Talvez nunca, como hoje, se tenha falado tanto de “dívida pública”. Das chancelarias aos cafés, da banca às empresas, dos parlamentos às universidades, das agências de notação financeira aos quiosques dos jornais, “dívida pública” é o conceito de que todos falam.
Poucos Estados no mundo estarão na categoria de não devedores, mas nem assim se livram daquela “praga”, porque lá vão sendo impingidos para comprar a dívida bem volumosa de outros.
Neste capítulo, o primeiro-ministro de Portugal, José Sócrates, tem sido um autêntico “comercial”, daqueles que redobram o ânimo na perspectiva de receberem maior comissão. E, segundo dizem, até tem feito um trabalho interessante na venda de parte da dívida pública portuguesa. A China, o Brasil e alguns emirados parecem já ter ido na “conversa”.
Seja como for, e tom ligeiro à parte, a questão da “dívida pública” é hoje um tema da ordem do dia e que de certa maneira assume contornos inéditos.
É verdade que o endividamento foi sempre uma problemática natural e necessária ao longo da História das nações. Até aqui nada de novo. No entanto, quando, num momento único dessa mesma História, marcado pelo paradigma da globalização e assente na interdependência complexa, o sobrendividamento externo se torna prática comum numa vasta maioria de Estados do sistema internacional, incluindo algumas das principais economias, então existem razões para se pensar estar perante algo de inédito.
E talvez não exista melhor exemplo que os Estados Unidos, com uma dívida pública sem precedentes na sua história e que cresceu, sobretudo, nos últimos anos. Exceptuando o período imediatamente a seguir à II GM, os Estados Unidos nunca estiveram tão endividados desde os primeiros registos de dívida pública, em 1792.
A manter-se a actual tendência, o Congressional Budget Office estima que dentro de dez anos, a dívida federal americana atinja os 90 por cento do PIB, número considerado por muitos como optimista. Por exemplo, o FMI prevê que em 2015 a dívida dos Estados Unidas corresponda à totalidade do PIB.
Ao comparar-se os valores actuais com os verificados há pouco mais de uma década, constata-se um aumento galopante da dívida federal. Em 2000, a dívida era de cerca de 35 por cento do PIB, em consonância com a média histórica a longo prazo. E atendendo ao bom comportamento da economia americana na altura, a Reserva Federal chegou mesmo a discutir a possibilidade de se pagar toda a dívida.
Até então, os Estados Unidos não tinham histórico de endividamento, tirando o curto período da II GM, no qual foram executados planos de financiamento para suportar o esforço de guerra americano. Mas, rapidamente os valores da dívida foram corrigidos, o que aconteceu ainda nos anos 40.
Já quanto à primeira década do século XXI, assistiu-se a um crescimento vertiginoso da dívida pública.
Para Richard Haas, presidente do Council on Foreign Relations, e Roger C. Altman, antigo vice-Secretário de Tesouro, esta situação explica-se devido a três factores: mudança da política fiscal protagonizada pelo então Presidente George W. Bush, nomeadamente, com os cortes nos impostos entre 2001 e 2003, diminuindo as receitas federais nos dez anos seguintes em 2 biliões ("trillion" nos EUA ou triliões no Brasil) de dólares; apoios na prescrição de medicamentos no âmbito do programa Medicare; guerras nos Afeganistão e no Iraque.
Haas e Altman, num artigo conjunto publicado na edição de Novembro/Dezembro da Foreign Affairs, enquadram politicamente aqueles factores, sublinhando que durante os mandatos de Bush, o sistema político americano polarizou-se. Os democratas moveram-se mais para a esquerda e os republicanos para a direita. Ou seja, de um lado havia a visão de maiores apoios sociais e mais gastos em programas federais e do outro havia uma perspectiva de incentivo aos cortes fiscais.
A radicalização destas abordagens políticas abriu portas para um aumento da despesa de ambos lados e contribuiu para que deixasse de haver uma espécie de tecto de endividamento.
O gastos ao nível federal aumentaram a uma taxa superior ao dobro quando comparada com a dos anos 90. De uma situação de superavit de 1 por cento, em 1998, passou-se para um défice de 3,2 por cento, em 2008. A dívida pública per capita aumentou 50 por cento durante este período, de 13 mil dólares para mais de 19 mil.
Perante estes indicadores, Haas e Altman escrevem que “os oito anos de administração Bush viram a maior erosão fiscal da história americana”.
Mais recentemente, o défice no ano fiscal de 2009 atingiu quase 12 por cento do PIB enquanto que em 2010 ficou-se pelos 9 por cento. Já a dívida pública representava 62 por cento do PIB no ano passado, cerca de 9 biliões. Em 2000, estava nos 3,5 biliões, ou seja, 35 por cento do PIB.
Segundo o Congressional Budget Office, as perspectivas a médio prazo não são animadoras, quer em termos de défice, quer em termos de dívida pública. Embora o défice possa descer nos próximos anos, a tendência é que se mantenha com valores, apesar de tudo, elevados. Quando à dívida pública estima-se que em 2020 chegue aos 90 por cento do PIB.
O impacto desta tendência é brutal, já que, prevê o Congressional Budget Office, os Estados Unidos terão que contrair anualmente empréstimos de 5 biliões para fazer face ao défice e ao refinanciamento da dívida.
Mas o pior é que os tais 9 biliões de dívida em 2010 avançados pelo Departamento de Tesouro não contemplam os 8 biliões de empréstimos governamentais para fazer face ao resgate de uma série de instituições, agências financeiras e empresas, tais como a Fannie Mae e o Freddie Mac.
A situação dos Estados Unidos não é animadora, com Haas e Altman a descreverem um cenário preocupante para daqui a 10 anos, devido ao envelhecimento da população. Consequentemente, mais gastos em saúde e apoios sociais e menos receitas para o Estado. Além disso, os custos do refinanciamento da dívida tendem a aumentar por causa das taxas de juro.
Tudo isto resulta no facto dos Estados Unidos serem hoje o país que mais procura financiamento no mercado externo, tendo 50 por cento da dívida do Tesouro no estrangeiro, 22 por cento da qual nas mãos de chineses.
Como escrevem Haas e Altman, “os Estados Unidos aproximam-se rapidamente de um ponto de viragem histórico: ou agem de modo a meter a sua casa fiscal em ordem […] ou sofrerão as consequências domésticas e internacionais”.
*Texto publicado originalmente no Albergue Espanhol