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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O regresso do Estado e as esferas de influência

Alexandre Guerra, 15.04.20

Num acontecimento de proporções históricas como aquele que vivemos só o Estado poderá conduzir o seu povo ao tão almejado “pico” e trazê-lo para baixo sem que o caos e o desespero se instalem. Só ele tem o poder e a autoridade para tal feito. É a única construção política que reúne os recursos e elementos necessários para mobilizar a sociedade no seu todo. É a única entidade capaz de governar em tempo de “guerra”. Não está aqui em causa qualquer apreciação valorativa no âmbito da eterna discussão ideológica de qual deve ser o papel do Estado na vivência das sociedades. É sobretudo uma questão de necessidade, quase de sobrevivência, perante algo tão perturbador que se sobrepõe a todas as outras formas intermédias de organização social e política.  

Como diz o Professor Adriano Moreira no seu manual de Ciência Política, “sempre que se admite que existe alguma coisa superior ao homem, a alternativa comum é entre Deus e o Estado”. Se partirmos do princípio que até Deus está de “quarentena”, resta o Estado. Nas guerras e nos cataclismas regressa-se sempre à fórmula mais clássica, na qual o Estado toma conta dos “seus”, do seu povo. Ainda há uns dias, aqui no PÚBLICO, Jorge Almeida Fernandes, num artigo de opinião e Manuel Carvalho, em editorial, falavam precisamente no “regresso do Estado”. Talvez nem seja propriamente um regresso, mas sim um reassumir de protagonismo depois de vários anos remetido para uma certa secundarização face às “virtudes” da “aldeia global”, com o Estado despolitizado, confinado à sua função minimalista de regulador nos sistemas das democracias liberais. Provavelmente, seria aquilo que Raymond Aron chamava de apaziguamento ideológico, uma tese que, segundo Adriano Moreira, nos conduziria à ilação lógica de que o Estado tenderia mais para ser uma “administração de coisas do que um governo de pessoas”.

Abruptamente, a ameaça de um vírus num distante mercado chinês concretiza-se em contagem diária de mortes e infectados em todo o mundo. É uma “guerra”, dizem muitos. E desta vez verdadeiramente mundial, com praticamente todas as nações afectadas (ou infectadas). Os cidadãos planetários “desligam-se” apressadamente do mundo global e — provavelmente no maior movimento de massas de sempre da História em tão curto espaço de tempo – recolhem às suas fronteiras, aos seus lares. Em muitos casos, poderíamos falar num regresso às origens, à mais antiga forma de organização social: a família.

As sociedades ficam reduzidas aos serviços mínimos. Em modo de sobrevivência, impõem-se medidas drásticas em temos de confinamento social e, se calhar, pela primeira vez nas nossas vidas, somos confrontados brutalmente com essa verdade aristotélica de que “cada homem é inevitavelmente sócio de outro homem”. Neste cenário, com contornos distópicos, os cidadãos procuram segurança e liderança na única entidade que está em condições de lhes assegurar isso: o Estado. Tem sido ele que conduz os povos nos grandes combates, nos feitos e nas desgraças. O Estado chegou-se novamente à frente e, para o bem ou para o mal, também os seus líderes (não surpreendem os bons números que estudos de opinião atribuem a alguns governantes). Se analisarmos os três acontecimentos com implicações sistémicas dos últimos 80 anos, confirma-se essa realidade. Na hora do aperto, na “darkest hour”, é o Estado que lidera. Foi assim na II Guerra Mundial, no fim da Guerra Fria e no 11 de Setembro.

Ao compararmos estes tempos disruptivos com as duas crises do pós-II GM com reflexos sistémicos, conclui-se que nem o fim da Guerra Fria nem o 11 de Setembro provocaram perturbações desta dimensão na vivência das sociedades. Sabemos, no entanto, que estes dois momentos históricos tiveram implicações sistémicas imensas, especialmente os acontecimentos ocorridos entre 1989 e 1991, que representaram aquilo a que se chama “ruptura” no paradigma das relações internacionais. Momentos raros que nem todas as gerações têm o privilégio de viver. Por sua vez, o 11 de Setembro veio “clarificar” um pouco essa transição sistémica, ao pôr cobro ao sonho idílico da “paz kantiana” e ao deitar por terra, de uma vez por todas, algumas teorias interessantes, mas ingénuas, de que a história política e ideológica tinha acabado, perante aquilo que consideravam ser o triunfo absoluto da “hegemonia liberal”.

No seu recente livro “Guerra e Paz – Uma História Política do Mundo” (D. Quixote, 2019 [ed. Orig. 2018]), Jonathan Holslag, professor de Política Internacional na Universidade Livre de Bruxelas, observa isso mesmo: “Após a queda da União Soviética, o debate foi dominado por estudiosos optimistas, os chamados liberais, que defendiam a ideia de que as trocas comerciais tornavam as entidades políticas mais dependentes umas das outras e que essa interdependência tornava os conflitos mais dispendiosos, e os chamados construtivistas, que partiam do princípio de que as normas internacionais dissuadiam as entidades políticas de usarem a força umas contra as outras e que mesmo o seu próprio ADN poderia ser alterado, afastando-as de uma predisposição para uma maior concentração no bem comum” (considero que o conceito de “interdependência complexa” que Joseph S. Nye e Robert Keohane desenvolveram teve alguma validade até determinados limites).

As transições sistémicas podem demorar anos até que se perceba de forma clara a mudança de um paradigma para outro. Trinta anos, para todos os efeitos, não é assim tanto tempo em termos históricos. Por outro lado, é tempo suficiente para se perceber que a ideia inicial de um mundo unipolar ou unimultipolar liderado pelos Estados Unidos caiu por terra. Era o tal “Unipolar Moment” de que Charles Krauthammer falava em 1990. Ruiu o entusiasmo que muitos em Washington criaram sobre os escombros da União Soviética, na esperança de poderem exportar universalmente os valores da democracia e do liberalismo. Seria a vitória mundial das chamadas democracias liberais. Uma ingenuidade que os Estados Unidos (e não só) pagaram muito caro. De certa maneira, houve uma certa dificuldade por parte de vários sectores em Washington em aceitar a realidade sistémica do pós-Guerra Fria como ela é e não como alguns gostariam que fosse.

E por isso, Holslag acrescenta a vertente realista à sua reflexão: “Nos últimos anos, no entanto, a voz dos intelectuais politicamente realistas tornou-se mais audível. Eles acreditam que as entidades políticas sempre envidarão esforços por obter autonomia, segurança e poder; por consequência, é improvável que a cooperação e a paz sejam sustentáveis. O mundo mantém-se nas garras da anarquia, o que, para estudantes de política internacional, significa competição perpétua entre entidades políticas e a ausência de uma força duradoura que possa arbitrar ou resolver as suas disputas.”

O autor tem razão quando escreve que “esta transição de um idealismo optimista para um realismo pessimista não é nada de novo”. A História dá-nos inúmeros exemplos, sendo que talvez o caso mais recente nos remeta para o período do final da II GM e anos subsequentes, onde duas visões sistémicas se confrontaram sobre o que seria o mundo das décadas vindouras. Dois homens personificaram este embate de paradigmas, ambos “The Wise Men”, especialistas em assuntos soviéticos: Charles Bohlen, principal conselheiro do Presidente Franklin Roosevelt nestas matérias, e George F. Kennan, vice-chefe da missão americana em Moscovo logo a seguir à Guerra. A visão de “um mundo” pacificado e liderado pelos Estados Unidos preconizada por Bohlen não resistiu à perspectiva realista das “esferas de influência” e do “containment” defendida por Kennan.

Ciente das perversidades e males do regime de Estaline, Kennan não acreditava, no entanto, na ideia de um conflito directo entre as duas superpotências. A sua doutrina acabaria por favorecer uma solução intermédia de estabilidade e de “contenção” perante o avanço do comunismo na Europa e em diferentes partes do mundo. O seu pensamento ajudou a forjar o sistema bipolar da Guerra Fria que, em parte, viria assentar na “contenção” e na “dissuasão”, privilegiando-se, assim, a estabilidade sistémica através da manutenção de um status quo de equilíbrio de poderes, com momentos de fricção, mas sem confrontação directa. A tal Guerra Fria que mais tarde o sociólogo realista Raymond Aron viria a caracterizar de forma sábia, como um sistema onde “a paz é impossível, a guerra é improvável”.

É ainda cedo para se perceber as implicações sistémicas da crise que vivemos e que António Guterres classificou como sendo o maior desafio para as Nações Unidas desde a sua formação. Ou que Carl Bildt, ex-primeiro ministro sueco e diplomata com muita experiência em assuntos internacionais, nomeadamente nos Balcãs, considerou ser “a primeira grande crise do mundo pós-americano”. Como em qualquer crise na história política dos Estados, podemos estar perante acontecimentos que ajudem a consolidar e clarificar dinâmicas que se vinham afirmando nas relações internacionais.

Carlos Gaspar, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL), escreveu no brief de Março do Instituto de Defesa Nacional (IDN) que “a epidemia do novo coronavírus não é um ‘cisne negro’. Não é por sua causa que nada vai mudar no sistema internacional, mas o vírus pode ser um acelerador das mudanças dos últimos dez anos, patentes na erosão da ordem liberal internacional”. Também na sua coluna habitual no Expresso (4 de Abril), Miguel Monjardino, professor universitário e investigador em Relações Internacionais, sublinhou que nos últimos anos tem chamado a atenção “para a transição na ordem internacional e nas escolhas estratégicas das principais potências mundiais”. E acrescenta: “A pandemia está a ocultar todo este processo histórico, que continua em curso. O aumento da competição entre os EUA e a China, o enfraquecimento das instituições internacionais ou a proteção de sectores tecnológicos considerados estratégicos para a segurança nacional não começaram no final de 2019”. Para Miguel Monjardino, “a covid-19 está a funcionar como catalisador” de algo que, no entanto, não pode ser visto de forma determinista. Henrique Burnay, consultor em assuntos europeus, partilha igualmente dessa visão ao observar no DN (6 de Abril) que “a pandemia acelerou, mais do que revolucionou” a dinâmica que se tem vindo a verificar relativamente ao papel dos Estados Unidos no sistema internacional.

Parece haver algum consenso entre analistas na área das Relações Internacionais de que a actual crise que se vive, embora possa provocar algumas mudanças nas sociedades, não é por si só factor de ruptura no sistema internacional. Não é o tal “cisne negro”. Poderá ser sim, o “catalisador”, o “acelerador” para a solidificação do novo paradigma das relações internacionais. Ao fim de 30 anos de transição sistémica, esta pandemia dissipou os sonhos que ainda restavam de alguns iludidos em Washington que acreditavam cegamente nas virtudes daquilo que poderia ser um poder hegemónico dos Estados Unidos no mundo.

Hoje, são obrigados a aceitar que estão numa competição sistémica com a China, mas também com a Rússia. E espera-se que, para bem da União Europeia, também esta possa vir a ser uma “competidora” nas relações internacionais.   

Nesta linha de pensamento, Graham Allison, ainda antes de esta crise ter atingido as proporções que conhecemos, admitia que Washington parece ter finalmente despertado para a realidade tal como ela é, onde existe competição com outras duas grandes potências, a Rússia e a China. “Para os Estados Unidos, isso implica ter que aceitar a realidade que existem esferas de influência no mundo de hoje – e que nem todas elas são esferas americanas.” . Efectivamente, estas “novas esferas de influência” de que fala Graham Allison não são uma realidade que decorrem da actual crise. “As esferas de influência [no pós-Guerra Fria] deram lugar a uma esfera de influência [americana]. O mais forte impôs a sua vontade sobre o fraco; o resto do mundo foi compelido a jogar sob as regras americanas, se não enfrentava um preço alto a pagar, desde sanções agressivas a mudanças de regime. As esferas de influência não desapareceram; elas colapsaram numa só, sob o poder esmagador de facto da hegemonia dos Estados Unidos. Agora, no entanto, essa hegemonia está a esbater-se e Washington acordou para aquilo que se chama uma ‘nova era de competição pelo grande poder’”.

Basta uma análise simples para facilmente se constatar que, nos últimos anos, essas esferas de influência em termos territoriais foram ganhando força, sem que Washington tivesse doutrinado sobre esse paradigma, limitando-se a aceitá-lo tácita e cinicamente. Por exemplo, em pouco mais de dez anos, a Rússia invadiu a Abecásia e a Ossétia do Sul, declarando-as como “Estados independentes”. E anexou “de facto” a região de Donbass, no Leste da Ucrânia, e a Península da Crimeia. Da parte de Washington, ao bom e velho estilo da Guerra Fria, o caminho esteve sempre livre para Moscovo investir no seu “espaço vital”. Mais recentemente, a intervenção da Rússia no conflito da Síria trouxe ao de cima os antigos jogos geoestratégicos tão característicos das dinâmicas de competição e de partilha de poder nas relações internacionais. Esta análise aplica-se igualmente a Pequim que, nos anos mais recentes, procedeu em força à militarização do Mar do Sul da China. Ao mesmo tempo lançou uma autêntica ofensiva territorial e económica denominada “Belt and Road Initiative”, que mais não é do que alargar a influência chinesa a vários Estados. Também a opressão brutal da minoria uigure e a repressão das manifestações pró-democracia em Hong Kong foi outro exercício de poder autoritário, totalmente condenável à luz dos Direitos Humanos. Perante tudo isto, e tirando algumas declarações mediáticas inconsequentes e manobras de diversão da Marinha de guerra dos Estados Unidos, Washington foi aceitando este status quo. Naturalmente que estas esferas de influência vão continuar a ser reforçadas com outras componentes além da militar, tais como a económica, a tecnológica ou a científica.

A pandemia que se vive deverá ter destruído as ilusões daqueles que ainda acreditavam em soluções globais. Há apenas quatro meses, o mundo estava confrontado com a falência do combate político universal às alterações climáticas. Os líderes não se entendiam e os compromissos foram atirados para um futuro longínquo. A crise do Covid-19 colocou igualmente os países perante um problema global cuja resposta tem sido nacional. O esforço é internacional, mas há pouca cooperação transnacional. A “competição” adensou-se. E mesmo quando se fala em colaboração científica entre nações, o que se verifica é uma autêntica “corrida” à descoberta da cura para a doença, que é também uma competição de poder e de liderança entre os EUA e a China.

Sem certezas absolutas sobre o paradigma que enquadrará as relações internacionais nas próximas décadas, foram acima expostos elementos que nos permitem antecipar sistemicamente as próximas décadas. Claro está que é sempre um exercício com algum grau especulativo, mas relativamente confortável, porque só a médio e longo prazo conseguiremos ter uma ideia clara da evolução do sistema internacional e perceber o quanto esta crise foi importante na sua consolidação.

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.