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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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Para que servem as presidências rotativas do Conselho da UE?

Alexandre Guerra, 05.05.21

À medida que a União Europeia (UE) foi alargando e crescendo, mais dificuldade foi tendo em acomodar a sede de protagonismo político dos seus vários Estados-membros. Ao mesmo tempo, foi ficando mais complexa na sua estrutura de gestão política, adensando o intricado burocrático nas hierarquias de poder e precedências entre os vários órgãos institucionais europeus. O recente episódio do “sofagate” em Ancara – que num primeiro momento foi analisado à luz da intransigência turca ou do erro protocolar europeu (ambos os casos se verificaram) – é um bom exemplo dessa “competição” interna nos corredores de Bruxelas pela cadeira do poder. Uma disputa embaraçosa permitida pela indefinição política sobre quem é a figura de proa do edifício europeu, percebendo-se, por exemplo, a renitência cautelosa dos líderes internacionais antes de pegarem no telefone e ligarem para Bruxelas, não se vá dar o caso de ferirem inadvertidamente susceptibilidades, ora da presidência da Comissão Europeia, actualmente nas mãos de Ursula von der Leyen, ora da presidência do Conselho Europeu, detida neste momento por Charles Michel. A esta liderança bicéfala junta-se ainda a figura da presidência rotativa do Conselho da UE, instituída pelo Tratado de Lisboa, que, tendo uma função mais decorativa, não deixa de baralhar aqueles que, menos elucidados sobre estas nuances europeias, tentam descortinar “quem é quem?” na cúpula decisória e de poder do edifício europeu.

Esta sobreposição de cargos europeus resulta, em parte, de um acumular de legislação e tratados e de uma indefinição crónica sobre a delimitação das esferas de poderes políticos. Se nos sistemas políticos internos de cada Estado-membro as constituições definem claramente os contornos do regime e o “papel” do Presidente e do primeiro-ministro, já os tratados europeus não são propriamente claros na hierarquização das suas figuras de topo. Ou melhor dizendo, definem as suas funções e responsabilidades, mas são omissos na atribuição da relevância política, até porque nenhum desses cargos é sufragado pelos cidadãos europeus. Tudo isto deixa margem para uma interpretação criativa, e por vezes abusiva, por parte de quem ocupa os órgãos de poder, sobre onde acha que se deve sentar. Por exemplo, Von der Leyen considerou que tinha o direito de se sentar ao lado do Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, já Charles Michel parece ter tido uma perspectiva diferente sobre este “jogo” das cadeiras, que, na verdade, é uma disputa séria sobre a interpretação de ambos do seu próprio poder. A isto somam-se as dinâmicas das presidências rotativas do Conselho da UE que, em bom rigor, acrescentam pouco àquilo que é o “output” do sistema europeu.

As presidências rotativas são mais uma camada de burocracia institucional na liderança europeia, embora praticamente irrelevante naquilo que é o exercício de poder interno e, muito menos, no reconhecimento externo desse mesmo poder nas Relações Internacionais. É preciso assumir que estas presidências não existem propriamente por necessidade e são pouco fulcrais no exercício quotidiano dos desígnios europeus. A sua utilidade prática é questionável, já que dificilmente se poderá atribuir às presidências rotativas os créditos daquilo que é resultado do normal funcionamento dos órgãos europeus permanentes ou da acção político-diplomática das principais potências, França e Alemanha.

Dificilmente uma presidência rotativa inicia e concluiu um dossier específico, sendo que em muitos casos os “sucessos” dependem da casualidade dos calendários, permitindo que aquela possa celebrar uma determinada cimeira ou tratado, mas que é fruto de um processo complexo e moroso – como aconteceu com a presidência portuguesa de 2007, ao assinar o Tratado de Lisboa. Naturalmente que a arte diplomática de cada Estado-membro poderá facilitar e acelerar a conclusão de um dossier nos bastidores ou agilizar a realização de determinado evento, mas nada que altere o curso dos desígnios europeus ou que se substitua ao trabalho desenvolvido pelos órgãos competentes e serviços próprios da UE. Nas presidências rotativas cada Estado-membro define um programa próprio que se esgota ao fim do semestre. Sendo certo que existe em permanência uma troika de Estados-membros que procura assegurar a transição nas agendas programáticas das presidências rotativas, cada país não se coíbe de aproveitar o “palco” semestral para dar o seu cunho criativo na construção do projecto europeu.

Tendo em consideração o que acima foi exposto, admitamos que a mais-valia das presidências rotativas seja a promoção de um certo sentimento de pertença de cada Estado-membro ao projecto comum europeu. O problema é que esse sentimento fica confinado a determinadas elites e circuitos. Para a maioria dos cidadãos europeus, este conceito de presidência rotativa pouco ou nada diz. E se já olham com distanciamento para aqueles que são os órgãos tradicionais de topo da UE, quanto mais para uma presidência semestral, com pouco ou nenhum eco mediático no panorama nacional do Estado-membro presidente e muito menos nos outros países europeus. Com um elevado grau de certeza, diria que a maioria dos portugueses não faz qualquer ideia que Portugal ocupa a presidência rotativa da UE neste momento e muito menos identificará a sua finalidade.

 Além disso, as presidências rotativas acarretam um esforço adicional e uma “distração” aos governos dos Estados-membros. Por um lado, há uma mobilização de recursos humanos e financeiros que se inicia meses antes da presidência no âmbito dos trabalhos preparatórios da troika. Isto implica reorganizações internas nos ministérios, com realocação de profissionais e reagendamento de prioridades políticas. É também necessário contratar pessoal e serviços externos, com os impactos financeiros inerentes. Por outro lado, politicamente, uma presidência rotativa exige uma atenção quase total de alguns responsáveis máximos de um Governo, nomeadamente do primeiro-ministro ou do Presidente (dependendo do sistema). Além dos eventos públicos, diariamente são inúmeras as iniciativas de bastidores, entre reuniões de trabalho e actos protocolares.

A presidência rotativa da UE absorve uma parte da liderança governamental durante seis meses, sem que isso traga um retorno relevante na consolidação do projecto europeu. Nem sequer cumpre aquele objectivo vago de “aproximar os cidadãos à Europa”. Também a liderança política bicéfala da UE, partilhada entre Conselho e Comissão, deveria ser clarificada, não em termos das suas funções, mas na óptica da sua afirmação e projecção de poder. A simplificação e clarificação deste tríptico – presidência rotativa do Conselho da UE, presidência do Conselho Europeu, presidência da Comissão – seria um excelente ponto de partida de debate na Conferência Sobre o Futuro da Europa, mas que, infelizmente, não contemplará qualquer reforma institucional.

Esta iniciativa vai ser lançada formalmente no próximo Dia da Europa (9 de Maio) por António Costa, enquanto primeiro-ministro do país que ocupa actualmente a presidência rotativa do Conselho da UE. Será, sem dúvida, uma das marcas desta presidência que até ver, e por motivos vários – nomeadamente a pandemia Covid-19 –, não será tão luminosa como as três anteriores que o nosso País assumiu (1992, 2000 e 2007). Esta Conferência consiste “numa série de debates e discussões promovidos pelos cidadãos e que permitirão às pessoas de toda a Europa partilhar as suas ideias e ajudar a moldar o nosso futuro comum”. Uma definição algo vaga à qual a Comissão chama de “grande exercício democrático pan-europeu”, que proporcionará um “fórum público para travar um debate aberto, inclusivo e transparente com os cidadãos em torno de uma série de prioridades e desafios fundamentais”.

O princípio é meritório, mas os objectivos parecem ser demasiado dispersos e inconsequentes, residindo aqui uma diferença substancial com a célebre Convenção Sobre o Futuro da Europa, liderada pelo antigo Presidente francês, Giscard D’Estaing, e que tinha como propósito a reforma das instituições europeias. Se a actual Conferência abre espaço ao diálogo e à participação da sociedade civil, mas com um horizonte mais longínquo e menos evidente nas suas metas, já a Convenção circunscrevia-se a um circuito limitado de políticos e decisores, porém com impacto mais imediato e substancial na estrutura organizacional da UE.

Ou seja, a Convenção criada pelo Conselho Europeu de Nice, em Dezembro de 2000, teve uma abordagem mais técnica e burocrática, no entanto, distanciada dos cidadãos. Ao invés, a Conferência prestes a ser lançada propõe-se a algo mais alargado, num modelo de debates e conferências dispersos pelos Estados-membros que se prolongará até à Primavera do próximo ano, porém sem que se perceba bem qual a finalidade concreta deste exercício – se há coisa que a UE não tem falta é de conferências e debates.

Neste momento já é possível aceder a plataforma digital interactiva multilingue (https://futureu.europa.eu/) da Conferência, que permite aos cidadãos inscreverem-se em eventos ou debates e apresentarem as suas ideias e propostas relativas a diferentes áreas. Esta plataforma funcionará como uma espécie de hub, a partir do qual toda a informação será sistematizada e agregada para depois ser debatida em painéis de discussão e conferências descentralizadas. O ideal teria sido um modelo misto entre a Convenção e a Conferência, definindo-se, por um lado, objectivos claros e concretos e, por outro, permitindo a participação da sociedade civil. Dessa forma, eu teria a possibilidade de propor que se acabasse com as presidências rotativas do Conselho da UE e se hierarquizasse politicamente de forma inequívoca as presidências do Conselho Europeu e da Comissão Europeia.

Texto publicado originalmente no NOVO Semanário