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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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Czares da Rússia, o primeiro e o actual

Alexandre Guerra, 10.05.21

Nos tempos recentes o autoritarismo do regime russo tem vindo a ficar mais musculado, com a introdução de uma série de medidas que, por um lado, reforçam e perpetuam o poder de Vladimir Putin e, por outro, instituem de forma brutal e audível o factor medo junto dos actuais e potenciais opositores. A estratégia não é nova, mas se outrora havia uma certa dissimulação na sua concretização ou alguma preocupação do regime em tentar disfarçar associações directas do Kremlin a tudo o que eram manobras ou acções para silenciar opositores indesejáveis ou oligarcas rivais, agora as coisas começam a ser feitas às claras, assumidas política e publicamente por Putin. Como referia há dias Mark Galeotti, especialista em assuntos russos, num interessante artigo no The Moscow Times, durante estes últimos vinte anos a Rússia viveu num regime de “autoritarismo pós-moderno”. Era algo “híbrido” em que a relação de poder entre o Kremlin e a sociedade russa não assentava tanto na força e no medo, mas antes numa narrativa de grandeza patriótica e de nacionalismo exacerbado, alimentada por uma certa ideia romântica de renascimento russo e por uma exortação quase bélica contra os inimigos internos e externos da “Mother Russia”.

Importa recordar que, naquilo que foi a sua construção de poder, Putin beneficiou da anarquia herdada do então Presidente Boris Yeltsin, que conduziu a Rússia e o orgulho do seu povo à sarjeta da História. Em contraste absoluto, Putin emergiu aos olhos dos russos como um novo Czar, o líder que iria restituir a dignidade perdida. Durante vinte anos, este modelo de governação foi resultando, com Putin a manter taxas de popularidade muito elevadas e com a oposição interna reduzida a alguns casos pontuais, mais mediatizados pela imprensa internacional do que propriamente potenciadores de movimentos contestatários internos. No entanto, foram-se abrindo algumas brechas na sociedade e nas elites, ao mesmo tempo que a popularidade de Putin foi descendo. Por exemplo, há cinco anos, andava à volta dos 80 por cento, actualmente rondará os 60. Muito alta ainda, mas a decrescer.

Aos 68 anos e após duas décadas de poder incontestado, Putin percebeu que chegara a hora de reajustar a estratégia e assumir de forma desinibida o seu autoritarismo. Nestes primeiros meses de 2021 já formalizou alterações constitucionais necessárias para que possa servir durante mais dois mandatos, o que é o mesmo que dizer que se manterá no Kremlin até, pelo menos, 2036. Caminho aberto para a perpetuação de poder. Deteve sem qualquer hesitação ou camuflagem o seu principal rival à chegada ao aeroporto de Moscovo, indiferente ao aparato mediático ou às pressões internacionais, ou ainda a eventuais consequências internas provocadas por movimentos contestatários. E há dias, Alexei Navalny foi declarado como inimigo público da Rússia e a sua organização classificada como “terrorist-linked”. Pelo meio, restringiu o trabalho dos meios de comunicação social internacionais no país, classificando-os como foreign agents. Como se não bastasse, na passada Sexta-feira assinou uma lei em que exige aos meios de comunicação nacionais que, sempre que repliquem uma notícia de um destes órgãos estrangeiros, tenham que citar a fonte como foreign agents. E ainda houve tempo para uma mobilização massiva de poder de fogo para a fronteira com a Ucrânia e costa do Mar Negro.

Putin intensifica a repressão e reforça o seu controlo, evolui no modelo de “autoritarismo pós-moderno”, para o que Galeotti chama de “autoritarismo pós-pós-moderno”, o que na prática representa um regresso ao “autoritarismo à moda antiga”, em linha com aquilo que tem sido o comportamento histórico dos vários líderes russos desde os tempos de Ivan III (1440-1505). A este propósito eu escrevia em 2015 no Público um artigo sobre a longa história de autoritarismo na Rússia, no qual sustentava a tese de que havia quase como que uma espécie de predisposição da sociedade russa para aceitar essa forma de Governo. Uma ideia sustentada por vários estudos sociológicos e defendida, em certa medida, por Richard Pipes, um dos maiores especialistas da Rússia, falecido em 2018, com mais de 90 anos.

É preciso relembrar que, desde os tempos da sua formação enquanto reino, a Rússia tem sido uma região muito especial no que à dinâmica entre governantes e governados diz respeito. Para quem conhece e segue a história das lideranças russas, constatará uma tendência crónica para o autoritarismo (já para não falar em totalitarismo, nalguns períodos). É uma evidência histórica. Quando no século XV Moscovo era ainda um Principado, o Grão-Príncipe Ivan III foi o primeiro líder russo a adoptar uma política clara de agregação de vários territórios no sentido de unificar um Estado grande e poderoso. Influenciado pela tradição política mongol, e à semelhança do que iria acontecer com todos os governantes russos até aos dias de hoje, Ivan III impôs um estilo autocrático na prossecução dos seus objectivos. Embora não fosse propriamente um líder sanguinário, nunca deixou de recorrer à violência sempre que não conseguia alcançar os seus propósitos pela via negocial. É através de uma lógica agressiva que vai conquistando alguns territórios para a Rússia que ainda estavam sob jugo mongol-tártaro. Para aquele líder, Moscovo tinha que se assumir como um pólo imperial. E, para isso, era preciso transformar o Principado num centro metropolitano da Igreja, ou seja, a “Terceira Roma”.

O estilo autocrático dos poderes de Roma e de Constantinopla foram uma inspiração para Ivan III, inspiração essa que se tornou uma marca no estilo de liderança russa. Moscovo passava a ser o centro da Igreja Ortodoxa e esta assumia-se como um instrumento fundamental para a sua legitimação junto do povo e como correia de transmissão entre o poder e a sociedade feudal. Basta ver a forma como todos os líderes russos, incluindo Vladimir Putin, se relacionam com os patriarcas ortodoxos e percebe-se a proximidade entre a Igreja e o Estado.

Quando morreu, Ivan III deixou um Estado russo independente, centralizado e poderoso, tendo Moscovo como capital e um vasto território. Introduziu a cerimónia da coroação e foi o primeiro a denominar-se Czar da Rússia. Hoje, e apesar da tal título ter desaparecido do léxico russo com a Revolução de 1917, Putin continua a personificar o espírito dessa figura autoritária, poderosa e quase semi-divina. Em muitos aspectos, poucas diferenças há entre Ivan III e Vladimir Putin. Na verdade, ao longo dos séculos, os traços de autoritarismo e, por vezes, de algum totalitarismo aliado a uma violência extrema, estiveram sempre presentes na forma de governar dos líderes russos. Putin não é mais do que um Czar dos tempos modernos.

Porém, houve um processo evolutivo na entronização de Putin. Quando a 9 de Agosto de 1999 o então Presidente Yeltsin demitia o seu Governo e apresentava ao mundo uma nova figura na vida política russa, poucos eram aqueles que conheciam Vladimir Putin. Aos 46 anos, Putin, ligado ao círculo de São Petersburgo, e antigo oficial do KGB (serviços secretos), assumia a chefia do novo Executivo, com a motivação manifestada por Yeltsin de que gostaria de vê-lo como seu sucessor nas eleições presidenciais de 2000. Segundo alguns registos, Putin nunca terá tido a intenção de seguir uma carreira política, no entanto, teve sempre um alto sentido de servidão ao Estado, como aliás fica bem evidente na biografia de Steven Lee Myers, "O Novo Czar" (2015, Edições 70). Na altura, terá confessado que jamais tinha pensado no Kremlin, mas outros valores se erguiam: “We are military men, and we will implement the decision that has been made”, disse Putin.

Muitos viram na decisão de Yeltsin o corolário de uma carreira recheada de erros e que conduzira o país ao caos e anarquia. A ascensão de Putin era vista como mais um erro. Citado pelo The Moscow Times, Boris Nemtsov, então um dos líderes do bloco dos "jovens reformistas" na Duma e que viria a ser assassinado em Fevereiro de 2015, disse que Putin causou uma fraca impressão na primeira intervenção naquela câmara. "Não era carismático. Era fraco." Também ao mesmo jornal, Nikolai Petrov, do Carnegie Moscow Center, relembrava que Putin deixou uma "patética imagem", sendo um desconhecido dos grandes círculos políticos e que demonstrava ter pouco à vontade com aparições públicas, chegando mesmo a ter alguns comportamentos provincianos. Apesar disso, a Duma acabaria por aprovar a sua nomeação para a liderança do Governo, embora por uma margem mínima.

É preciso não esquecer que Putin reunia apoio nalguns sectores, nomeadamente naqueles ligados aos serviços de segurança, que o viam como um homem inteligente e com grandes qualidades pessoais. E, efectivamente, após ter assumido os desígnios do Governo, Putin começou de imediato a colmatar algumas das suas falhas, nomeadamente ao nível de comunicação, e a desenvolver capacidades que se viriam a revelar fundamentais na sua vida política. É o próprio Nemtsov que reconheceu o facto de Putin se ter tornado mais agressivo e carismático, dando às pessoas a imagem do governante que os russos prezam. Características que se encaixaram na perfeição ao estilo musculado necessário para responder às explosões que ocorreram em blocos de apartamentos de três cidades russas, incluindo Moscovo, em Setembro de 1999, vitimando sensivelmente 300 pessoas, colocando o tema da segurança no topo da agenda da vida política russa, para nunca mais sair de lá. Em Outubro desse ano, como resposta, Putin dava ordem para o envio de tropas para a Chechénia. O novo Czar mostrava-se ao povo russo como um guerreiro implacável. 

Nas eleições presidenciais de 2000, Putin obteve 53 por cento dos votos, contrastando com os 71 por cento conquistados quatro anos mais tarde. Por imposição constitucional ficou impedido de concorrer a um terceiro mandato presidencial. Putin teve então de fazer uma passagem pela chefia do Governo entre 2008 e 2012, mas era claro que não tinha verdadeiras intenções de deixar os desígnios da nação nas mãos do novo ocupante do Kremlin. Conhecendo-se um pouco da história política russa e da sua liderança, facilmente se chegaria à conclusão que Putin era o homem por detrás do poder, enquanto o novo Presidente em exercício, Dimitri Medvedev, seria apenas um "fantoche". Medvedev compreendeu bem o seu papel nesta lógica de coabitação, remetendo-se praticamente a uma mera representação institucional, sem ousar discutir com Putin a liderança da política russa. Como na altura se constatou, a forma seria apenas um pormenor porque o que estava em causa era a substância da decisão. Ouvido na altura pela rádio Ekho Moskvy, o analista russo Gleb Pavlovsky ia directo à questão central: "We can forget our favourite cliche that the president is tsar in Russia." E neste caso o Czar é Vladimir Putin que tanto o poderia ser na presidência (Kremlin), na chefia do Governo ou noutro cargo qualquer, desde que fizesse as devidas alterações constitucionais e que continuasse acompanhado dos seus siloviki.

Texto publicado originalmente no Novo Semanário