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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

Capítulo VI

Alexandre Guerra, 26.09.18

 

No dia 17 de Junho de 2017, na região de Pedrógão, algo aconteceu de dantesco e em poucas horas as chamas do Inferno trouxeram a morte a 65 pessoas, das quais 30 morreram carbonizadas na EN 236-1. Foi o dia em que o País se confrontou com a sua impotência e incompetência, onde as estruturas do Estado falharam nas suas mais elementares funções. No fundo, todos nós, enquanto sociedade, falhámos na defesa dos nossos concidadãos.

 

Os fenómenos e as circunstâncias que rodearam tal tragédia tinham (e ainda têm) que ser compreendidas e explicadas e, como tal, coube ao especialista Domingos Xavier Viegas, professor catedrático de Engenharia Mecânica da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra, a responsabilidade de elaborar um relatório técnico sobre o que aconteceu naquele trágico dia. Esse documento, que será fundamental no âmbito do processo judicial em curso, foi entregue ao Governo a 15 de Outubro, mas houve uma parte do estudo que nunca foi divulgada ao público, o capítulo VI, por conter testemunhos dos sobreviventes e considerações feitas pelos técnicos que fizeram a investigação.

 

Compreende-se que, na altura, se quisesse evitar a exposição das famílias das vítimas e dos sobreviventes, que tanto já tinham sofrido, no entanto, aquilo que agora nos é dado a conhecer pelo jornal i, com a colaboração do próprio Xavier Viegas, através da divulgação do capítulo VI, tem uma tal dimensão trágica e humana que, por um lado, alimenta a revolta interior pelo que aconteceu, por outro, reforça a obrigação de cada um de nós, enquanto cidadão, ser cada vez mais exigente na defesa e protecção das nossas gentes e recursos.

 

Os textos publicados esta Terça e Quarta feiras no jornal i são de um realismo impressionante e mostram como homens, mulheres, idosos, famílias inteiras tomaram decisões de vida ou de morte em momentos de pânico, sem qualquer auxílio externo e totalmente entregues à sua sorte. Nos próximos dias serão divulgados mais partes desse capítulo VI que, no fundo, acaba também por ser o registo de um dos mais negros episódios da história do Portugal democrático.

 

Despender alguns minutos do nosso dia a ler estes relatos pessoais e dos técnicos não é apenas uma questão de informação, é também quase uma obrigação para com a memória de todos aqueles que perderam as suas vidas, para que possamos ajudar a construir um Estado que nunca mais deixe os seus ao abandono.   

 

Texto publicado originalmente no Delito de Opinião

 

Não, os políticos não estão a fazer tudo o que podem

Alexandre Guerra, 17.06.18

 

Um ano depois da tragédia de Pedrógão, que fez 66 mortos, quase todos carbonizados numa só estrada, e mais de 250 feridos, alguns deles com marcas no corpo e feridas psicológicas para o resto da vida, o Presidente da República disse este Domingo que "os responsáveis políticos estão a fazer o que podem". Daqui a uns meses, mais concretamente a 15 e 16 de Outubro, assinalar-se-á um ano sobre outra tragédia, que matou 50 pessoas e feriu mais de 70. Além dos milhares de hectares ardidos em vários concelhos da região centro e norte, foram destruídas 1500 casas, 500 empresas e o sustento de muitas famílias foi devastado. Provavelmente, quando chegar a altura, o Chefe de Estado voltará a sublinhar que os responsáveis políticos estão a fazer o que podem, no entanto, um Estado que veja "ameaçado" ou "atacado" o seu Território, o seu Povo ou o seu Governo, é um Estado que se vê ameaçado e atacado a si próprio, que vê ameaçada e atacada a sua soberania. E quando os seus líderes não afastam essas ameaças e repelem esses ataques, é porque estão a prestar um mau serviço à governança do bem comum.

 

As nossas terras continuam a ser o palco onde todas as atrocidades acontecem, perante a complacência do Estado. Os rios são invadidos cegamente com barragens e são contaminados por fábricas, os habitats naturais são destruídos sem complacência, o betão invade a costa nacional sem qualquer critério e continua-se a licenciar projectos urbanísticos em zonas que deveriam ser invioláveis. E mesmo nas pequenas coisas, as lideranças não têm a visão para implementarem medidas concretas que seriam condizentes com os seus inconsequentes discursos de perfil ambientalista (apenas para dar um micro exemplo, mas sintomático... Como é possível que em 2018 ainda permitam que circulem tuks tuks altamente poluentes no centro de Lisboa ou nas entranhas da Serra de Sintra???). Ou seja, no Estado e na sua cúpula de poder não se verifica qualquer mudança no paradigma da noção de Território sustentável.

 

É por isso que jamais posso concordar com a declaração proferida este Domingo por Marcelo Rebelo de Sousa em Pedrógão Pequeno. Não, os responsáveis políticos não estão a fazer tudo o que podem. Não o fazem há décadas, não o fizeram no ano passado, não o estão a fazer agora e não se perspectiva que o façam a curto e a médio prazo. Portugal, infelizmente, continuará a ver o seu território dilacerado.

 

O camponês da Ventosa

Alexandre Guerra, 17.10.17

 

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Foto de Adriano Miranda/Público

 

Não está a chorar, mas parece que já chorou. E muito. Talvez as lágrimas já se tenham evaporado com o calor infernal das chamas. O seu olhar nada espelha. A alma deve estar vazia… É o olhar de um homem devastado, não pela vida, porque estes são homens duros, habituados às agruras da terra, e muito menos pela Mãe Natureza, com quem deverá ter tido uma relação feliz de muitas décadas. Não, quem o prostrou fomos todos nós, enquanto sociedade, enquanto colectivo social, enquanto Estado, enquanto Nação, enquanto Governo. Fomos nós quem quebrou o espírito daquele camponês da Ventosa e o fez chorar.


A vida foi-lhe poupada pelo capricho cínico das chamas, mas sobre si abateu-se um céu dantesco, como que a lembrar ao camponês que de nada lhe serve a prece que parece estar a fazer, porque ninguém vem em seu auxílio. Está entregue ao seu triste destino, condenado a vaguear e a morrer, um dia, esquecido e sem nada. Até lá, vai sendo traído pelas memórias felizes dos tempos das lides nas suas terras, no trato dos animais, na sua casa, nas suas humildes posses que durante uma vida tentou juntar. Quanto mais a dor se vai instalando no espírito do camponês, mais nós, todos, vamos esquecendo que um dia aconteceram duas calamidades extraordinárias no mesmo Verão, que ceifaram mais de 100 vidas e destruíram literalmente parte de um país. Vamos esquecendo que, por acção ou omissão, acabámos por ser responsáveis pelo “duplo atentado” terrorista que auto-infligimos ao nosso país. E vamos contemporizando com todos aqueles que, pelas inerências das suas funções, mais obrigações têm na resposta de conforto e ajuda àqueles que mais sofreram com tudo o que se passou.

 

O olhar do camponês da Ventosa, que nos é trazido pela lente do Adriano Miranda no Público, atinge-nos no âmago dos nossos valores e princípios civilizacionais, porque nos lembra que, afinal, aquele Portugal que está na moda, aquele Portugal sofisticado e que é uma "estrela" internacional, é o mesmo Portugal que se deixou destruir, que deixou os seus cidadãos desprotegidos, morrerem barbaramente nas estradas, nas aldeias e vilas. E que vergonha tenho deste Portugal...

 

Publicado originalmente no Delito de Opinião.

 

Incêndios, uma questão de soberania nacional*

Alexandre Guerra, 19.06.17

 

Dizem os manuais de Ciência Política que os elementos constitutivos do Estado são três: Governo, Povo e Território. Este tríptico assume um estatuto quase divino a partir do momento em que a integridade e a inviolabilidade de cada elemento são essenciais para a manutenção da soberania de um Estado. Um Estado que veja ameaçado o seu Território, o seu Povo ou o seu Governo, é um Estado que se vê ameaçado a si próprio, que vê ameaçada a sua soberania. É verdade que as fronteiras da soberania têm revelado uma enorme elasticidade, levando a que os Estados redefinam historicamente os conceitos de interesse e de defesa nacional. No entanto, nos Estados ditos ocidentais, qualquer ameaça que recaia sobre um daqueles três elementos deve ser vista como contrária ao interesse nacional e um perigo para a defesa nacional.

 

Daqueles três elementos, talvez o do Povo e o do Governo tenham sido os mais imutáveis desde a antiguidade clássica. Na verdade, os seus conceitos pouco se alteraram e, como tal, também as suas ameaças. Já o conceito de Território tem sofrido várias mutações ao longo da história dos Estados. O Território enquanto mera delimitação geográfica já faz pouco sentido em países como Portugal, integrados em zonas geopolíticas estáveis e consolidadas. Ou seja, perspectivar a ameaça com base neste princípio é um exercício obsoleto.

 

Se durante muitos anos, décadas e até séculos, Portugal teve parte do seu dispositivo militar colocado no terreno em função da fronteira com Espanha, ora, hoje em dia, nada disso faria sentido. Mas isto não quer dizer que o Território tenha perdido peso no tal tríptico divino aqui referido. Pelo contrário. O conceito evoluiu à medida que as sociedades evoluíram. O Território deixou de ser um assunto de fronteiras. Hoje, o Território é, mais do que tudo, o património do País, a fonte de recursos naturais (minérios, água, petróleo, alimentos, madeira, entre outros).

 

Da mesma maneira que a violação física de uma fronteira de um País era imediatamente tida como uma ameaça à soberania nacional – tendo por isso os Estados adoptado mecanismos permanentes para fazer face a essa realidade –, hoje esse princípio aplica-se numa lógica diferente: o desvio de um curso de água, a destruição de culturas, a apropriação ilegal de recursos minerais (diamantes, petróleo, entre outros), o comércio ilegal de madeira, etc. Quanto mais vitais são aqueles recursos para os Estados, mais o interesse nacional está em jogo e, consequentemente, os respectivos mecanismos de prevenção, protecção e reacção.

 

Nem todos os países encaram o seu Território da mesma maneira nem o valorizam da mesma forma. Sobre essa matéria é lamentável que Portugal seja um triste exemplo, não valorizando qualquer das suas componentes. Em sentido contrário, encontram-se países como a Noruega, Israel, Egipto, Sudão, Etiópia, Brasil ou Serra Leoa (imagine-se) que, por razões diferentes, fizeram do seu território/recursos uma questão de segurança nacional. Um assunto de guerra se for caso disso. Isto não significa que as suas políticas na sua valorização e protecção sejam totalmente profícuas, mas revela uma abordagem do Estado mais actual e sensível àquilo que é a defesa da soberania nacional em termos territoriais. A Noruega vê a sua área florestal (cerca de 38 por cento do território) como um meio de sobrevivência económica e, como tal, tem políticas de preservação únicas no mundo. Israel protege os seus parcos recursos hídricos a todo o custo, com as forças de segurança israelitas (IDF) se for preciso. Também o Egipto, o Sudão ou a Somália não contemplam no que diz respeito à utilização das águas dos Nilos (azul e branco). O Brasil já há muito que assumiu a problemática da desflorestação como um assunto de superior interesse nacional, embora se trate de um combate muito difícil. E a Serra Leoa, um dos países mais pobres do mundo e devastado por uma guerra civil, conseguiu há uns anos implementar uma série de reformas para a protecção da indústria da extracção de diamantes, que tem um peso considerável no PIB do país.

 

Em Portugal, e com a questão das fronteiras há muito resolvida, a “defesa” do Território foi secundarizada. Deixou de ser um assunto de soberania. Hoje, as nossas terras são o palco onde todas as atrocidades acontecem, perante a complacência do Estado e do Povo. Os rios são invadidos cegamente com barragens, os habitats naturais são destruídos sem complacência, o betão invade a costa nacional sem qualquer critério e milhares de hectares ardem todos os anos sem que haja qualquer mudança no paradigma da noção de Território.

 

Os lamentos lá se vão ouvindo de ano para ano, elogiam-se os bombeiros voluntários, discutem-se os problemas de sempre, mas tudo fica na mesma. Imagine o leitor que um dia destes os espanhóis entravam por Portugal adentro e que os portugueses se limitavam a encolher os ombros. É um pouco o que acontece com a tragédia dos incêndios que todos os anos ameaça a soberania nacional e à qual ninguém dá a resposta adequada.

 

E que resposta seria essa? Poderia começar pela reconsideração e redefinição da ideia de Território ao abrigo do Conceito Estratégico de Defesa Nacional. A partir daí, seriam adoptados os mecanismos necessários para fazer face àquilo que seria considerado uma ameaça à segurança nacional. A seriedade e a veemência com que o assunto seria tratado em nada se assemelharia ao triste e incompetente espectáculo que se tem assistido sobretudo ao nível da prevenção dos incêndios. No rescaldo de cada tragédia, aquilo que os governantes vão dizendo e proclamando são apenas banalidades sem qualquer valorização da floresta portuguesa e que não perspectiva a curto prazo uma mudança de paradigma. Enquanto se espera, o território português vai sendo “atacado” ano após ano perante a passividade de todos.

 

O flagelo dos incêndios que neste momento assola Portugal é uma tragédia crónica que se repete quase todos os anos. As declarações de lamento vão-se sucedendo e os problemas vão sendo identificados teoricamente, a questão é que após a “época” de incêndios terminar, tudo cai no esquecimento e nada se efectiva no terreno. Para trás, Portugal volta a “perder” parte do seu território e recursos, ficando mais frágil enquanto Estado do sistema internacional. Portugal tem uma média anual de incêndios pouco normal, quando comparado com outros países, sobretudo se se constatar a relação entre a área ardida e o tamanho (reduzido) do país.

 

Desde há alguns anos que Adriano Moreira, nas suas inúmeras intervenções públicas, tem vindo a alertar os governantes e homens com responsabilidades de liderança em Portugal para a problemática da “exiguidade” do Estado. Na base desta preocupação está a deterioração constante dos vários factores de poder que sustentam a soberania e a “viabilidade” nacional. Factores, esses, que se materializam em diferentes realidades, tais como a extensão e a riqueza natural do território, a capacidade militar, os recursos financeiros, a vitalidade social e cultural ou os recursos agrícolas e energéticos. Todos estes factores, cuja sua importância vai-se alterando de acordo com a evolução das sociedades, acabam por influenciar directa ou indirectamente o “peso” de um Estado no sistema internacional. Ora, sempre que aqueles vão sendo delapidados, o Estado vai-se fragilizando. Muitos exemplos poderiam ser dados, mas situações como a eventual debilidade crescente das forças armadas de um país, o aumento da sua dependência financeira face a países ou entidades terceiras, ou ainda a destruição dos seus recursos naturais, que pode ir desde a contaminação dos rios, passando pela exploração descontrolada dos mares, até à destruição dos solos e florestas, dão uma ideia daquilo que se está a falar.

 

Se a Noruega é um bom exemplo, Portugal neste capítulo continua a ser uma triste referência na forma como lida com o seu Território. Embora seja um dos Estados da Europa com maiores recursos florestais e características naturais únicas, a verdade é que governantes, dirigentes com responsabilidade e comunidades em geral revelam um desrespeito atroz pelo ambiente que os rodeia. Se é certo que em países como a França ou Espanha ocorrem os normais incêndios de Verão, dificilmente estes assumem cronicamente contornos de tragédia nacional. Ao contrário, em Portugal fica-se com a sensação de que quase todos os anos se está perante o fatalismo de um flagelo que vai ardendo literalmente pedaços do país. O fatalismo sentido nos últimos anos resulta em grande parte de um problema de liderança em Portugal, ausente e desacreditada, mas também de uma lacuna na forma como os portugueses interiorizam o conceito de cidadania.

 

A verdade é que após a tragédia de 2003, pouco mais foi feito do que o investimento nalguns meios (não aéreos) e recursos humanos. Mas além da passividade e da falta de coragem política dos sucessivos governos, também os cidadãos não limparam os seus quintais ou as matas circundantes às suas casas, não organizaram os seus terrenos e nem se preocuparam em alertar as autoridades para eventuais situações potencialmente perigosas. Na verdade, tudo o que possa ser dito agora funciona apenas como “cortina de fumo” perante a falência do Estado (leia-se Poder e Povo) e das suas estruturas na defesa do seu Território. Sim, porque é precisamente disso que se trata: defesa do território nacional. Não é que os espanhóis estejam a mobilizar infantaria junto da fronteira ou que os marroquinos estejam a invadir as águas territoriais portuguesas, é antes a incapacidade do Estado em proteger o seu território e recursos face a “ameaças” mais assimétricas, que muitas das vezes têm quase só a ver com comportamentos humanos. Incúria, desleixo, irresponsabilidade, crime, (des)interesses, desordenamento, são apenas algumas das palavras que podem ajudar a explicar incêndios que subsistem durante vários dias com frentes activas de quilómetros, rivalizando com alguns que, de uma forma mais compreensível, sempre vão acontecendo em realidades geograficamente gigantescas como a Austrália, a Califórnia ou a Rússia. Neste capítulo, Portugal está junto destas grandes potências.

 

*Texto publicado no jornal Público a 11 de Agosto de 2016. Infelizmente não mudei uma linha.

 

Uma questão de soberania... e de cidadania

Alexandre Guerra, 17.08.10

 

Foto: Hugo Delgado/LUSA

 

O País continua a arder e perante o habitual lamento nacional, governantes e líderes políticos já anunciam novas ideias e medidas de prevenção e de combate aos incêndios. Supostamente, para aplicar já nos próximos meses.

 

Apesar de no terreno a situação ser dramática e da área ardida em três semanas ser de uma dimensão surreal e assustadora, é surpreendente ver o espírito de iniciativa de líderes políticos e a rapidez com que responsáveis a vários níveis, nomeadamente do Poder Local e de algumas entidades, não têm hesitado em desresponsabilizar-se e apontar o dedo ao “vizinho do lado”. É caso para perguntar, onde andou toda esta gente nos últimos Outono, Inverno e Primavera?

 

A verdade é que quando deviam ter actuado nada aconteceu e após a tragédia de 2003 pouco mais foi feito do que o investimento nalguns meios. Também os cidadãos não limparam os seus quintais ou as matas circundantes às suas casas, organizaram os seus terrenos e nem se preocuparam em alertar as autoridades para eventuais situações potencialmente perigosas.

 

Na verdade, tudo o que possa ser dito agora funciona apenas como “cortina de fumo” perante a falência do Estado (leia-se Poder e Povo) e das suas estruturas na defesa do seu território.

 

Sim, porque é precisamente disso que se trata: defesa do território nacional. Não é que os espanhóis estejam a mobilizar infantaria junto da fronteira ou que os marroquinos estejam a invadir as águas territoriais portuguesas, é antes a incapacidade do Estado em proteger o seu território e recursos face a “ameaças” mais assimétricas.

 

Ameaças essas – e aqui parecem estar todos de acordo – têm cada vez menos a ver com factores naturais, como o clima, e mais a ver com comportamentos humanos.

 

Incúria, desleixo, irresponsabilidade, crime, interesses, desordenamento, são apenas algumas das palavras que podem ajudar a explicar incêndios que subsistem durante vários dias, rivalizando com alguns que, de uma forma mais compreensível, sempre vão acontecendo em realidades geograficamente gigantescas como a Austrália, a Califórnia ou a Rússia. Neste capítulo, Portugal está junto destas grandes potências.

 

Além disso, os misteriosos focos de incêndio que, um pouco por todo o país, vão surgindo temporal e espacialmente de forma cirúrgica fazem pressupor que o “fogo posto” é uma actividade em crescendo em Portugal. Com a particularidade de que metade daqueles que são presos pelas autoridades têm à partida garantido o passaporte de libertação. É um problema de lei, dizem os entendidos que, parece, só no Verão de 2010 chegaram a essa conclusão. Mais uma vez, onde estão as ilações de 2003?

 

As forças da natureza são poderosas e os fogos florestais são um flagelo, assim como as cheias, os terramotos ou outros acontecimentos do género. Mas na problemática dos incêndios em Portugal, a perversidade tem origem sobretudo em comportamentos humanos sobejamente conhecidos pelos líderes políticos, pelos responsáveis estatais e pelas próprias pessoas em geral. No fundo, todos estes actores, e que se consubstanciam no Estado, há muito que têm ao seu dispor a informação necessária para implementar no terreno medidas que ajudem a proteger o território nacional deste tipo de ameaça.

 

A triste realidade das últimas semanas comprova, no entanto, que o Estado (Poder e Povo) falhou em toda sua plenitude na defesa dos seus recursos, fragilizou assim o País, tornando-o mais exíguo e menos soberano no sistema internacional.

 

Uma questão de soberania

Alexandre Guerra, 12.08.10

 

Foto: Rui Miguel Pedrosa/Correio da Manhã

 

O professor Adriano Moreira tem vindo a alertar, desde há alguns anos, os governantes e homens com responsabilidades de liderança em Portugal para a problemática da “exiguidade” do Estado. Na base desta preocupação está a deterioração constante dos vários factores de poder que sustentam a soberania e a “viabilidade” nacional.

 

Factores, esses, que se materializam em diferentes realidades, tais como a extensão e a riqueza natural do território, a capacidade militar, os recursos financeiros, a vitalidade social e cultural ou os recursos agrícolas e energéticos.

 

Todos estes factores, cuja sua importância vai-se alterando de acordo com a evolução das sociedades, acabam por influenciar directa ou indirectamente o “peso” de um Estado no sistema internacional. Ora, sempre que aqueles vão sendo delapidados, o Estado vai-se fragilizando.

 

Muitos exemplos poderiam ser dados, mas situações como a eventual debilidade crescente das forças armadas de um país, o aumento da sua dependência financeira ou alimentar face a Estados terceiros, ou ainda a destruição dos seus recursos naturais, que pode ir desde a contaminação dos rios, passando pela exploração descontrolada dos mares, até à destruição dos solos, dão uma ideia ao leitor daquilo que se está a falar.

 

Foto: Nuno André Ferreira/EPA/CM

 

O empobrecimento do território, mais concretamente das suas características naturais, é hoje uma das principais ameaças a qualquer Estado. Estas matérias deixaram de ser sectoriais para passarem a ser catalogadas como de interesse de Estado. Proteger os recursos assume-se, assim, como uma prioridade para garantir a sustentabilidade do país.

 

No entanto, só nos anos mais recentes começou a verificar-se uma maior sensibilização por parte dos governantes para encararem todas estas questões de território e seus recursos como factores de poder.

 

O Brasil, por exemplo, que tem na Amazónia o seu mais importante factor de poder, ou não fosse aquela floresta um dos principais “pulmões” do planeta, só nos últimos anos começou a dar a devida atenção. Nem vale a pena falar de África ou de países emergentes como a China, em que ainda estão num estádio muito primitivo.

 

Um dos poucos bons exemplos vem do norte da Europa, onde em países como a Noruega há muitos anos que está enraizada na sociedade uma cultura de preservação do meio ambiente. Aqui, a natureza é literalmente uma das principais fontes de riqueza através do mercado da madeira e, por isso, deve ser protegida e sustentada a todo o custo. As pessoas relacionam-se intimamente com a natureza, respeitam-na, protegem-na e estimam-na como se fosse a sua própria casa.

 

Não é exagero dizer que as árvores são um factor de poder tão importante para a Noruega como são os mísseis nucleares para os Estados Unidos.

 

Foto: Nuno André Ferreira/EPA CM

 

Se a Noruega é um bom exemplo, Portugal neste capítulo continua a ser uma triste referência na forma como lida com o seu território. Embora seja um dos Estados da Europa com maiores recursos florestais e características naturais únicas, a verdade é que governantes, dirigentes com responsabilidade e comunidades em geral revelam um desrespeito atroz pelo ambiente que os rodeia.

 

O flagelo dos incêndios que neste momento assola Portugal é uma tragédia crónica que se repete quase todos os anos. As declarações de lamento vão-se sucedendo e os problemas vão sendo identificados teoricamente, a questão que após a “época” de incêndios terminar, tudo cai no esquecimento e nada se efectiva no terreno. Para trás, Portugal volta a “perder” parte do seu território e recursos, ficando mais frágil enquanto Estado do sistema internacional.

 

Portugal tem uma média anual de incêndios pouco normal, quando comparado com outros países, sobretudo se se constatar a relação entre a área ardida e o tamanho (reduzido) do país. Nas notícias dizia-se que a área ardida este ano já era o equivalente à Região Demarcada do Douro. Nos meios internacionais, a BBC News lá noticiava, a par da Rússia, os incêndios em Portugal.

 

Se é certo que em países como a França ou Espanha ocorrem os normais incêndios de Verão, dificilmente estes assumem cronicamente contornos de tragédia nacional. Ao contrário, em Portugal fica-se com a sensação de que quase todos os anos se está perante o fatalismo de um flagelo que vai ardendo literalmente pedaços do país.

 

O fatalismo sentido nos últimos anos resulta em grande parte de um problema de liderança em Portugal, ausente e desacreditada, mas também de uma lacuna na forma como os portugueses interpretam o conceito de cidadania. Dois temas aos quais o Diplomata regressará no próximo texto.