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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

Uma semana (pouco) santa

Alexandre Guerra, 26.03.18

 

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Uma pintura de Giovanni Cariani (1490-1547) que retrata Verónica a ir de encontro a Jesus Cristo, quando este percorria a Via Dolorosa em direcção ao Calvário, para, com o seu véu, lhe limpar o sangue e suor do rosto, que ficou estampado no tecido. E assim terá ficado eternamente, tendo o "Véu de Verónica" tornado-se numa das mais famosas "relíquias" do Cristianismo.

 

Além do seu significado religioso, a Semana Santa representa um dos acontecimentos políticos e sociais mais importantes da Humanidade: a chegada em glória de Jesus Cristo, o "rei" dos judeus revoltosos contra o domínio de Roma, a Jerusalém. O motivo era a celebração da Páscoa judaica, mas os dias que se seguiram foram conturbados, de autênticas manobras políticas, conspirações e traições. No fim, a condenação e crucificação de Jesus Cristo, não sem antes sofrer na caminhada pela Via Dolorosa com a cruz às costas, perante uma sociedade instrumentalizada e instigada. O percurso final de Jesus Cristo para o Calvário, na altura situado numa colina fora da cidade velha de Jerusalém, começa no local onde Pilatos terá "lavado as mãos", desresponsabilizando-se do destino do "rei" dos judeus. A partir daí, a Via Dolorosa vai atravessando parte da cidade velha de Jerusalém, uma experiência única e de um interesse admirável. Percorri-a algumas vezes, primeiro no Verão de 2001 e depois em 2002, anos marcados pela violência da intifada de al Aqsa (de Setembro de 2000 a 2005), que afastaram por completo os turistas da Cidade Santa. Se é verdade que esse facto provocou um enorme rombo no comércio local, por outro lado, proporcionou uma experiência rara, ao permitir a um estrangeiro andar pelas muralhas da cidade de Jerusalém apenas em convívio exclusivo com os (poucos) locais. É muito emocionante percorrer as várias estações que compõem a Via Dolorosa e que assinalam diferentes momentos bíblicos dessa caminhada de Jesus Cristo, realizada nesta altura do ano há cerca de 2000 anos. É um exercício interior e introspectivo, que nos confronta com o mal e sofrimento humano, mas também com a solidariedade e o amor do próximo. Para lá de qualquer leitura religiosa, pensando um pouco naqueles acontecimentos e na sociedade da altura, percebemos que são poucas as pessoas que vão em auxílio de Jesus Cristo. São sobretudo mulheres que O ajudam na sua caminhada em sofrimento. Maria, Verónica e depois as "mulheres de Jerusalém" choram pelo filho de Deus e acompanham-No com toda a sua compaixão ao Calvário. 

 

Dizem os Evangelhos que foram essas mesmas mulheres, as primeiras a dirigirem-se ao túmulo de Jesus Cristo e a constatarem que estava vazio. Os textos sagrados não são suficientemente claros quanto aos contornos específicos desse momento, se foi apenas uma “Maria”, provavelmente Maria Madalena, ou se outras “Marias”, mas uma coisa é certa: Pedro e João souberam da Ressurreição pela voz de uma dessas mulheres, a quem Jesus, coberto por vestes brancas, lhes terá dito para transmitir tão importante mensagem aos apóstolos. Mensagem essa que foi recebida com bastante relutância por parte de Pedro e João, porque não concebiam que um acontecimento desta magnitude lhes fosse transmitido por mulheres. Rapidamente se dirigem ao túmulo para serem confrontados com uma realidade que não conseguiram compreender.

 

No entanto, ao nível do poder político, parece ter havido uma compreensão imediata do potencial problema que representava o misterioso desaparecimento do corpo de Jesus Cristo. As autoridades judaicas quando souberam do fenómeno, através dos guardas do túmulo, mantiveram segredo em relação à versão original que lhes contaram e não perderam tempo a forjar uma teoria da conspiração para justificar o acontecimento, fazendo passar a mensagem de que os discípulos de Cristo tinham roubado o seu corpo durante a noite, no que poderia ser interpretado com um acto de fanatismo. Ironicamente, para os historiadores, esta posição da parte dos anciões judeus, acabaria por ser a assunção de que o túmulo estava, efectivamente, vazio, dando força a uma das ideias centrais do Cristianismo: a Ressurreição. 

 

Texto publicado originalmente no Delito de Opinião.

 

Memória

Alexandre Guerra, 21.08.15

 

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 Entrada do campo de concentração Auschwitz I com a tristemente célebre frase forjada em metal: "O trabalho liberta"

 

Quando Steven Spielberg realizou o filme A Lista de Schindler, em 1993, estava a prestar uma homenagem emotiva aos seis milhões de judeus que perderam a vida no Holocausto (este número tem sido motivo de acesa discussão entre historiadores), mas também estava a despertar consciências (ou a relembrá-las) para uma realidade específica daquele genocídio, que se viveu nos campos de concentração de Auschwitz (eram três), no sul da Polónia. As célebres imagens recriadas por Spielberg, também ele judeu, em que se vêem comboios compostos por vagões apinhados de judeus a chegarem a Auschwitz II-Birkenau, veio relançar o interesse do público por aqueles acontecimentos dramáticos da História recente da Humanidade.

 

O campo de Auschwitz II-Birkenau, que ficou genericamente conhecido por Auschwitz, o campo de extermínio, era o maior e o único que tinha acesso ferroviário, no entanto, havia mais dois campos, o Auschwitz I e o Auschwitz III - Monowitz. Em Birkenau terão sido mortos cerca de um milhão de judeus e ciganos (também aqui não há consenso quanto ao número), embora, tenha sido no primeiro campo que começaram as experiências de extermínio numa câmara de gás construída propositadamente para o efeito, com o respectivo crematório anexado.

 

Sensivelmente três anos após a libertação dos campos de Auschwitz, a 27 de Janeiro de 1945, as autoridades polacas decidiram fazer um museu e um memorial de homenagem às vítimas, que engloba Auschwitz I e Birkenau e, por isso, é denominado de Auschwitz-Birkenau. Este complexo foi considerado Património Cultural da Humanidade pela UNESCO, sendo que em Birkenau houve maior dificuldade em restaurar os edifícios originais (devido aos materiais de que eram feitos) do que no complexo de Auschwitz I (ambos estão separados por apenas 3 km) que, para quem já teve o privilégio de visitar, apresenta um bom, mas arrepiante, estado de conservação. 

 

Ao cruzar-se o portão de entrada de Auschwitz I (onde a dimensão da tragédia não foi tão massiva, estimando-se que ali tenham sido exterminados 60 mil judeus) tem-se sobre a cabeça a célebre frase forjada a metal: "Arbeit macht frei" ("O trabalho liberta"). Lá dentro, o visitante é confrontado com uma realidade física impressionante, onde tudo parece estar como era dantes. Aliás, fazendo-se uma comparação do que se vê hoje em dia com os registos fotográficos da época, percebe-se como Auschwitz I mantém praticamente intacto o seu espaço. O Muro da Morte onde eram feitos os fuzilamentos, as celas do Bloco 11, o Bloco 10 onde se faziam as experiências médicas, tudo está lá, igual. Ainda mais impressionante é visitar a única câmara de gás existente naquele campo, que foi a primeira a ser construída a título experimental. Birkenau viria depois a acentuar o extermínio dos judeus com as outras câmaras (em Birkenau restam apenas algumas ruínas).

 

No que diz respeito à preservação da memória histórica das milhares de pessoas que ali pereceram nas mãos do regime nazi, nada é tão chocante como entrar numa sala de um dos blocos de Auschwtiz preparada para o efeito museológico e ver uma vitrine com cerca de 30 metros cheia até cima de cabelo humano, cortado aos prisioneiros antes de irem para a câmara de gás. Noutro espaço pode-se ver ainda pertences pessoais, como roupa, óculos e outro tipo de objectos e utensílios. Muito perturbador. 

 

Embora Auschwitz I não tenha tido a dimensão trágica de Auschwitz II-Birkenau, como objecto histórico é provável que ofereça uma perspectiva mais cruel e realista do que aconteceu, atendendo ao seu estado de conservação é à forma como está organizado em termos museológicos. Por outro lado, Birkenau oferece aquela vista aterradora que Spielberg projectou no cinema, do caminho de ferro a entrar directamente nas portas daquele campo, e imagina-se o que terá sido aqueles comboios a conduzir milhares de pessoas literalmente para a morte. Por isso mesmo, os responsáveis do Memorial e Museu Auschwitz-Birkenau aconselham que os visitantes conheçam os dois campos para melhor compreenderem a dimensão de toda a tragédia.

 

Faz por estes dias 20 anos que visitei Auschwitz I, num dia cinzento, que mais parecia de Outono. No entanto, estava nas minhas férias de Verão, ainda jovem, prestes a entrar no curso de Relações Internacionais, movido pela paixão que me suscitava (e suscita) essa disciplina. Apesar de chegar àquele local já com algum conhecimento sobre as atrocidades ali cometidas, percebi de imediato que nada é comparável ao exercício empírico na reconstrução dos factos in loco. Uma experiência enriquecedora e sobretudo inesquecível.

 

Jezabel, pura maldade coberta por um manto de sedução

Alexandre Guerra, 15.05.12

 

 

O profeta Elias confronta a sedutora e maléfica Jezabel

 

Num dos textos anteriores, a propósito da problemática dos judeus se sentirem historicamente perseguidos, o Diplomata referiu que seria “interessante recuar ao século IX a.C para se falar um pouco de Jezabel, uma mulher que tinha tanto de beleza e de sedução como de perversidade e de malvadez”.

 

Tida como a vilã das vilãs de todas as mulheres da Bíblia, a infame das infames, Jezabel era pura maldade coberta por um manto de beleza, que não se coibiu de recorrer a todos os meios para perseguir e eliminar todos aqueles que a desafiaram, nomeadamente, os judeus.   

 

Princesa fenícia que casou com Acab, rei de Israel, no século IX a.C., Jezabel não demorou muito tempo para lançar uma campanha de terror sobre os seus súbditos que, a pretexto de impor o poder do monarca, tinha como principal objectivo a destruição do culto monoteísta dos judeus e a sua substituição pela prática religiosa fenícia, assente na adoração de diversas divindades unidas numa espécie de religião chamada Baal.

 

À semelhança dos judeus, também Jezabel vivia intensamente a religião, no entanto, não estava disposta a permitir que os dois credos convivessem no reino de Israel. Embora Acab tenha cedido à sua mulher na construção de um templo Baal no centro da cidade Samaria, Jezabel não se contentou.

 

Da Fenícia mandou vir sacerdotes e profetas e exigiu ao seu marido que impusesse a Baal como religião oficial do reino de Israel. Acab, fortemente influenciado por Jezabel, cedeu ao poder maléfico da mulher e permitiu que se iniciasse uma campanha de extermínio a centenas de sacerdotes judeus.

 

É muito provável que este seja o primeiro exemplo de extermínio sistemático contra o povo judeu ordenado pelo seu próprio Estado.

 

A resistência judaica surgiu na figura do profeta Elias, que poderia ser visto como um ortodoxo. No confronto bíblico entre Elias e Jezabel, Yahewh (Jeová), o deus dos judeus, terá manifestado, através de um fogo intenso enviado dos céus, a sua fúria contra a mulher de Acab.

 

Receosa, Jezabel recorreu mais uma vez aos seus dotes de manipulação e exigiu ao rei que ordenasse a sentença de morte de Elias. Este fugiu para o monte Sinai.

 

Os anos passaram e Acab morreu, assim como o seu filho mais velho, Acazias. Jezabel passou a governar através do seu filho mais novo, Jorão. O reino de terror tinha continuado, mas a revolta judaica estava em curso, desta vez feita por Eliseu, sucessor de Elias.

 

Num claro desafio ao poder de Jezabel, Eliseu coroou Jeú, comandante das forças de Jorão. Este viria a ser morto com uma flecha no coração disparada por Jeú.

 

Porém, faltava Jezabel que, aos olhos de Jeú, já tinha encontro marcado com a morte. O recém empossado rei dirigiu-se ao palácio real de Jezreel para a vingança mortal.

 

Jezabel, sabendo da vinda de Jeú e confiante na sua beleza fatal, começou a arranjar-se, penteou o cabelo de forma sedutora, aplicou pó negro nas pálpebras, com o intuito de seduzir o assassino do seu filho. Mas Jeú, que há muito sabia das capacidades de Jezabel, chegou ao palácio e pediu aos eunucos que a atirassem pela janela.

 

De forma violenta, o corpo de Jezabel caiu no chão e conta a Bíblia que o seu sangue salpicou as paredes e os cavalos que estavam perto. Os cães devoraram o seu corpo, ficando apenas o crânio, as mãos e os pés.

 

A mulher fatal tinha assim um fim horrendo, aquela que terá sido a responsável pela primeira perseguição de extermínio ao povo judeu.

 

Massada, uma tragédia que alimenta a consciência colectiva do povo judeu

Alexandre Guerra, 13.05.12

 

Fortaleza construída pelo Rei Herodes, por volta dos anos 30 a.C, no monte Massada, nas margens do Mar Morto

 

Na sua consciência colectiva os judeus sentem-se um povo historicamente “perseguido”, que em vários momentos da sua história foi violentamente reprimido, muitas das vezes às ordens do próprio Estado ou do poder instituído onde se inseriam.

 

Além do regime do III Reich, não há literatura hebraica que não lembre o destino trágico dos judeus que se tentaram revoltar contra o Império Romano a partir do ano 66, com os soldados de Tito a destruírem Jerusalém que, segundo o historiador Flávio Josefo, terá provocado a morte de milhares de hebreus, tendo outros tantos sido capturados e vendidos como escravos.

 

O último bastião da resistência judaica acabaria por cair nas mãos dos romanos, quando tomaram de assalto a Fortaleza de Massada, em 73. No entanto, quando conseguiram irromper dentro das suas muralhas, após três anos de tentativas infrutíferas, não encontraram qualquer judeu, pois os cerca de 1000 homens, mulheres e crianças que lá resistiram preferiram suicidar-se do que serem capturados e escravizados.   

 

Este célebre acontecimento de Massada acabaria por marcar o início da diáspora do povo judaico e tornar-se-ia um dos principais símbolos da sua determinação na defesa da Terra Santa contra outros povos, nomeadamente, os palestinianos.

 

Mas séculos antes deste acontecimento trágico, houve pelo menos um outro, menos falado, mas igualmente sangrento para os judeus.

 

E por isso, talvez seja interessante recuar ao século 9 a.C para se falar um pouco de Jezabel, uma mulher que tinha tanto de beleza e de sedução como de perversidade e de malvadez. Mas este assunto fica para o próximo texto.