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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

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Ruanda, 25 anos depois

Alexandre Guerra, 09.04.19

 

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Há fotos que nos marcam de tal forma que nunca mais as esquecemos, por mais anos que passem. Esta vi-a em tamanho grande, logo à entrada da exposição World Press Photo de 1995, no CCB, em Lisboa. Da autoria do célebre fotojornalista de guerra, James Nachtwey, foi a grande vencedora daquele ano e retrata um huti ruandês desfigurado à catanada num hospital da Cruz Vermelha, em Nyanza. Esta foto simboliza a maior barbaridade perpetrada pelo Homem desde a IIGM, quando em 100 dias, entre Abril e Junho de 1994, as milícias hutu 'Interahamwe' mataram à catanada cerca de 800 mil tutsis rebeldes e hutus moderados. Um genocídio cometido perante a passividade das forças das Nações Unidas no terreno e que agora assinala 25 anos. Fotos como esta são ao mesmo tempo uma homenagem às vítimas, mas também um alerta para nos relembrar até onde pode ir maldade humana.

 

Da nobreza da missão à irrelevância no terreno

Alexandre Guerra, 15.11.12

 

 

Uma sobrevivente de Srebrenica lamenta-se a um "capacete azul", em Tuzla, 1995

 

Os erros trágicos que foram posteriormente detectados nas intervenções humanitárias e militares sob a bandeira das Nações Unidas no Ruanda (UNAMIR, Outubro de 1993 a Março de 1996) e nos Balcãs (UNPROFOR, Fevereiro de 1992 a Março de 1995), nomeadamente na Bósnia Herzegovina (sendo Srebrenica o melhor exemplo), já deviam ter servido para alguma coisa.

 

Deviam ter servido para que as Nações Unidas tivessem uma capacidade de resposta imediata em Nova Iorque e em estruturas intermédias, sempre que fossem detectadas situações de perigo iminente no terreno, colocando em causa a vida de civis inocentes.

 

Estes mecanismos deviam permitir que as Nações Unidas tivessem autoridade política e agilidade burocrática para, em poucas horas, alterar o seu mandato de acordo com a deterioração no terreno, sem que para isso houvesse necessidade de recorrer ao Conselho de Segurança, criando-se, por vezes, situações de impasse insustentável ou mandatos que seguem a lógica do mínimo denominador comum.

 

Só com esta autoridade burocrática e de comando teria sido possível evitarem-se situações de passividade e, por vezes, ridículas em que muitos “capacetes azuis” se viram envolvidos (o filme No Man’s Land, 2001, capta com humor essa realidade).

 

A limitação das “rules of engagement” e a incapacidade da cadeia de comando sob o “badge” da UNPROFOR de alterar um mandato totalmente desajustado à evolução dos acontecimentos no terreno permitiu, de certa forma, o massacre de Srebrenica, em Julho de 1995, no qual em poucos dias morreram quase 8 mil bósnios muçulmanos às mãos do comandante sérvio Ratko Mladic. Relembre-se que Srebrenica seria supostamente uma “safe area” sob a guarda da ONU, mais concretamente dos “capacetes azuis” holandeses.

 

Tudo isto aconteceu sensivelmente um ano depois do genocídio do Ruanda, onde em três meses morreram à catanada mais 800 mil tutsis e hutus moderados. O mandato da UNAMIR era de tal maneiro vago que os “capacetes azuis” pouco ou nada fizeram perante tais atrocidades. Imagine-se que em Nova Iorque havia muitas dúvidas quanto à interpretação do Capítulo VI, que rege a resolução de conflitos, no que dizia respeito ao uso da violência para a defesa de civis.

 

Esta semana as Nações Unidas voltaram a ser confrontadas com as suas debilidades em matéria de protecção de civis em cenários de conflito.

 

Um relatório interno daquela organização revela que houve falhas graves a vários níveis da ONU, nomeadamente do Conselho de Segurança e do Conselho dos Direitos Humanos, nos últimos meses de conflito no Sri Lanka entre as forças governamentais e os Tigre Tamil.

 

Estima-se que só nos últimos cinco meses de conflito, que terminou em Maio de 2009, tenham morrido mais de 40 mil civis de etnia tamil. Um número impressionante provocado em parte pela retirada dos “capacetes azuis” do Sri Lanka, deixando os civis indefesos entre os forças governamentais e os guerrilheiros tamil.

 

O secretário-geral da ONU Ban Ki-moon já admitiu que este relatório vai ter “profundas implicações” na organização, sendo que uma das recomendações contidas no documento é a de que as Nações Unidas revejam os mandatos para as missões humanitárias e de protecção a civis.

  

A história sangrenta do minério desconhecido que todos querem (3)

Alexandre Guerra, 31.08.10

 

 

A procura de coltan começou a acentuar-se no início dos anos 90, precisamente com o advento das novas tecnologias. De 1999 para 2000, registou-se um aumento de 38 por cento no consumo de coltan. Estimava-se então que o aumento do consumo anual daquele recurso fosse de 10 a 20 por cento.

 

Perante a importância deste recurso o Departamento de Defesa dos Estados Unidos classificou como “estratégico” aquele mineral.

 

Um pouco à semelhança do que aconteceu na Libéria, com este país a exportar para o mercado internacional os diamantes da Serra Leoa, também o Ruanda tem feito chegar a países como os Estados Unidos, Alemanha, Holanda ou Cazaquistão, o coltan extraído em território congolês.

 

Não deixa de ser curioso que o principal exportador e animador deste mercado seja o Ruanda, um país que não tem no seu território reservas de coltan (tal como a Libéria não tinha de diamantes). Todo este minério é trasladado do vizinho Congo pelas forças militares e milícias ruandesas em camiões até Kigali. Aqui, este material é tratado nas instalações da Somirwa, a Sociedade Mineira do Ruanda.

 

Posteriormente, o material é colocado no mercado através da Somigi (Sociedade Mineira dos Grandes Lagos), que tanto quanto o Diplomata conseguiu apurar, tem o monopólio da comercialização do coltan e conta com a participação de três sociedades (uma ruandesa, outra belga e uma sul-africana). Basicamente, o Uganda e o Ruanda vendem o coltan roubado da RDC.

 

A ocupação militar do território congolês pelas forças ruandesas com o apoio do Uganda desde 1998 é compreensível à luz deste estratégico e lucrativo negócio. Além disso, Kigali, através da Somigi, montou um esquema de pagamentos aos movimentos rebeldes apoiados pelo Ruanda que operavam em território congolês. Em vários sites da internet é possível ler-se declarações de então líder do Movimento para a Democracia Congolesa (RCD), Adolphe Onusumba, que o comprometiam de forma clara neste negócio: "Com a venda de diamantes ganhávamos cerca de 200.000 dólares ao mês. Com o coltan chegamos a ganhar mais de um milhão de dólares por mês."

 

Convém relembrar que o RCD chegou a controlar um terço do território congolês, sendo a influência de Onusumba recompensada em 2004 com a nomeação de Ministro da Defesa no Governo de transição da República Democrática do Congo (RDC). 

 

A própria líder da Somigi, Azazi Gulamani Kulsum, tida como uma contrabandista e outrora próxima dos hutus, passou a apoiar e a fornecer armas às forças militares ruandeses que continuam a perseguir hutus nalgumas regiões congolesas, como Kivu Norte.

 

Um estudo levado a cabo pelo IPIS (Serviço de Informação para a Paz Internacional) estabelecia uma teia complexa de contrabandistas e uma relação ilegal entre algumas empresas e países importadores com o negócio do coltan e, consequentemente, com o financiamento da guerra na RDC. Também o presidente ruandês, Paul Kagame, assim como pessoas próximas do chefe de Estado do Uganda, Yoweri Museveni, são tidas como envolvidas neste negócio.

 

Tanto estas relações comprometedoras como a violência que deflagrou na República Democrática do Congo continuam a fazer parte do quotidiano daquele país, apesar de formalmente a guerra ter terminado em 2003. Precisamente há um ano, a Global Witness referia que várias multinacionais estavam a aproveitar-se dos vastos recursos nas regiões congolesas de Kivu Norte e Sul.

 

Não é por isso de estanhar que ainda há dias a revista TIME se tenha interrogado se os “laptops” ou telemóveis utilizados por milhões de pessoas não estariam também "manchados" de sangue, numa analogia aos "diamantes de sangue".

 

Se é verdade que a partir da segunda metade desta década muitas das empresas começaram a estar sensíveis à origem dos materiais, é igualmente certo que anda a circular no mercado internacional minério "manchado" de sangue. Além disso, é inegável que muitos dos aparelhos e dispositivos electrónicos que fazem parte do dia-a-dia de qualquer pessoa em Nova Iorque ou em Lisboa contêm no seu interior materiais cuja origem está marcada pelo sofrimento e pela morte de milhares de pessoas na região dos Grandes Lagos.

 

A história sangrenta do minério desconhecido que todos querem (2)

Alexandre Guerra, 30.08.10

 

 

O que se passou na Libéria e na Serra Leoa não foi um caso isolado. Também na década de 90 a região dos Grandes Lagos viveu um drama que encontra algumas semelhanças quanto ao seu enquadramento. No entanto, a sua dimensão e a espiral de violência foram de tal forma avassaladoras que há uns anos a antiga Secretária de Estado norte-americana, Madeleine Albright, classificou aquele conflito como a “Primeira Guerra Mundial de África”.

 

Os contornos e os números do conflito justificam. Só entre 1998 a 2003 (a fase mais intensa do conflito) o território da República Democrática do Congo (RDC) foi palco de uma guerra que envolveu seis países e terá provocado a morte de mais de 5 milhões de pessoas, muitas delas devido a doenças e fome. Foi o conflito mais mortal desde a II Guerra Mundial.

 

Agora, a Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas prepara-se para divulgar um relatório de 545 páginas, no qual levanta a possibilidade de se ter verificado um genocídio perpetrado pelas forças ruandesas, com o apoio do Uganda, ao longo dos anos 90 na República Democrática do Congo.

 

Convém relembrar que na base deste conflito estiveram divisões étnicas, remontando ao período compreendido entre Abril e Junho de 1994, quando hutus extremistas provocaram o genocídio de 800 mil tutsis e hutus moderados no Ruanda. Violência extrema com a maior parte das pessoas serem mortas à catanada.

 

Assim que os tutsis tomaram o poder em Kigali, em Junho desse ano com a eleição do Presidente Paul Kagame, encetaram uma política de vingança contra todos os hutus no país que, entretanto, já tinham fugido para o vizinho Zaire, receando as represálias do Exército ruandês, uma vez que estavam cientes de não iria ser feita qualquer distinção entre os hutus que foram responsáveis pelo genocídio e os restantes hutus, simples cidadãos ruandeses, agora em fuga.

 

Rapidamente o conflito se alastrou ao Zaire, com violentas incursões das forças ruandesas lideradas por tutsis em buscas das milícias hutus. O território do ainda Zaire tornou-se um palco de perseguições e de morte sistemática, onde desta vez os alvos eram os hutus e o próprio regime liderado pelo histórico Mobutu Sese Seko, que deu apoio aos hutus, nomeadamente abrigo aos mais extermistas envolvidos no genocídio de 1994.

 

As forças ruandesas no Zaire tiveram o apoio do Uganda, na tarefa de ajudar o congolês Laurent Kabila do AFDL a depor Mobutu. Este acaba por cair em 1997, e assim que Kabila chega ao poder, rebaptiza o país para República Democrática do Congo (RDC), mas rapidamente Kigali percebe que o novo Presidente não vai conseguir destruir as milícias hutus.

 

É então que o Ruanda inicia uma outra tentativa para derrubar pela segunda vez num espaço de pouco tempo um Presidente em Kinshasa. Mas desta vez, Kabila vai resistir e pede ajuda a Angola, à Namíbia e ao Zimbabwe.

 

Nos cinco anos seguintes, a RDC vai ter no seu território forças de seis países, que se vão digladiar num conflito brutal que vai ultrapassar as barreiras étnicas, para passar a assentar numa lógica de controlo de território e recursos minerais.

 

Além dos cobiçados diamantes ou outras riquezas, os países envolvidos no conflito sabiam que no subsolo congolês repousavam quase 80 por cento das reservas mundiais de um dos mais preciosos minérios para as sociedades pós-modernas, mas também um dos mais desconhecidos para lá de Silicon Valey ou da comunidade de alta tecnologia: o coltan. Estima-se que o Brasil tenha outros 5 por cento, tal como a Tailândia e a Austrália possua 10 por cento.

 

O coltan, neste momento muito mais cobiçado do que o ouro, é uma mistura de dois minérios, a columbita e a tantalita. Do primeiro é extraído o nióbio e do segundo o tântalo, ambos com características únicas para a produção de materiais utilizados em dispositivos tecnológicos de vanguarda e portáteis, tais como telemóveis, laptops, GPS, televisores de plasma, satélites, entre outros.

 

A história sangrenta do minério desconhecido que todos querem (1)

Alexandre Guerra, 29.08.10

 

 

Por razões que serão explicadas adiante, o Diplomata lembrou-se de uma conversa tida há uns anos com um engenheiro de minas angolano que estava então a trabalhar para a De Beers enquanto consultor de projectos na África do Sul. Na altura, esta pessoa alertava o autor destas linhas para as riquezas desconhecidas do grande público, depositadas no subsolo africano, que iam muito para além daquelas mais óbvias, tais como o petróleo, o ouro ou os diamantes.

 

Sem dúvida que estes recursos são extremamente valiosos e muito procurados, de tal forma que são capazes de sustentar governos corruptos, de forjar alianças nefastas, de inflamar conflitos, de provocar guerras civis atrozes.

 

Os “diamantes de sangue” são um bom exemplo da maldição que alguns países e povos africanos têm de carregar por causa dos seus subsolos terem sido abençoados com a abundância de minérios vorazmente consumidos sobretudo pelos países ocidentais e economias emergentes.

 

Países como a Serra Leoa e a Libéria demonstram como um recurso mineral, neste caso os diamantes, pode trazer tanta destruição e morte aos seus povos durante tantos com a complacência e a passividade da comunidade internacional.

 

Perante esta situação, a ONU procurou implementar um processo de certificação de origem das pedras que colmatasse algumas das falhas de controlo nos países exportadores. O “Processo Kimberley” está longe de ser eficaz, mas é uma importante ferramenta preventiva.

 

Seja como for, os “diamantes de sangue” passaram a ser demasiado incómodos em Amesterdão ou em Nova Iorque para continuarem a ser vendidos e comprados sem que a comunidade internacional se sentisse na obrigação de tentar “esvaziar” algumas das fontes dos conflitos africanos relacionados com este problemática.

 

Efectivamente, nos primeiros anos deste século o mundo começou a olhar com outra sensibilidade para a questão dos diamantes e, de uma maneira ou de outra, o controlo é hoje maior, nomeadamente na Serra Leoa. Também no Zimbabwe, várias organizações não governamentais parecem estar atentas à exploração mineira dos diamantes, porém, o Presidente Robert Mugabe continua a exercer um poder autoritário no país, dificultando a implementação de medidas de controlo.