem da 74.ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, 77 países, Portugal incluído, anunciaram a intenção de alcançar a meta de emissão zero de gases com efeito de estufa até 2050. Uma declaração que vai ao encontro da agenda mediática e das vozes que ecoam nas ruas, mas, na verdade, o que é que em termos práticos isso significa? Rigorosamente nada. Não há medidas concretas que acompanhem estas declarações e, provavelmente, nem todos os países estarão nas mesmas condições para porem em prática qualquer plano digno desse nome. É verdade que, por exemplo, o Protocolo de Quioto, que foi prorrogado para lá de 2012, previa algumas diferenças de tratamento na abordagem às reduções das emissões dos gases com efeito de estufa, porém, todo o seu conceito era de tal maneira genérico e abrangente que os resultados foram modestos para não dizer nulos. Se forem analisados os períodos dos primeiro e segundo compromissos (até 2020), o que se verifica é que em vez de uma diminuição, houve um aumento das emissões.

 

Estamos agora prestes a entrar na “era” do Acordo de Paris (pós-2020), mas os erros de sempre estão lá e basta ver o pressuposto basilar do documento: “O Acordo de Paris é ambicioso, dinâmico e universal. É um acordo que abrange as emissões de gases de todos os países.” Esta proclamação desmesurada é, por si só, reveladora da sua própria irrelevância, uma fórmula que se tem revelado inadequada à causa ambiental. Na verdade, o que é preciso é menos ambição e universalidade e mais realismo e pragmatismo no processo de construção de soluções, porque, à semelhança do que aconteceu na era nuclear, só assim se conseguem regimes consequentes.

 

A pergunta que os líderes mundiais devem fazer a si próprios é a seguinte: no âmbito de um quadro negocial (sim, porque é disso que estamos a falar), valerá a pena continuar a tentar forçar um compromisso global (mas artificial) com quase 200 nações? Forçar um acordo cheio de promessas pomposas e vãs, técnica e humanamente impraticáveis?

 

Ou, por outro lado, não será mais eficaz que alguns líderes promovam um fórum de trabalho permanente e exequível com as 15 nações responsáveis por mais de 70 por cento das emissões? Nações essas que estão em condições de adoptarem medidas concretas e realistas a curto e médio prazo. Uma espécie de G15 para o ambiente ou algo parecido, mas que contemple canais de diálogo abertos e formatos de negociação, quer multilateral ou bilateral. Seguramente que qualquer medida concretizada neste âmbito, por mais pequena que fosse, teria efeitos mais positivos do que as proclamações genéricas feitas nas grandes cimeiras. Basta sublinhar que só os EUA e a China são responsáveis por cerca de 40 por cento das emissões de gases com efeito de estufa. Qualquer acordo bilateral entre as duas partes terá implicações directas no ambiente.

 

Seria aconselhável que os líderes das principais potências mundiais regressassem a uma retórica mais realista e pragmática, assumindo uma solução que terá de ser negociada num círculo mais fechado de países: aqueles que mais poluem, mas também aqueles que estão em melhores condições para implementarem medidas imediatas e concretas. À primeira vista poderá parecer uma opção mais modesta, menos global e universal, mas é sem dúvida um caminho mais inteligente e concretizável. Ao contrário do que tem sido a tónica generalizada, este é o momento de sermos menos ambiciosos e sonhadores, para dar lugar ao racionalismo e à efectiva negociação. Há compromissos que têm de ser feitos, cedências acordadas e incentivos atribuídos. E isso não se faz com quase 200 nações sentadas à mesa, até porque a maioria delas tem pouco para oferecer em termos de capacidade de resposta na mudança de hábitos no seu tecido social e na transformação técnica do seu complexo industrial.

 

Não vem mal ao mundo que as vozes nas ruas se continuem a expressar entusiasticamente, mesmo que, muitas vezes, esse discurso esteja impregnado daquilo a que o investigador José Pedro Teixeira Fernandes, aqui no PÚBLICO, chamou de “populismo ambientalista dos perpetuamente ofendidos”. O importante para o futuro da Humanidade é que, para lá desses movimentos de massas, surjam uns quantos “wise men” com visão e capacidade de negociar acordos para serem cumpridos a curto e médio prazo. Conhecimento científico já o têm e tecnologia também. Faltam as decisões inteligentes e práticas.

 

 (1) GUERRA, Alexandre - A Política e o Homem Pós-Humano, prefácio de Viriato Soromenho-Marques, texto de contracapa de José Manuel Durão Barroso (Lisboa: Alêtheia, Outubro de 2016)

(2) Quando na universidade tirei uma cadeira específica sobre estas matérias, chamava-se precisamente “Problemática do Controlo de Armamentos”, sendo que um dos primeiros ensinamentos foi evitar a palavra “desarmamento”. Um conceito que ficava bem nos jornais, mas com pouca repercussão prática: o correcto era “redução” e “controlo” de armamentos.

 

Texto publicado originalmente no jornal PÚBLICO

 

A questão palestiniana

Alexandre Guerra, 16.07.19

 

Quando visitei a Faixa de Gaza pela primeira vez, no Verão de 2001, em plena intifada de Al-Aqsa, o recentíssimo e único aeroporto internacional que servia aquele enclave estava desactivado. Localizado perto de Rafah, junto à fronteira com o Egipto, a infraestrutura tinha sido bombardeada meses antes pelas Forças de Segurança Israelitas (IDF). Com uma curta existência de apenas três anos, foi construída com fundos estrangeiros e inaugurada com toda a pompa e circunstância, tendo como convidados o histórico líder Yasser Arafat e o Presidente americano Bill Clinton.

 

Estava-se em Novembro de 1998, na senda eufórica dos Acordos de Oslo de 1993 (Washington) e de 1995 (Taba) e aquele aeroporto era muito mais do que uma pista pronta para receber voos internacionais: tornara-se num motivo de esperança para as aspirações palestinianas na conquista de um Estado independente e autónomo. Como admitia o chefe-engenheiro daquela obra numa recente visita ao seu terminal, tratava-se do primeiro símbolo de soberania do povo palestiniano. Efectivamente, e perante as muitas críticas feitas aos Acordos de Oslo por parte das várias correntes palestinianas, que nunca perdoaram Arafat por ter assinado aquele documento, o Aeroporto Internacional de Gaza acabou por ser o primeiro elemento “tangível” dessas negociações.

 

Porém, mais de 20 anos depois da sua inauguração, a tal esperança, assim como o aeroporto, está em ruínas. Os Acordos de Oslo colapsaram na Cimeira de Camp David (2000), para darem lugar, quase de imediato, à intifada de Al-Aqsa, espoletada por uma visita provocatória do então primeiro-ministro israelita, Ariel Sharon, em Setembro de 2000, ao Templo do Monte, também conhecido como Haram al-Sharif ou complexo de Al-Aqsa, na cidade antiga de Jerusalém. Daquele processo negocial, pouco restou: a Autoridade Palestiniana e a definição das “zonas A, B e C”.

 

Nos anos seguintes, o conflito israelo-palestiniano viveu uma das suas fases mais violentas desde a criação do Estado de Israel, em 1948. Entre 2000 e 2005, morreram cerca de três mil palestinianos e mil israelitas. Nos territórios palestinianos implementaram-se checkpoints, intensificou-se a construção de colonatos de ortodoxos radicais. A circulação entre cidades palestinianas tornou-se um desafio e, muitas vezes, uma impossibilidade no quotidiano. As famílias deixaram de poder deslocar-se entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. E até mesmo muitos palestinianos que diariamente trabalhavam em Israel deixaram de o fazer. As incursões das IDF tornaram-se diárias, com a violência e as perseguições a alastrarem-se. As condições de vida degradaram-se, a economia deteriorou-se e a miséria instalou-se. Desde então, os territórios palestinianos nunca mais recuperaram.

 

No lado israelita, sucediam-se quase semanalmente atentados bombistas. Civis e militares eram mortos indiscriminadamente. O medo instalou-se na sociedade hebraica e o turismo desapareceu literalmente das ruas de Jerusalém. Em termos económicos e políticos, Israel viveu uma das suas piores fases. Mas também ao nível sociológico houve consequências profundas. O tecido social “rasgou-se” em diferentes tendências, com as correntes mais à esquerda a manifestarem com mais assertividade a sua posição na defesa do fim da ocupação israelita nos territórios palestinianos. De lá para cá, essas fracturas têm-se mantido.

 

A intifada de Al-Aqsa alterou a configuração e a jurisdição dos territórios da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, e se, por um lado, acabou por levar ao “disengagement” israelita daquele enclave, por outro, reforçou a presença de colonatos judaicos na outra parte do território palestiniano – uma política que tem persistido com bastante intensidade ao longo dos últimos anos. As IDF acabaram por reocupar muitas das zonas de onde tinham retirado no âmbito dos Acordos de Oslo, mais concretamente o de Taba. Ao mesmo tempo, o exercício de governação da Autoridade Palestiniana ficou enfraquecido, acabando por fragmentar-se, gerando, na prática, com as eleições de 2007 em Gaza, duas entidades de poder distintas, uma dominada pelo Hamas, no enclave, e a outra pela Fatah, em Ramalhah.

 

Apesar das dificuldades económicas e das condições adversas de vida na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, o problema nunca se colocou prioritariamente em termos económicos ou financeiros. Quando se trata da questão israelo-palestiniana, essa matéria foi sempre secundária, até porque houve uma integração considerável das economias israelita e palestiniana. Mesmo durante a intifada de Al-Aqsa, em qualquer supermercado palestiniano, muitos dos produtos vendidos eram de origem israelita. E até ao início daquela revolta, muitos palestinianos trabalhavam diariamente em Israel.

 

A intifada de Al-Aqsa trouxe um clima de conflitualidade para o processo israelo-palestiniano que perdura até aos dias hoje. Embora de 2005 em diante o nível da violência tenha descido em termos genéricos, a verdade é que nunca mais foi possível estabelecer um ambiente de relativa acalmia que pudesse criar condições para a prossecução de uma solução definitiva para a questão palestiniana. Basta ver o que aconteceu com o conflito entre o Hamas e as IDF, que fez mais de dois mil mortos na Faixa de Gaza entre Maio e Julho de 2014, ou então constatar-se que, desde há dois anos a esta parte, foram anunciados mais de três mil novas unidades em colonatos na Cisjordânia.

 

A criação de condições negociais não está dependente do factor económico-financeiro. Longe disso. Nunca foi tema no processo israelo-palestiniano durante todos estes anos, já que as difíceis condições económicas e sociais no terreno decorrem da questão política e não o contrário. Veja-se, por exemplo, a situação humanitária dramática que se vive em Gaza, onde cerca de 80% da sua população precisa de assistência e as infraestruturas que prestam os serviços básicos foram destruídas. Circunstâncias que derivam do bloqueio e dos bombardeamentos das IDF sobre o enclave que, por sua vez, Israel diz serem uma resposta às acções terroristas do Hamas. Na Cisjordânia, onde a situação humanitária não é tão grave, verifica-se igualmente um forte constrangimento por causa das dinâmicas políticas: em Jerusalém Oriental e nas zonas C, que representam 60% da Cisjordânia, registam-se muitas dificuldades de circulação e de acesso a condições que permitam uma vida quotidiana normal. De notar que, nestas áreas, Israel tem autoridade na segurança, no planeamento urbano e na construção.

 

É também importante referir que a Autoridade Palestiniana tem sido das entidades estatais que mais fundos recebe da comunidade internacional. Por exemplo, desde 2000, só a Comissão Europeia já disponibilizou a fundo perdido 770 milhões de euros, muitos dos quais veiculados para projectos que, entretanto, foram destruídos pelo conflito. No âmbito da ONU, no mesmo período, já foram disponibilizados quase cinco mil milhões de dólares.

 

O “negócio do século” apresentado há dias por Jared Kushner, conselheiro e cunhado do Presidente Donald Trump, não é mais do que uma repetição da uma estratégia de há muitos anos e esgotada. A diferença agora tem apenas a ver com a quantidade de dinheiro. Mas até neste ponto há algo de enganador, visto que, dos potenciais 50 mil milhões de dólares que possam vir a ser “facilitados” para os próximos dez anos, uma considerável parte é em forma de empréstimos.

 

De inovador o “Peace to Prosperity” tem pouco ou nada, desiludindo por completo aqueles que esperavam um autêntico plano político, após meses de expectativas alimentadas pela própria Casa Branca. Não foi propriamente uma surpresa que tenha sido condenado de imediato pelas autoridades palestinianas. Na verdade, esta terá sido uma das iniciativas no âmbito do processo israelo-palestiniano que menos tempo de vida teve. Um autêntico nado morto diplomático.

 

No workshop realizado nos dias 25 e 26 de Junho em Manama, Bahrein, onde o “Peace to Prosperity” foi apresentado, quase todo o mundo árabe marcou presença para ouvir atentamente Kushner, vendo neste documento um plano de negócio do qual possam beneficiar. Também aqui nada de novo, já que a “causa palestiniana”, em diferentes momentos da História, tem servido os interesses egoístas dos “países irmãos”. A este propósito, é importante referir que muitos palestinianos têm a noção de que estão por sua conta e risco, sentindo-se como um “parente pobre” do pan-arabismo das redondezas, tendo a noção de que são mais as vezes em que os estados árabes os “utilizam” em proveito próprio do que aquelas em que os defendem ou lutam pela criação de um Estado palestiniano.

 

Lendo-se o “Peace to Prosperity” facilmente se constata que é um esforço ingénuo e até inócuo por parte de Kushner, desprovido de qualquer sensibilidade político-diplomática no contexto histórico israelo-palestiniano, e que apenas faria sentido noutro tempo e noutras circunstâncias. O documento, que identifica até com elevado grau de detalhe potenciais projectos, contém algumas ideias económicas interessantes e propósitos sociais positivos, mas totalmente desadequados à realidade actual da Cisjordânia e da Faixa de Gaza.

 

Não é sobre isto que os palestinianos querem falar. Um plano que não tome uma posição clara quanto ao estatuto de Jerusalém e ao fim da construção de colonatos não tem qualquer hipótese de sobrevivência. Já para não falar na retirada das IDF de algumas zonas da Cisjordânia e no fim dos checkpoints e controlo de fronteiras (com o Egipto, na Faixa de Gaza, e com a Jordânia, na Cisjordânia). Questões como o direito de retorno dos refugiados ou o acesso a fontes de água potável são outros temas que podem estar incluídos num plano para ser levado minimamente a sério pelos palestinianos.

 

Kushner não teve nada disto em consideração. Pensou que bastava um PowerPoint com um plano de negócios para seduzir os líderes palestinianos. Não percebeu que do outro lado está um povo que não luta por dólares, mas, sim, por um Estado independente. E quando assim é, exige-se uma diplomacia de alto nível que possa ser mobilizadora ao ponto de alterar o curso da História. Sob este aspecto, a diplomacia americana falhou estrondosamente.

 

Texto publicado originalmente no Público.

 

A Guiné Equatorial devia sair da CPLP*

Alexandre Guerra, 18.04.19

 

As razões que motivaram o interesse e consequente adesão da Guiné Equatorial à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em 2014, nunca foram devidamente explicadas aos portugueses (pelo menos àqueles que seguem estas matérias). Ficou-se com a ideia de que o processo foi desenrolado de forma envergonhada nos bastidores da diplomacia, sem que se compreendesse verdadeiramente por que é que um Estado como a Guiné Equatorial, detentor de um lamentável registo em matéria de Direitos Humanos e sem qualquer ligação histórico-linguística relevante com a CPLP, tenha sido acolhido nesta organização.

 

A X Cimeira da CPLP realizada em Díli, a 23 de Julho de 2014, serviu de palco para os líderes lusófonos formalizarem a adesão, num ambiente “restrito”, como se estivessem a fazer algo às escondidas. Aliás, a própria resolução de “admissão” é de uma pobreza confrangedora, limitando-se a seis curtíssimos parágrafos numa folha A4, sem qualquer elemento marcante ou inspirador, ostentando meras declarações burocráticas. Segundo um take da Lusa na altura, houve “um consenso generalizado" favorável à entrada da Guiné Equatorial, mas também um "debate intenso", suscitado por Portugal. É certo que a diplomacia portuguesa não deixou de manifestar (timidamente) o seu desagrado, mas o que é facto é que acabou por anuir numa decisão que em nada contribuiu para o fortalecimento da CPLP. Pelo contrário.

 

Passaram quase cinco anos desde a adesão e a única justificação encontrada, mas nunca assumida directa e frontalmente por ninguém, teria a ver com a vontade de Luanda, embora nunca se percebendo bem o que ganharia o regime angolano com esta manobra. Mais petróleo? Nessa mesma cimeira de Díli, em que se decidiu admitir a Guiné Equatorial na CPLP, a Lusa citava uma fonte da delegação brasileira, em que informava não ter havido qualquer votação, mas antes "uma formação de uma opinião geral". Conceito vago e revelador da névoa que se tinha abatido sobre todo o processo.

 

Desde então que a Guiné Equatorial tem sido um embaraço no seio da CPLP e, em particular, para Portugal, que dificilmente poderá ser, por muito mais tempo, conivente com o regime que Teodoro Obiang lidera desde 1979. Ainda recentemente, nas páginas do PÚBLICO, a jornalista Bárbara Reis espelhava bem a realidade interna daquele país africano e assumia que: “Temos uma Coreia do Norte na CPLP”. Aliás, a partir do momento em que passou a estar em cima da mesa a eventual adesão da Guiné Equatorial à CPLP, foram várias as ONG e entidades de países africanos que se manifestaram contra essa possibilidade, alegando, precisamente, o cariz ditatorial e repressivo de Obiang.

 

A incoerência (talvez forçada) de Portugal fica evidente quando o próprio Presidente de então, Cavaco Silva, enaltece nessa mesma cimeira de Díli “os princípios fundadores” da CPLP, “que incluem o respeito pelos direitos humanos e o uso do português como língua oficial”. É importante notar que, de todos os países da CPLP, e por diferentes razões histórico-políticas, naturalmente, Portugal talvez fosse aquele que mais desconforto sentisse com a situação.

 

A saída airosa encontrada para Lisboa foi um “roteiro” de Direitos Humanos para Obiang seguir, uma espécie de analgésico para o desconforto sentido nas Necessidades. Entre as várias medidas (nunca efectivamente concretizadas) estava a abolição da pena de morte, que até hoje se traduziu apenas numa moratória, sem que o regime tenha dado sinais de querer resolver o problema definitivamente. Cinco anos depois da adesão e das condições impostas, Obiang desafia claramente Lisboa e, por isso, Cabo Verde, país que actualmente ocupa a presidência da CPLP, está a envidar todos os esforços para que a pena de morte seja abolida rapidamente na Guiné Equatorial.

 

Teodoro Obiang esteve na cidade da Praia, no passado dia 15, reunindo com o seu homólogo cabo-verdiano, onde prometeu que iria abolir a pena de morte, mas sem “pressa”. Esta declaração deve ser recebida sem grande entusiasmo, porque não é mais do que uma resposta cínica de Obiang para aliviar a pressão feita pelo primeiro-ministro português na V Cimeira Luso-Cabo verdiana que se realizou dois dias antes em Lisboa (13). António Costa foi claro nas palavras: ou a Guiné Equatorial cumpre e se revê “neste quadro comum” da CPLP, “um espaço democrático, respeitador do Estado de Direito e sem pena de morte”; ou então, ficou implícito nas suas declarações, terá que deixar de ser membro da CPLP.

 

Porém, o problema não se coloca apenas na questão da pena de morte, porque o regime de Obiang padece de inúmeros males, incompatíveis com os princípios e valores democráticos. A organização não governamental Human Rights Watch destaca a corrupção endémica, o nepotismo e a repressão violenta como algumas das piores violações de Obiang. Ainda há dias divulgou um vídeo para sensibilizar os governos com assento no Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas (HRC) a serem particularmente vigilantes no âmbito do terceiro ciclo da Universal Periodic Review (UPR). A UPR é um mecanismo de acompanhamento e de escrutínio aos indicadores dos Direitos Humanos, em que cada Estado-membro da ONU tem que “prestar contas”, de quatro em quatro anos, sobre o “estado da arte” nesta área. No caso da Guiné Equatorial, está previso que o processo de revisão seja colocado à consideração do HRC no próximo dia 13 de Maio, esperando-se que desta nova avaliação fique bem evidenciado o “silenciamento” brutal de activistas e opositores políticos, com inúmeros casos de detenções arbitrárias, intimidação e tortura. Este processo ganha particular relevância neste momento, uma vez que a Guiné Equatorial integra o Conselho de Segurança, enquanto membro não permanente.

 

Não é preciso ser-se um especialista em relações internacionais ou diplomacia para perceber que a Guiné Equatorial, sob o regime ditatorial de Obiang, nunca deveria ter tido lugar numa organização como a CPLP e é por isso que, agora, a diplomacia portuguesa devia assumir, com toda a convicção, a correcção do erro histórico cometido há cinco anos em Díli, iniciando o processo de saída daquele país. Uma espécie de “Brexit”, mas ao contrário. Além disso, as circunstâncias políticas em Angola alteraram-se radicalmente, soprando ventos de alguma mudança, que poderão ajudar Lisboa no afastamento da Guiné Equatorial e, ao mesmo tempo, na revitalização e credibilização da CPLP.

 

*Artigo publicado esta Quinta-feira (18) no jornal Público.