A primeiríssima coisa que Guterres deve fazer
Um dos primeiro trabalhos hercúleos de António Guterres, nas suas novas funções de Secretário-Geral das Nações Unidas, não será nenhum daqueles que a imprensa internacional tem avançado. A sua prioridade imediata deverá centrar-se na missão dos capecetes azuis que está destacada no Sudão do Sul. Cinco anos depois da sua independência, celebrada, diga-se, com grande apoio e entusiasmo dos líderes ocidentais, que, nestas coisas, costumam meter o realismo político de lado ao deixarem-se invadir por um idealismo tolo e irresponsável, o Sudão do Sul é hoje mais um Estado à deriva, com um tecido social retalhado e uma economia de rastos. O país está a saque e refém das vontades e caprichos do suposto "pai" da independência, Salva Kiir, um autêntico "cowboy", que, na boa e velha tradição das lideranças africanas, rapidamente revelou as suas tentações interesseiras e despóticas. Em Julho, a violência na capital Juba tornou-se demasiado evidente e a situação bastante ruidosa, obrigando os EUA, através da sua Conselheira de Segurança Nacional, Susan Rice, a pronunciarem-se com aquelas declarações já habituais, que têm tanto de inócuo como de incompetentes:“Esta violência sem sentido e indesculpável – levada a cabo por quem, mais uma vez, coloca os interesses pessoais acima do bem-estar do seu país e do seu povo – coloca em risco tudo aquilo a que o povo sul-sudanês aspirou nos últimos cinco anos”, disse Rice em comunicado.
Agora, veio a confirmação daquilo que já há muito era falado, de que a UNMISS, composta por 12500 homens, não está a envidar todos os esforços na prossecução do seu mandato. De acordo com um relatório do Center for Civilians Conflict (Civic), baseado em Washington, vários capacetes azuis, nomeadamente chineses e etíopes, recusaram-se a sair do Quartel-General da ONU em Juba, nos acontecimentos de Julho último, para irem proteger os civis que estavam a ser alvo de ataques de soldados governamentais num outro local da cidade. Foi ordenada à Quick Reaction Force (QRF) da UNMISS que interviesse para proteger os civis, mas não o fez. Entretanto, segundo relatos, houve outros capacetes azuis que se retiraram do local do conflito, quando tinham ordens contrárias para fazer o "engage" nos confrontos que opunham soldados governamentais leais ao Presidente Salva Kiir e forças rebeldes lideradas por Riek Machar. Informa agora este relatório que os soldados chineses chegaram mesmo a deixar para trás as suas armas e material à medida que fugiam para o Quartel-General, local para onde se dirigiram também centenas de civis, que tentaram passar pelo arame farpado em busca de auxílio.
Estes acontecimentos, que têm algum histórico no âmbito das missões de "peace keeping", têm ensombrado as Nações Unidas, a sua reputação no terreno, tendo o massacre de Srebrenica, ocorrido em Julho de 1995, e onde morreram quase 8 mil bósnios muçulmanos (bosniaks) às mãos do comandante sérvio Ratko Mladic, sido o exemplo mais dramático dessa debilidade. Relembre-se que Srebrenica seria supostamente uma “safe area” sob a guarda da ONU, mais concretamente dos “capacetes azuis” holandeses. A limitação das “rules of engagement” e a incapacidade da cadeia de comando sob o “badge” da UNPROFOR de alterar um mandato totalmente desajustado à evolução dos acontecimentos no terreno permitiu, de certa forma, que aqueles acontecimentos horrendos tivessem lugar e, por isso, o tribunal não veio responsabilizar os soldados holandeses pela totalidades das mortes. O que se passou agora no Sudão teve consequências menos dramáticas, mas não deixa de assumir contornos muito graves, porque a cadeia de comando da UNMISS não funcionou, desrespeitando o seu mandato e, acima de tudo, colocando em perigo a vida de civis.
Além dos temas "quentes" que têm estado no topo da agenda mediática, muitos deles a serem tratados num nível político-diplomático, o que se passa com a missão da ONU no Sudão do Sul implica directamente questões relacionadas com a capacidade de comando e operacional das forças da ONU e, por isso, António Guterres tem a obrigação e os instrumentos para actuar de imediato naquilo que está muita mal na sua própria "casa".