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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

E se puder alterar geneticamente o seu futuro filho?

Alexandre Guerra, 23.07.18

 

“Should we or shouldn't we be allowed to modify human DNA in future children?”

 

É com esta pergunta que a BBC News introduzia um artigo publicado há uns dias no seu site sobre as fronteiras morais e éticas ao exercício da engenharia genética na alteração de embriões humanos. No fundo, estamos a falar da edição do genoma humano para condicionar/alterar o ADN de uma futura criança, o que na prática significa que, pela primeira vez na história da Humanidade, um bebé poderia potencialmente nascer com características genéticas que não fossem fruto do livre arbítrio, mas da vontade dos seus progenitores. Ou seja, estaríamos perante um novo mundo, o tal mundo pós-Humano de que Francis Fukuyama e outros autores falaram, dando-se assim início a uma nova História. Uma história pós-Humana.

 

Acredito que esta problemática, com as suas diversas implicações éticas, políticas, sociais, morais e religiosas, será uma das questões mais fracturantes num futuro próximo e, por isso, me debrucei sobre o tema no livro “A Política e o Homem Pós-Humano”[1]. O livro acabou por ser a extensão da minha dissertação de mestrado em Ciência Política, coordenada por um dos mais ilustres sociólogos nacionais e internacionais, o já falecido Hermínio Martins (Maputo, 1934 – Oxford, 2015), que durante décadas se dedicou ao pensamento destas matérias. Praticamente um desconhecido em Portugal, gozava de uma reputação de excelência no estrangeiro, ao ponto de o The Independent escrever no seu obituário o seguinte: “The death of the Portuguese-British sociologist Hermínio Martins will be mourned by social scientists internationally, impressed by his extraordinary erudition and the subtlety of his irony.”

 

Hermínio Martins foi Professor Emérito do St. Anthony’s College, da Universidade de Oxford, onde desenvolveu parte da sua carreira, tendo anteriormente estudado com Karl Popper e Ernest Gellner e mais tarde trabalhado com nomes de referência da sociologia mundial, tais como John Rex, Talcott Parsons, Seymour Martin-Lipset ou David Riesman.

 

Motivado pelo estímulo intelectual do “mais filósofo dos cientistas sociais portugueses”, como escreveu António Guerreiro no PÚBLICO por altura da sua morte, comecei a compreender em toda a plenitude o alcance das repercussões futuras da bioengenharia e da biotecnologia nas sociedades vindouras. “Da reprodução de órgãos geneticamente iguais à possível criação de um ‘super-homem’, a sociedade encontra-se no centro de um debate que, embora ainda tímido nalguns Estados e até ausente noutros, ganha protagonismo na agenda política”.[2] Percebi também que “quando Francis Fukuyama falou no ‘Fim da História e no Último Homem’, apropriando-se de uma concepção determinista recorrente, admitiu mais tarde que a génese da destruição da sua tese se encontrava precisamente nas novas biotecnologias. A possibilidade de um ‘outro eu’, produto do Homem e não do livre arbítrio, faria emergir um mundo pós-humano, dando-se, assim, início a uma nova História”.[3]

 

É um possível cenário futuro sobre o qual devemos reflectir e estar atentos, até porque o passado tem demonstrado o princípio da inevitabilidade do progresso científico, não obstante a tentativa de forças conservadores se baterem pela manutenção do status quo em determinados períodos históricos de ruptura nos modelos de pensamento.

 

A notícia da BBC News aqui citada, que se junta a tantas outras, mas que para já não captam a atenção para os debates mais massificados, vem precisamente reforçar essa ideia, ao citar um estudo divulgado há dias pelo Nuffield Council on Bioethics, uma entidade independente britânica sobre políticas públicas no âmbito das questões éticas em biologia e medicina. Para aquele organismo, não há qualquer razão impeditiva para que a engenharia genética não possa ser aplicada nos embriões humanos, apesar das implicações para a sociedade serem “extensivas, profundas e a longo prazo”. É importante relembrar que no Reino Unido, à semelhança do que acontece noutros países, este tipo de investigação genética só é possível (quando o é) em embriões criados para fertilização in vitro que não foram utilizados, os chamados embriões excedentários. Nesse mesmo texto da BBC News fica evidente o confronto ideológico e ético das várias correntes, com os mais conservadores a criticarem aquilo que chamam de um “abrir portas” aos “designer babies” e os mais progressistas a enaltecerem as virtudes da ciência. É um debate que se tem feito desde há uns anos a esta parte, cada vez com mais intensidade sobretudo nos Estados Unidos.

 

Poderá não ser para um futuro muito próximo, mas “as novas biotecnologias poderão ainda fazer chegar o dia em que nascerá o primeiro ’homem’ feito à medida da vontade de um seu semelhante. Da cor dos olhos e do cabelo, ao valor do QI, passando pelo sexo da criança ou pelo nível de agressividade das suas emoções, tudo será possível manusear como se fosse uma encomenda por catálogo”.[4]

 

Uma problemática que há muitos anos Hermínio Martins explorou nos seus estudos e reflexões no âmbito da “civilização tecnológica e condição humana”, antecipando claramente o futuro ao considerar “que “as biotecnológicas não buscam meramente facultar melhoramentos cosméticos e mais próteses para organismos humanos e não humanos, mas criar novas formas de vida. De todas as tecnologias contemporâneas é talvez a biotecnologia a que tem uma vocação mais decisivamente ontológica. O seu horizonte inclui a criação de novas formas de vida orgânica como resultado de modificações genéticas, englobando transferências genéticas entre espécies e potencialmente o derrubar das fronteiras entre espécies biológicas naturais – enquanto a evolução tanto orgânica como inorgânica tinha sido na generalidade adversa a mesoformas e, na verdade, um princípio geral de instabilidade das mesoformas foi enunciado por muitos filósofos naturais tais como Fraser (1982). As formas de vida artificiais iludem as fronteiras naturais e os limites da evolução biológica ‘normal’”.[5]

 

Pela primeira vez na sua História, o Homem detém tecnologia que poderá ter consequências “na definição e na concepção/adulteração do Homem biológico, tal e qual o conhecemos há milhares de anos, e, consequentemente, na forma de como a Humanidade olhará para ela própria. As novas biotecnologias abrem assim uma imensa porta para admiráveis mundos novos, que permitem vislumbrar sociedades mais próximas da utopia, onde as pessoas podem viver para lá dos 110 anos, auto-regenerando-se com os seus próprios órgãos geneticamente compatíveis, desafiando as leis naturais que têm imperado até hoje: a ausência de qualquer flagelo degenerativo ou a erradicação da dor e da doença. Tal modelo de sociedade será, à primeira vista, o procurado por todas as pessoas de bom senso, sobretudo quando nos dias que correm tantos desafios há a vencer, mas como as utopias positivas e negativas têm revelado através do trabalho intelectual de muitos autores, a busca da perfeição pressupõe quase sempre alterações drásticas de comportamentos sociais e humanos”.[6]

 

A pergunta com que iniciámos este texto deve merecer uma reflexão séria, porque algo de novo se começa a vislumbrar no percurso da Humanidade, já que estão a ser criadas condições para a ruptura entre os mundos Humano e pós-Humano.

 

[1] GUERRA, Alexandre – A Política e o Homem Pós-Humano, com prefácio do Viriato Soromenho-Marques e texto de contra capa de José Manuel Durão Barroso (Lisboa: Alêtheia, Novembro de 2016)

[2] Idem. pág. 16

[3] Idem, ibidem

[4] Idem, pág. 174

[5] MARTINS, Hermínio – Experimentum Humanum (Lisboa: Relógio D’Agua, Maio de 2011), pág.28 págs. 165 e 166

[6] Ob. Cit. – A Política e o Homem Pós-Humano, pág. 173

 

Publicado originalmente no Observador

 

Mais do que o "fim da História", valerá a pena ouvir Fukuyama sobre o "último homem"

Alexandre Guerra, 29.04.11

 

 

Das várias personalidades que vão estar nas Conferências do Estoril na próxima semana, e muitas delas de excepcional calibre político e intelectual, o autor destas linhas revela o seu primeiro “cable” ao admitir o seu particular interesse por Francis Fukuyama, aguardando com muita expectativa a apresentação deste filósofo político.

 

Ao contrário do que o leitor possa estar a imaginar, esta preferência não se deve à obra que o tornou célebre, O Fim da História e o Último Homem, mas antes ao trabalho que desenvolveu no ambito do estudo da problemática das novas biotecnologias nas sociedades pós-modernas.

 

É certo que Francis Fukuyama se celebrizou pela sua teoria determinista pós-Guerra Fria, no entanto, para quem conhece a obra de Kojève, Marx, Hegel ou, recuando ainda mais, de Políbio, percebe que nada de novo existia naquele paradigma e convicção de que o autor estava a viver um momento único de ruptura sistémica. A verdade é que já muitos outros tinham escrito sobre o “fim da história”, precisamente por acreditarem que também eles viviam naquele determinado momento da História uma época única de mudança de paradigma.

 

Seja como for, a parte mais interessante desse famoso livro de Fukuyama, e que muitos ignoraram ou nem se aperceberam, é aquela a que se refere ao “último homem”. Porque, é precisamente a partir deste pressuposto que aquele filósofo político parte para o seu estudo sobre o “mundo pós humano”, que resulta no fascinante livro, este sim, O Nosso Futuro Pós-Humano.

 

É importante relembrar que quando Francis Fukuyama falou no “fim da história”, apropriando-se de uma concepção determinista, admitiu mais tarde que a génese da destruição da sua tese se encontrava precisamente nas novas biotecnologias. A possibilidade de um “outro eu”, produto do Homem e não do livre arbítrio, faria emergir um mundo pós-humano, dando-se, assim, início a uma nova História.

 

Pela primeira vez, Deus deixara de ter a exclusividade para aniquilar a sua própria criação. O Homem passava a ter essa possibilidade, o governante passava a deter o poder para destruir a Humanidade.

 

O livro O Nosso Futuro Pós-Humano, publicado em 2002, veio reflectir precisamente sobre a problemática das novas biotecnologias, nomeadamente, ao nível do seu impacto nas sociedades pós-modernas, algo com que os decisores políticos até então jamais tinham sido confrontados.

 

Este é um debate que era apenas o produto da imaginação de alguns homens, como por exemplo Aldous Huxley, que no seu Admirável Mundo Novo recorre ao primado da ciência e tecnologia para “acabar” com a Humanidade, tal como a sempre se conhece, para mergulhar num mundo pós-Humano.

 

Aquela obra foi escrita há, sensivelmente, 70 anos. Hoje, o mundo pós-humano de Francis Fukuyama não é fruto da sua imaginação, mas sim resultado de uma análise e investigação da realidade pós-moderna.

 

Com os instrumentos que começam a ficar ao dispor dos cientistas capazes de desafiar a ordem instituída, Fukuyama enfatiza as diferenças entre uma sociedade criada a partir do livre arbítrio, ou daquilo que chama de “lotaria genética”, e uma sociedade erigida com base em modelos pré-definidos, onde nada é deixado ao acaso. “Livre arbítrio vs determinismo (genético)” poderá vir a tornar-se uma das equações mais fracturantes e polémicas no debate politico e sociológico dos próximos anos. E Fukuyama ajuda a explicar porquê.

 

Texto publicado originalmente em Cables from Estoril.

 

 

A Newsweek fotografa o pensamento de Francis Fukuyama

Alexandre Guerra, 14.04.11

 

Manuel Falcão, no Lugares Comuns, chama a atenção para o trabalho fotográfico da renascida Newsweek sobre Francis Fukuyama, o filósofo político que ficou famoso internacionalmente pelo célebre livro O Fim da História e o Último Homem, e que agora acaba de publicar o The Origins of Political Order. Mas, a obra que verdadeiramente inspirou o autor destas linhas foi o seu livro O Nosso Futuro Pós-Humano, centrado na problemática das novas biotecnologias.

 

Francis Fukuyama vai estar presente nas Conferências do Estoril e o Diplomata não vai faltar.