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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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Srebrenica, o genocídio que a Europa não pode esquecer

Alexandre Guerra, 13.07.20

Quem visite o memorial e cemitério de Srebrenica (localizado na povoação vizinha de Potacari) é confrontado com uma visão impressionante que nos confronta com o mais vil e perverso projecto político nacionalista que a Europa viveu desde a II Guerra Mundial. Milhares de lápides brancas que repousam sobre um manto de relva, no meio de uma floresta verdejante por onde, há precisamente vinte e cinco anos, mulheres, homens e crianças bósnias muçulmanas tentaram, em desespero, fugir das forças militares bósnias sérvias. Alguns conseguiram, mas outros foram capturados, levados para “killing sites” e mortos. Os corpos foram enterrados em valas comuns espalhadas por diferentes locais desconhecidos naquela região remota da Bósnia-Herzegovina.

Hoje, celebra-se um quarto de século sobre o genocídio de Srebrenica. Todos os anos, neste dia 11, é realizada uma cerimónia naquele memorial, onde vão a enterrar novos corpos identificados que, entretanto, foram exumados das muitas valas comuns que circundam a área. É um processo doloroso que parece não ter fim, porque embora esteja identificado o número oficial de vítimas (8372), muitos corpos continuam desaparecidos, para desespero dos familiares sobreviventes.

Entre 11 e 22 de Julho de 1995, no enclave muçulmano de Srebrenica, considerada uma “safe zone” pela ONU, foram assassinados mais de 8 mil bósnios muçulmanos (bosniaks), num massacre sistematizado contra rapazes e homens, levado a cabo pelas forças militares da República Srpska (entidade sérvia auto-proclamada em 1992 dentro da Bósnia-Herzegovina). Este Exército era comandado pelo General Ratko Mladic, sob as ordens políticas de Radovan Karadzic, o Presidente de então daquela entidade política e conhecido como o “carniceiro da Bósnia”. O objectivo era claro: a limpeza étnica do enclave muçulmano de Srebrenica integrado numa região predominantemente bósnia sérvia. Tudo fazia parte do projecto para a criação da Grande Sérvia.

O Tribunal Penal Internacional para os Crimes da Ex-Jugoslávia (ICTY) acabaria por dar como provado o “genocídio” e condenar Mladic e Karadzic por aquele crime, assim como “crimes de guerra” e “crimes contra a Humanidade”. Ambos estão a cumprir pena.

Os trágicos acontecimentos de Julho de 1995 aconteceram perante a impotência do tristemente célebre contingente holandês de “capacetes azuis” estacionado no Quartel-General da Força de Manutenção de Paz das Nações Unidas (UNPROFOR) em Potacari, a poucos quilómetros de Srebrenica. Com a ofensiva de Mladic sobre esta localidade no dia 11, cerca de 20 mil a 30 mil bosniaks meterem-se em fuga pela floresta densa que cobre toda a aquela região. Muitas destas pessoas dirigiram-se para as instalações da UNPROFOR, uma antiga fábrica de baterias. Algumas centenas foram acolhidas num dos seus armazéns (que hoje em dia recebe exposições relativas ao genocídio), mas a maioria foi deixada à sua sorte e voltou a fugir para a floresta. Muitos homens foram capturados e mortos nos dias que se seguiram. Mulheres e crianças foram obrigadas a abandonar a região. Os relatos de testemunhas falam de gritos vindos da floresta. 

Para a história, o contingente holandês ficou associado negativamente a estes acontecimentos e ainda hoje, por um certo sentimento de culpa, segundo me informaram, muitos dos seus soldados acompanham a título pessoal as famílias das vítimas. O próprio Governo holandês apoia diversos projectos solidários. Mas vale a pena estudar com muita atenção tudo o que falhou ao nível da hierarquia de comando da ONU, para se perceber que muito podia ter sido feito para se evitar aquele genocídio, já para não dizer que as "rules of engagement" dos soldados holandeses nem sequer lhes permitiam disparar em legítima defesa.

Quando se deram estes acontecimentos estava a ultimar a minha entrada na universidade para o curso de Relações Internacionais. Era um jovem atento e apaixonado por aquelas temáticas e, por isso, estava profundamente sensibilizado e impressionado pelos anos de conflito nos Balcãs (1991-95). Ninguém esquece as imagens de horror e os relatos de barbárie que nos chegavam pelas grandes cadeias de televisões e jornais (incluindo o PÚBLICO), sobretudo da Bósnia, onde a guerra (1992-95) se fez sentir com particular violência, e que terá provocado no total mais de 100 mil mortos. Eram imagens dos “campos de concentração” sérvios, com milhares de homens, mulheres e crianças bósnias com corpos esquálidos à beira da morte. Massacres, perseguições étnicas, valas comuns, tudo a acontecer quase em directo aos olhos de todos e no interior da Europa (de Sarajevo a Viena não são mais do que 800 km).

O genocídio de Srebrenica foi o epílogo sangrento de todo esse conflito. A maior vergonha europeia dos últimos 75 anos e o mais trágico falhanço político-diplomático europeu desde a II GM. Nenhum europeu deve esquecer este trágico acontecimento, porque além de todo o sofrimento e morte, ele foi a expressão mais hedionda dos nacionalismos radicais numa Europa que se apresentou sempre como o farol da liberdade e dos valores humanistas. Os mais novos, que não têm memória do conflito, devem estudá-lo e compreendê-lo.

Por aqueles locais cometeu-se um extermínio em massa e hoje em dia continua a ser muito inquietante e perturbador lidar com a "normalidade" vigente. Até a empresa de autocarros que transportou sistematicamente centenas de bosniaks para os locais de extermínio ainda opera. Está lá! E perguntamo-nos: Como é possível? É difícil explicar. A verdade é que nada pode ser normal numa região que sofreu um trauma tão sangrento. Antes da limpeza étnica, o município de Srebrenica tinha cerca de 36 mil habitantes, na sua maioria muçulmanos. Hoje, esse número deverá andar por volta dos 7 a 10 mil. Na cidade propriamente dita, vivem agora apenas algumas centenas de pessoas. O ambiente é pesado e lúgubre e ainda se vêem resquícios físicos daqueles dias.

Em finais de Agosto de 2018 tive a oportunidade de visitar aquela zona. Depois de muitos anos a estudar e a ler sobre toda aquela realidade, percebi que, à semelhança do que já me tinha acontecido com o conflito israelo-palestiniano, nunca a iria compreender na sua plenitude se não fosse ao terreno. Do que vi e ouvi em Srebrenica e em Potacari, impressionou-me particularmente o testemunho doloroso, durante mais de uma hora, de um homem que, na altura criança, escapou à morte, mas perdeu o pai e o irmão no genocídio. E o mais tocante é que essa pessoa agora adulta aparece de passagem num documentário, onde se mostram imagens da altura, com colunas de centenas de pessoas a fugirem de Srebrenica para localidades circundantes. E lá está ela, a criança assustada, no meio de um conflito que servia apenas o propósito de Slobodan Milosevic: criar entre a Sérvia e a República Srpska uma homogeneidade étnica e religiosa. E o mais dramático é que comparando-se os mapas demográficos de antes de 1992 e depois de 1995, que podem ser vistos no antigo Quartel da UNPROFOR, constata-se que a ideia da "Grande Sérvia” protagonizada por Milosevic fez uma parte do caminho.

Nestes tempos que correm, com uma certa descontração e ignorância, muito se fala de nacionalismos e de líderes extremistas e também por essa razão é que escrevo este texto. As pessoas esquecem rapidamente e, muitas vezes, os líderes e as sociedades pouco aprendem com a História. Depois de ver e sentir as memórias de Srebrenica e em homenagem aos que ali morreram, é cada vez mais forte a minha convicção de que extremismos e nacionalismos devem ser combatidos com todas as nossas forças. Para que, como disse o imã de Potacari na inauguração do memorial/cemitério de Srebrenica a 11 de Julho de 2001: "That Srebrenica never happen again, to no one and nowhere".

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.

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