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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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PESCO reaproxima EUA e UE em matéria de Segurança e Defesa

Alexandre Guerra, 18.05.21

Uma das medidas mais importantes alcançadas até ao momento pela presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (UE) passou um pouco despercebida nos meios de comunicação social nacionais, mas reveste-se de enorme importância no quadro de Segurança e Defesa das relações transatlânticas, nomeadamente entre a NATO e a UE. Foi o próprio ministro português da Defesa, João Gomes Cravinho, que, em vésperas do Conselho Europeu com os seus homólogos em Bruxelas há precisamente uma semana, anunciou a disponibilidade da Noruega, Canadá e Estados Unidos se associaram à Cooperação Estruturada Permanente (PESCO). É um mecanismo instituído no Conselho Europeu de Dezembro de 2017 e que estava previsto no Tratado de Lisboa, com o objectivo de aprofundar a cooperação militar entre os Estados-membros, através de projectos comuns que contribuam para a autonomia estratégica da UE e para o reforço do complexo militar-industrial e tecnológico.

A PESCO é o primeiro mecanismo permanente da UE vocacionado para o desenvolvimento de projectos na área da Segurança e Defesa. Pode ser o embrião de um possível complexo militar-industrial europeu. Para isso, a PESCO conta com financiamento comunitário através do Fundo Europeu de Defesa (EDF), um dos pilares deste mecanismo. É importante relembrar que o EDF foi anunciado pela primeira vez em Setembro de 2016, pelo ex-presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, por ocasião do Discurso do Estado da União, com o objectivo de inovar e potenciar a indústria de Defesa europeia. Três meses depois, sairia do Conselho Europeu o convite para a Comissão apresentar propostas para a criação desse Fundo, que incluísse uma vertente para o desenvolvimento conjunto de capacidades definidas de comum acordo pelos Estados-membros. O Fundo viria a ser criado formalmente em Junho de 2017 e dois anos depois o Parlamento Europeu dava luz verde para dotar o fundo de 13 mil milhões de euros, propostos pela Comissão Europeia no âmbito do Quadro Financeiro Plurianual (QFP) para 2021-2027.

Sendo este Fundo vital para sustentar os projectos da PESCO, dias depois da votação do Parlamento Europeu, Washington, sob a presidência de Donald Trump, enviou uma carta a Bruxelas com um tom bastante agressivo, deixando implícitas várias ameaças políticas e represálias comerciais. A missiva, à qual vários meios de comunicação social internacionais tiveram acesso, tinha a data de 1 de Maio de 2019 e foi enviada a Frederica Mogherini, a então Alta Representante da UE para a Política Externa e Segurança, tendo como remetentes na altura a sub-secretária de Defesa dos EUA, Ellen M. Lord, e a sub-secretária de Estado, Andrea L. Thompson. Nesse “duríssimo texto” (palavras do El País), Washington mostrava-se “profundamente preocupado” já que, à luz das regras do Fundo – e não obstante países fora da UE poderem participar –, toda a propriedade intelectual dos projectos abrangidos por aquelas verbas comunitárias tem de ser exclusivamente europeia. Além disso, o regulamento do Fundo impede que um país terceiro que participe num projecto europeu imponha restrições à exportação comunitária da tecnologia e armamento produzidos.

Estas regras – que surpreenderam e irritaram Washington pela assertividade pouco habitual com que Bruxelas defendeu e protegeu os seus interesses – serão agora aplicadas no projecto da PESCO ao qual os Estados Unidos, Noruega e Canadá se irão associar, já que é financiado pelo EDF no valor de 1,7 mil milhões de euros. Um sinal particularmente importante por parte dos Estados Unidos que, com esta nova presidência de Joe Biden, demonstra vontade de participar num esforço conjunto para a segurança transatlântica no âmbito da NATO e da UE. Por outro lado, esta disponibilidade da UE à participação de outros países terceiros na PESCO, em especial os Estados Unidos, comporta uma mensagem política relevante para Washington, uma vez que é uma contribuição financeira efectiva por parte de Bruxelas para o esforço colectivo da defesa transatlântica no quadro conjunto da UE e NATO. Compreendem-se, por isso, as declarações entusiásticas da ministra alemã da Defesa, Annegret Kramp-Karrenbauer, que considerou estar-se perante um "salto quântico em termos de cooperação". Também João Gomes Cravinho foi muito claro nas declarações que deu ao site Politico: "É muito positivo que os EUA se juntem a isto, em vez de dizerem que a PESCO é, como ouvi noutras alturas da anterior administração, negativa para os interesses da NATO.”

O projecto em causa está relacionado com mobilidade militar europeia e prevê a uniformização de informação entre países da UE, harmonização de regulamentos fronteiriços e melhoramento de pontes e vias terrestres para a passagem de tanques e outras viaturas blindadas. Medidas que possam facilitar o transporte de equipamento pesado e a mobilização de tropas entre diferentes países na Europa. Uma preocupação que a NATO tem demonstrado perante o cenário de um eventual conflito com a Rússia, onde será precisa uma projecção rápida e eficaz de forças. "Actualmente, há barreiras administrativas e de infraestruturas que tornam difícil para o pessoal militar e equipamento se movimentar através da Europa. Muitas vezes, é mais fácil para um turista viajar pela UE do que o pessoal militar”, informou a ministra holandesa da Defesa, Ank Bijleveld, país que lidera este novo projecto em concreto. É um dos 46 projectos que neste momento estão a ser desenvolvidos no âmbito da PESCO, com naturezas e finalidades diferentes, que podem ir da logística à mobilidade militar, passando por sistemas militares de índole variada, cibersegurança ou comunicações.

Com a operacionalização da PESCO, que apenas não integra a Dinamarca e Malta, a UE parece estar finalmente a dar corpo a uma estratégia comum na investigação e desenvolvimento da sua indústria de Segurança e Defesa, ainda para mais, validada pelo Parlamento Europeu através do financiamento do EDF, dando-lhe um carácter mais democrático, que vai muito além das decisões circunscritas ao Conselho Europeu. Para quem acompanha estas questões no seio da UE, consegue elencar um rol de medidas que, durante anos, foram sendo anunciadas, muitas delas com grande pompa, mas sem qualquer efeito prático.

A PESCO corporiza essa vontade partilhada ao nível da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD), sendo um passo importante para ir ao encontro da tal “linguagem do poder” que Josep Borrell, Alto Representante da UE para a Política Externa e Política de Segurança, referia há tempos que a Europa teria que reaprender a falar. Além disso, a medida anunciada pelo ministro João Gomes Cravinho, e formalizada no Conselho Europeu dos ministros da Defesa da passada semana, tem um importante simbolismo, porque dá um sinal de reaproximação política nas relações entre os EUA e a Europa em matéria de Segurança e Defesa. No entanto, é importante relembrar que, apesar do distanciamento político-diplomático imposto pela administração de Trump em relação à segurança europeia, os aliados da NATO, incluindo os EUA, nunca descuraram os seus compromissos militares e operacionais no quadro dos objectivos da Aliança. A questão é que com esta nova parceria com os EUA no âmbito da PESCO, entra-se numa nova fase, na qual a UE assume as “despesas” em matéria de Segurança e Defesa num esforço comum e complementar com os interesses da NATO. Como o próprio João Gomes Cravinho reconheceu, cada organização tem vocações diferentes e, seguramente, à NATO não compete estar a reconstruir pontes em território europeu. Nesse sentido, a PESCO pode ser um mecanismo fundamental para a UE reforçar o seu contributo financeiro em prol da Segurança e Defesa transatlântica.

Texto publicado originalmente no Novo Semanário