Marie Colvin em filme biográfico
Marie Colvin foi uma das grandes correspondentes de guerra. Procurou informar o mundo sobre os seus horrores. Pagou com a vida essa dedicação à verdade.
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Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais
Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais
Marie Colvin foi uma das grandes correspondentes de guerra. Procurou informar o mundo sobre os seus horrores. Pagou com a vida essa dedicação à verdade.
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O jornalismo confronta-se com novos fenómenos de erosão que o empurram por caminhos tortuosos. Os cidadãos das sociedades livres e democráticas, com menos tempo e paciência para se dedicaram a grandes exercícios de leitura jornalística e reflexão, vão encontrando novos focos de “distracção”, inspirando-se em fontes pouco credíveis para construir as suas percepções sobre quem os governa e administra a polis. Aos preconceitos e ódios, inerentes à própria natureza humana, junta-se a instrumentalização dos títulos noticiosos enviesados que se propagam nas redes sociais – sem que alguém tenha uma verdadeira preocupação de ler o seu conteúdo –, os tweets incendiários, os posts populistas e demagógicos, as imagens adulteradas e as tão badaladas fake news. Tudo isto ajuda a sedimentar essas percepções nefastas que se vão metamorfoseando em falsas realidades e narrativas alternativas, onde tudo vale (ou nada vale). Cada qual constrói uma espécie de play list de soundbites de acordo com as suas crenças e convicções.
A comunicação é hoje um processo perverso, em que uma evidência objectiva, como dois mais dois serem quatro, se tornou num exercício criativo, dando lugar a inúmeras “realidades” fantasiosas, tantas aquelas em que cada um quer acreditar. No fundo, é uma questão de crença e não de aceitação da realidade como ela, efectivamente, é. Se antigamente as notícias eram referenciais de verdade, hoje, aos olhos das pessoas, o jornalismo perdeu muita da força que tinha para impor na comunidade a versão impoluta dos factos e acontecimentos.
Na visão mais pessimista, o jornalismo deixou de ter capacidade para se sobrepor ao ruído das “redes”, porque, infelizmente, e devido a vários factores, deixou-se fragilizar, descredibilizar e, especialmente em Portugal, acantonou-se num círculo vicioso de elites e gabinetes. Passe o exagero, diz-nos a experiência empírica mais recente que o jornalismo deixou de ter o poder para fazer cair ministros quando surge a “cacha” com evidências cabais de uma violação do “contrato social” firmado entre o governante e o governado. E isso é muito preocupante.
O definhar do jornalismo não pode ser única e exclusivamente imputado às contingências económicas e ao desinteresse das chamadas “massas”, por terem deixado de consumir hard news provenientes de fontes válidas. Há inúmeras responsabilidades que são partilhadas pelos profissionais do jornalismo: seja quando são os próprios meios de informação tradicionais a importar para as suas agendas e editorias o tom displicente da “conversa de café” e o registo incendiário das redes sociais; seja quando são os comentadores e opinion makers, que têm responsabilidades cívicas muito importantes junto da opinião pública, a ignorarem a natureza intrínseca das coisas, para porem em prática agendas próprias ou para assumirem o papel de activistas ou pregadores da moral.
Paradoxalmente, nunca se consumiram tantos conteúdos como agora, mas sabemos que os meios noticiosos mainstream vão perdendo o seu público, a sua influência junto da comunidade. A cada dia que passa fica-se com a sensação de que o jornalismo vai morrendo um pouco. Vai abdicando dos seus princípios e valores, vai violando o seu código deontológico e vai delapidando o seu capital de instituição de referência na sociedade.
Como em todas as profissões, há bons e maus jornalistas, há uns que se deixaram cegar pela arrogância dos tempos gloriosos, outros que se acomodaram na secretária, há ainda outros que se esqueceram do que é ser jornalista e foram consumidos pelo seu ego. Porém, a maioria dos jornalistas, de forma séria e profissional, fazem o seu trabalho em prol do bem comum, muitas vezes enfrentando inúmeras contrariedades, algumas delas vindas das suas próprias estruturas empregadoras.
Nutro o maior respeito e gosto pelo jornalismo, já que cresci nesse ambiente, ainda no tempo das máquinas de escrever. Lembro-me de quando era criança, nos anos 80, depois de o jornal estar “fechado” madrugada adentro, ir com o meu pai, jornalista desportivo desde sempre, ver se estava tudo bem com a impressão nas rotativas da gráfica que havia em frente à Escola de Música do Conservatório Nacional, no Bairro Alto. Já o meu avô tinha sido tipógrafo no Diário Popular (na verdade, linotipista). Como não podia deixar de ser, após ter concluído a universidade, comecei a minha carreira profissional precisamente como jornalista na secção de política internacional, onde estive durante alguns anos, tendo depois transitado para a área da consultoria de comunicação, na qual me mantenho desde então.
Por interesse pessoal, mas também por motivos profissionais, gosto de acompanhar os debates que se fazem lá fora (cá dentro, menos) sobre o futuro do jornalismo. Contacto quase diariamente com jornalistas e, sempre que se proporciona, gosto de trocar ideias sobre o estado da profissão em Portugal e no mundo. Na generalidade dos casos, percebe-se que existe, da parte dos seus profissionais, a consciência dos problemas e da deriva editorial que se verifica genericamente nos meios de comunicação social. Constata-se que existe a vontade de encontrar um caminho sólido, que devolva a essência primária ao jornalismo, mas ao mesmo tempo, sente-se uma espécie de resignação perante uma tendência que parece imparável.
Sobre o jornalismo pairam ameaças, incertezas e indefinições, não apenas a propósito do modelo de sustentabilidade económica, mas no âmbito da sua própria essência e papel fulcral na defesa da democracia. Ora, um exercício pleno de cidadania deve estar assente nos direitos políticos, sociais e cívicos de cada cidadão, o que pressupõe duas coisas: conhecimento da realidade que nos rodeia e escrutínio a quem exerce o poder.
Que ninguém se iluda, o declínio do jornalismo é também o declínio da cidadania e da democracia. É por esta razão que, na minha opinião, são indignos da confiança do Povo aqueles que vêem no jornalismo uma ameaça aos seus projectos de poder e de “governance”. Além disso, são tolos e irresponsáveis os que acham que o jornalismo pode ser substituído pelas “verdades absolutas” que emanam das redes sociais. É importante nunca esquecer que uma sociedade democraticamente saudável e forte exige como requisito obrigatório um jornalismo virtuoso e de referência.
Texto publicado hoje no Público.
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Uma conversa recente fez-me recordar uma polémica antiga (embora recorrente de tempos a tempos para quem se interessa por estas coisas) sobre a problemática do “jornalismo de causas”. Lembro-me que há uns bons anos a então editora de Internacional do Público, Margarida Santos Lopes, pessoa com quem tive o privilégio de trabalhar sob sua orientação naquela mesma secção do jornal e que, seguramente, é das jornalistas portuguesas mais conhecedoras da realidade do Médio Oriente, em particular do conflito israelo-palestiniano, se envolveu num debate de ideias com Pacheco Pereira a quem, goste-se ou não, concorde-se ou não com as suas opiniões, não se pode negar a sua capacidade intelectual de pensar. A discussão, que teve como pretexto mais imediato as dinâmicas noticiosas registadas em vários países associadas ao polémico “massacre de Jenin” ou à ideia distorcida de uma “França contra Le Pen (pai)”, deu-se nas páginas do Público em Abril de 2002, com Pacheco Pereira a denunciar aquilo que considerava ser um “jornalismo de causas”, no qual os factos e a função primeira do jornalismo, de relatar os acontecimentos com objectividade e equidistância certas, eram preteridos em função das convicções pessoais, morais, sociais e políticas dos jornalistas.
Pacheco Pereira lamentava que as “causas” se tivessem sobreposto aos “factos”, conduzindo, muitas vezes, a omissões deliberadas ou a edições mais “convenientes” por parte dos jornalistas, “orientados” para um determinado “resultado” (expressões minhas). Nada de novo, na verdade, e nada que não tenha continuado a verificar-se em Portugal ao longo dos anos, sendo, aliás, uma prática cada vez mais comum. Basta olhar para o ano que agora terminou e analisar com seriedade algumas dinâmicas noticiosas e facilmente se constatam todos esses males, nalguns casos de forma escandalosa, sem que haja qualquer escrutínio ou consequência. Já na altura, Pacheco Pereira explicava o fenómeno: "Há muitas razões para explicar o domínio do 'jornalismo de causas' em Portugal. Ele é favorecido pela relativa homogeneidade política das redacções - muito mais à esquerda do que a sociedade portuguesa -, por uma estrutura de controlo de qualidade, de "edição", muito frágil ou inexistente, pela falta de cultura geral necessária para escrever sobre política, falta de noções de história e de filosofia política básicas. Mas é acima de tudo justificado pela vontade, que se verifica ser muito mais motivadora do que a de se ser, pura e simplesmente, bom jornalista, de substituir as regras do jornalismo pela intervenção política."
De todas as razões acima descritas por Pacheco Pereira, prefiro centrar-me na última questão, a de que o jornalista se destitui da sua missão a partir do momento em que “atropela” as regras e conceitos básicos do jornalismo, muitas vezes para contar a “história” que lhe dá mais “jeito” ou, eventualmente, a que lhe dá mais audiência. Aqui, nem sequer se trata de ser bom ou mau jornalista, trata-se apenas de ser jornalista ou não. Pode apresentar-se como tal e achar que os seus trabalhos são reportagens ou notícias, mas, efectivamente, não são mais do que conteúdos, seguramente não jornalísticos, porque, para isso, o crivo tinha que ser outro.
Por vezes, as emoções e os interesses subjectivos são de tal maneira gritantes que aos “jornalistas” em causa só lhes falta colocarem a capa de super-heróis para irem em defesa dos fracos e oprimidos. E quando o fazem, fazem-no sempre de acordo com a sua “lente” ou com a sua visão parcial de um determinado assunto. Ora, por mais meritória que essa missão até possa ser, o jornalismo não é isso. O jornalismo tem outro propósito, que é o de informar as pessoas e colocá-las, o mais próximo possível, da realidade de um determinado assunto. Um jornalista não deve escolher qualquer lado da barricada, não deve tomar partidos, não deve ceder perante preconceitos ou ideias pré-concebidas... Não deve ser o super-herói, não deve ser parte da história que está a relatar! Acima de tudo, o compromisso do jornalista é para com a verdade factual, para com os leitores, os telespectadores ou os ouvintes, no dever de lhes fornecer informação devidamente validada, com todos os ângulos de uma problemática, e não apenas uma visão parcial, para que eles, sim, possam fazer os juízos que bem entenderem.
Os defensores e mobilizadores de causas devem existir e são fundamentais em democracia na construção de uma sociedade mais justa e solidária, mas não devem ser protagonizados por jornalistas quando estão no exercício da sua profissão. São missões e papéis diferentes, mas o problema é que em Portugal há jornalistas que deixaram de perceber essa diferença, embarcando em causas, por vezes de forma exacerbada e cega, esquecendo-se de que estão a prestar um mau serviço ao jornalismo.
Que 2018 traga bom jornalismo, porque, como ainda esta Terça-feira escrevia o filósofo político Daniel Innerarity no El País, para se poder "reinventar" um país ou fazer alguma mudança no mundo, acima de tudo, é preciso saber interpretar bem a realidade.
Texto publicado originalmente no Delito de Opinião
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Através da lente de João Silva, vê-se Ken Oosterbroek, morto durante os incidentes de Tokosa, África do Sul, a ser carregado pelo seu colega Gary Bernard/18 de Abril de 1994
Durante algum tempo, quando era mais jovem e iniciava o meu percurso universitário no curso de Relações Internacionais, tive um recorte de jornal com esta fotografia colado na parede do meu quarto. A imagem abria uma janela para realidades dramáticas, mas ao mesmo tempo alimentava-me o sonho que um dia ambicionava concretizar. Muito por inspiração do meu pai, poucas dúvidas tinha na altura de que iria ser jornalista. Mas ao contrário dele, a minha paixão puxava-me para a área do jornalismo de internacional (o que veio a acontecer). A política nacional pouco me interessava, o que eu queria mesmo era acompanhar as grandes questões do mundo e lançar-me ao desafio supremo: ser repórter de guerra. No âmbito da política internacional, ainda tive o privilégio de fazer umas coisas engraçadas, para lá do tradicional jornalismo de takes da Reuters, da AFP ou da AP, e quanto a reportagem de guerra, tive a oportunidade de passar o primeiro verão explosivo da intifada de al-Aqsa na Palestina e Faixa de Gaza (jornalistas portugueses nem vê-los). Rebentavam bombas todas as semanas em Telavive e Jerusalém e os “territórios ocupados” viviam a ferro e fogo, sob o cerco das Forças de Segurança Israelitas. Voltei lá no ano seguinte por uns dias, quer a Gaza, quer a Ramalhah e, por coincidência, apanhei o bombardeamento à Mukata de Yasser Arafat.
Voltando à fotografia, ela lembrava-me também que os verdadeiros jornalistas de guerra (e não aqueles que dizem que são) podem às vezes ser eles as próprias vítimas das “histórias” que cobrem, mas mesmo assim sem nunca perderem o seu sentido profissional e, sobretudo, de missão. Os lamentos e os choros ficam para depois. Mas afinal o que se vê nesta fotografia? Vê-se o fotojornalista Ken Oosterbroek a ser carregado pelo seu colega Gary Bernard, depois de ter sido morto num fogo cruzado entre elementos da força de manutenção de paz e apoiantes do ANC na cidade sul-africana de Tokoza, a 18 de Abril de 1994, poucos dias antes das primeiras eleições livres pós-Aparheid. Só que esta imagem, de certa maneira icónica pelo que representa, só é possível vê-la porque naquele momento lá estava João Silva, fotojornalista luso-sul-africano, que, perante a morte do seu amigo, manteve o sangue-frio e, refugiando-se atrás da lente, fez aquilo que tinha que fazer. O seu trabalho.
Morria assim um dos quatro elementos do famoso Bang Bang Club que, além de Silva e de Oosterbroek, contava ainda com Kevin Carter e Greg Marinovich. Autênticos companheiros, destemidos repórteres de guerra que durante anos trouxeram ao mundo os horrores dos conflitos através das suas lentes. Os quatros fotojornalistas, todos eles premiados, cobriram juntos a violência na África do Sul durante vários anos até 1994, ano das eleições que deram a vitória a Nelson Mandela e que puseram fim ao regime de Apartheid.
A violência e a pressão psicológica a que estiveram expostos, ao longo de quase toda uma vida profissional, e os acontecimentos dramáticos de Tokoza, acabaram por levar ao suicídio de Carter, logo em Julho de 1994. Mais tarde, em 2000, Silva e Marinovich lançaram o livro The Bang Bang Club: Snapshots from a Hidden War, no qual os dois fotojornalistas espelharam as suas experiências, angústias e medos. Mas o sofrimento no seio do "clube" continuou, tendo João Silva, durante muitos anos fotojornalista no New York Times, sofrido um grave acidente em Outubro de 2010, ao pisar uma mina durante uma patrulha de soldados americanos em Kandahar. As suas duas pernas abaixo do joelho ficaram estilhaçadas, mas a sua máquina continuou a disparar. Com um enorme espírito de sacrifício e a ajuda de próteses fornecidas pelo Exército americano, João Silva recuperou, voltou ao activo e até o próprio Barack Obama fez questão de o receber na Sala Oval.
Perguntará o leitor a que propósito escrevo este texto. Escrevo-o porque, acima de tudo, considero que o (bom) jornalismo, seja ele de guerra, de sociedade ou de cultura, é essencial para termos uma sociedade livre e democrática. O que acima escrevi contempla uma ideia genérica de princípios concretos que devem nortear o jornalista. Sacrifício, coragem, inteligência, humildade, camaradagem, bom senso, princípios que se deveriam aplicar no quotidiano de qualquer jornalista, seja aquele que esteja a tentar entrar em Raqqa, como aquele que faz a cobertura de um assalto numa bomba de gasolina em Odivelas ou aquele que acompanha um comício de uma qualquer campanha eleitoral. São princípios orientadores de uma profissão que se quer sublime, mas que, infelizmente, em Portugal, chegou ao grau zero. É um exercício penoso e lamentável, para quem, como eu, e por força das circunstâncias profissionais, se vê obrigado a acompanhar quase ao minuto tudo o que se vai dizendo ou escrevendo nos órgãos de comunicação social, tudo o que os “jornalistas” vão twittando ou postando no Facebook, perdendo a compostura e a noção de respeito pela sua própria profissão, toda a arrogância e vaidade camufladas de pseudo-sabedoria. Mas é nestes momentos que gosto de voltar a olhar para a fotografia de João Silva e relembrar a história do Bang Bang Club para continuar a acreditar que ainda há jornalistas dignos desse privilégio.
Publicado originalmente no Delito de Opinião.
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Através da lente de João Silva, vê-se Ken Oosterbroek, morto durante os incidentes de Tokosa, África do Sul, a ser carregado pelo seu colega Gary Bernard/18 de Abril de 1994
Durante algum tempo, quando era mais jovem e iniciava o meu percurso universitário no curso de Relações Internacionais, tive um recorte de jornal com esta fotografia colado na parede do meu quarto. A imagem abria uma janela para realidades dramáticas, mas ao mesmo tempo alimentava-me o sonho que um dia ambicionava concretizar. Muito por inspiração do meu pai, poucas dúvidas tinha na altura de que iria ser jornalista. Mas ao contrário dele, a minha paixão puxava-me para a área internacional (o que veio a acontecer). A política nacional pouco me interessava, o que eu queria mesmo era acompanhar as grandes questões do mundo e lançar-me ao desafio supremo: ser repórter de guerra. No âmbito da política internacional, ainda tive o privilégio de fazer umas coisas engraçadas, para lá do tradicional jornalismo de takes da Reuters, da AFP ou da AP, e quanto a reportagem de guerra, tive a oportunidade de passar o primeiro verão explosivo da intifada de al-Aqsa na Palestina e Faixa de Gaza (jornalistas portugueses nem vê-los). Rebentavam bombas todas as semanas em Telavive e Jerusalém e os “territórios ocupados” viviam a ferro e fogo, sob o cerco das Forças de Segurança Israelitas. Voltei lá no ano seguinte por uns dias, quer a Gaza, quer a Ramalhah e, por coincidência, apanhei o bombardeamento à Mukata de Yasser Arafat.
Voltando à fotografia, ela lembrava-me também que os verdadeiros jornalistas de guerra (e não aqueles que dizem que são) podem às vezes ser eles as próprias vítimas das “histórias” que cobrem, mas mesmo assim sem nunca perderem o seu sentido profissional e, sobretudo, de missão. Os lamentos e os choros ficam para depois. Mas afinal o que se vê nesta fotografia? Vê-se o fotojornalista Ken Oosterbroek a ser carregado pelo seu colega Gary Bernard, depois de ter sido morto num fogo cruzado entre elementos da força de manutenção de paz e apoiantes do ANC na cidade sul-africana de Tokoza, a 18 de Abril de 1994, poucos dias antes das primeiras eleições livres pós-Aparheid. Só que esta imagem, de certa maneira icónica pelo que representa, só é possível vê-la porque naquele momento lá estava João Silva, fotojornalista luso-sul-africano, que, perante a morte do seu amigo, manteve o sangue-frio e, refugiando-se atrás da lente, fez aquilo que tinha que fazer. O seu trabalho.
Morria assim um dos quatro elementos do famoso Bang Bang Club que, além de Silva e de Oosterbroek, contava ainda com Kevin Carter e Greg Marinovich. Autênticos companheiros, destemidos repórteres de guerra que durante anos trouxeram ao mundo os horrores dos conflitos através das suas lentes. Os quatros fotojornalistas, todos eles premiados, cobriram juntos a violência na África do Sul durante vários anos até 1994, ano das eleições que deram a vitória a Nelson Mandela e que puseram fim ao regime de Apartheid.
A violência e a pressão psicológica a que estiveram expostos, ao longo de quase toda uma vida profissional, e os acontecimentos dramáticos de Tokoza, acabaram por levar ao suicídio de Carter, logo em Julho de 1994. Mais tarde, em 2000, Silva e Marinovich lançaram o livro The Bang Bang Club: Snapshots from a Hidden War, no qual os dois fotojornalistas espelharam as suas experiências, angústias e medos. Mas o sofrimento no seio do "clube" continuou, tendo João Silva, durante muitos anos fotojornalista no New York Times, sofrido um grave acidente em Outubro de 2010, ao pisar uma mina durante uma patrulha de soldados americanos em Kandahar. As suas duas pernas abaixo do joelho ficaram estilhaçadas, mas a sua máquina continuou a disparar. Com um enorme espírito de sacrifício e a ajuda de próteses fornecidas pelo Exército americano, João Silva recuperou, voltou ao activo e até o próprio Barack Obama fez questão de o receber na Sala Oval.
Perguntará o leitor a que propósito escrevo este texto. Escrevo-o porque, acima de tudo, considero que o (bom) jornalismo, seja ele de guerra, de sociedade ou de cultura, é essencial para termos uma sociedade livre e democrática. O que acima escrevi contempla uma ideia genérica de princípios concretos que devem nortear o jornalista. Sacrifício, coragem, inteligência, humildade, camaradagem, bom senso, princípios que se deveriam aplicar no quotidiano de qualquer jornalista, seja aquele que esteja a tentar entrar em Raqqa, como aquele que faz a cobertura de um assalto numa bomba de gasolina em Odivelas ou aquele que acompanha um comício de uma qualquer campanha eleitoral. São princípios orientadores de uma profissão que se quer sublime, mas que, infelizmente, em Portugal, chegou ao grau zero. É um exercício penoso e lamentável, para quem, como eu, e por força das circunstâncias profissionais, se vê obrigado a acompanhar quase ao minuto tudo o que se vai dizendo ou escrevendo nos órgãos de comunicação social, tudo o que os “jornalistas” vão twittando ou postando no Facebook, perdendo a compostura e a noção de respeito pela sua própria profissão, toda a arrogância e vaidade camufladas de pseudo-sabedoria. Mas é nestes momentos que gosto de voltar a olhar para a fotografia de João Silva e relembrar a história do Bang Bang Club para continuar a acreditar que ainda há jornalistas dignos desse privilégio.
Publicado originalmente no Delito de Opinião.
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“É a maior experiência de Media e Comunicação da Europa.” É desta forma que o News Museum se apresenta no seu site e posso garantir, porque tive o privilégio de o visitar antes de ser inaugurado na noite de 24 para 25, que não é exagero. Aliás, conta quem sabe, este novo espaço dedicado à história do jornalismo e comunicação é bastante superior àquele que já existe há alguns anos em Washington. Na verdade, da parte dos responsáveis do News Museum, houve um cuidado em inovar e apresentar algo diferenciado ao que já existia. O resultado é simplesmente surpreendente, numa mistura muito bem conseguida entre o conteúdo e a forma.
Este projecto teve o contributo de vários profissionais da comunicação, nomeadamente de grandes referências do jornalismo em Portugal, de meios de comunicação social, e envolveu, seguramente, um investimento de muitos milhares de euros e o recurso a “know how” e software desenvolvido de raiz por algumas das empresas do grupo LPM Comunicação.
O News Museum representa um marco importante em Portugal a vários níveis. Não apenas pelo projecto em si, que é simplesmente obrigatório para quem gosta de jornalismo e comunicação e para quem cultiva o conhecimento da história e da sociedade contemporâneas, mas também porque materializa a visão daquilo que, como eu falava com alguém durante a visita, é um projecto inédito de gestão de reputação e notoriedade. Algo a que em Portugal não estamos habituados a ver por parte do sector privado, já que, normalmente, tudo o que é criado em termos de oferta do conhecimento à sociedade ou é feito à “sombra” do Estado ou é desenvolvido por empresas que durante décadas foram monopolistas e que hoje se apresentam como “privadas”, e quase que têm uma obrigação moral de servir a comunidade para além dos serviços que “cobram”.
O News Museum não surge de qualquer obrigação empresarial, mas sim de uma espécie de filantropia misturada com um legítimo interesse próprio. Embora tenha sido concretizado por uma equipa específica, é a Luís Paixão Martins que se deve a sua criação, o mesmo que há cerca de trinta anos trouxe para Portugal conceitos e metodologias de comunicação insitutucional para o mundo económico, empresarial e, mais tarde, político. A verdade é que houve um antes e um depois do LPM no que à disciplina das “public relations” em Portugal diz respeito. Tornou-se num dos homens mais relevantes da comunicação institucional em Portugal, se não o mais importante, construindo uma reputação sólida e uma empresa de sucesso, e hoje dá corpo àquilo que é, sobretudo, um monumento vivo e interactivo à paixão do jornalismo.
Publicado originalmente no Delito de Opinião.
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