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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O regresso do Estado e as esferas de influência

Alexandre Guerra, 15.04.20

Num acontecimento de proporções históricas como aquele que vivemos só o Estado poderá conduzir o seu povo ao tão almejado “pico” e trazê-lo para baixo sem que o caos e o desespero se instalem. Só ele tem o poder e a autoridade para tal feito. É a única construção política que reúne os recursos e elementos necessários para mobilizar a sociedade no seu todo. É a única entidade capaz de governar em tempo de “guerra”. Não está aqui em causa qualquer apreciação valorativa no âmbito da eterna discussão ideológica de qual deve ser o papel do Estado na vivência das sociedades. É sobretudo uma questão de necessidade, quase de sobrevivência, perante algo tão perturbador que se sobrepõe a todas as outras formas intermédias de organização social e política.  

Como diz o Professor Adriano Moreira no seu manual de Ciência Política, “sempre que se admite que existe alguma coisa superior ao homem, a alternativa comum é entre Deus e o Estado”. Se partirmos do princípio que até Deus está de “quarentena”, resta o Estado. Nas guerras e nos cataclismas regressa-se sempre à fórmula mais clássica, na qual o Estado toma conta dos “seus”, do seu povo. Ainda há uns dias, aqui no PÚBLICO, Jorge Almeida Fernandes, num artigo de opinião e Manuel Carvalho, em editorial, falavam precisamente no “regresso do Estado”. Talvez nem seja propriamente um regresso, mas sim um reassumir de protagonismo depois de vários anos remetido para uma certa secundarização face às “virtudes” da “aldeia global”, com o Estado despolitizado, confinado à sua função minimalista de regulador nos sistemas das democracias liberais. Provavelmente, seria aquilo que Raymond Aron chamava de apaziguamento ideológico, uma tese que, segundo Adriano Moreira, nos conduziria à ilação lógica de que o Estado tenderia mais para ser uma “administração de coisas do que um governo de pessoas”.

Abruptamente, a ameaça de um vírus num distante mercado chinês concretiza-se em contagem diária de mortes e infectados em todo o mundo. É uma “guerra”, dizem muitos. E desta vez verdadeiramente mundial, com praticamente todas as nações afectadas (ou infectadas). Os cidadãos planetários “desligam-se” apressadamente do mundo global e — provavelmente no maior movimento de massas de sempre da História em tão curto espaço de tempo – recolhem às suas fronteiras, aos seus lares. Em muitos casos, poderíamos falar num regresso às origens, à mais antiga forma de organização social: a família.

As sociedades ficam reduzidas aos serviços mínimos. Em modo de sobrevivência, impõem-se medidas drásticas em temos de confinamento social e, se calhar, pela primeira vez nas nossas vidas, somos confrontados brutalmente com essa verdade aristotélica de que “cada homem é inevitavelmente sócio de outro homem”. Neste cenário, com contornos distópicos, os cidadãos procuram segurança e liderança na única entidade que está em condições de lhes assegurar isso: o Estado. Tem sido ele que conduz os povos nos grandes combates, nos feitos e nas desgraças. O Estado chegou-se novamente à frente e, para o bem ou para o mal, também os seus líderes (não surpreendem os bons números que estudos de opinião atribuem a alguns governantes). Se analisarmos os três acontecimentos com implicações sistémicas dos últimos 80 anos, confirma-se essa realidade. Na hora do aperto, na “darkest hour”, é o Estado que lidera. Foi assim na II Guerra Mundial, no fim da Guerra Fria e no 11 de Setembro.

Ao compararmos estes tempos disruptivos com as duas crises do pós-II GM com reflexos sistémicos, conclui-se que nem o fim da Guerra Fria nem o 11 de Setembro provocaram perturbações desta dimensão na vivência das sociedades. Sabemos, no entanto, que estes dois momentos históricos tiveram implicações sistémicas imensas, especialmente os acontecimentos ocorridos entre 1989 e 1991, que representaram aquilo a que se chama “ruptura” no paradigma das relações internacionais. Momentos raros que nem todas as gerações têm o privilégio de viver. Por sua vez, o 11 de Setembro veio “clarificar” um pouco essa transição sistémica, ao pôr cobro ao sonho idílico da “paz kantiana” e ao deitar por terra, de uma vez por todas, algumas teorias interessantes, mas ingénuas, de que a história política e ideológica tinha acabado, perante aquilo que consideravam ser o triunfo absoluto da “hegemonia liberal”.

No seu recente livro “Guerra e Paz – Uma História Política do Mundo” (D. Quixote, 2019 [ed. Orig. 2018]), Jonathan Holslag, professor de Política Internacional na Universidade Livre de Bruxelas, observa isso mesmo: “Após a queda da União Soviética, o debate foi dominado por estudiosos optimistas, os chamados liberais, que defendiam a ideia de que as trocas comerciais tornavam as entidades políticas mais dependentes umas das outras e que essa interdependência tornava os conflitos mais dispendiosos, e os chamados construtivistas, que partiam do princípio de que as normas internacionais dissuadiam as entidades políticas de usarem a força umas contra as outras e que mesmo o seu próprio ADN poderia ser alterado, afastando-as de uma predisposição para uma maior concentração no bem comum” (considero que o conceito de “interdependência complexa” que Joseph S. Nye e Robert Keohane desenvolveram teve alguma validade até determinados limites).

As transições sistémicas podem demorar anos até que se perceba de forma clara a mudança de um paradigma para outro. Trinta anos, para todos os efeitos, não é assim tanto tempo em termos históricos. Por outro lado, é tempo suficiente para se perceber que a ideia inicial de um mundo unipolar ou unimultipolar liderado pelos Estados Unidos caiu por terra. Era o tal “Unipolar Moment” de que Charles Krauthammer falava em 1990. Ruiu o entusiasmo que muitos em Washington criaram sobre os escombros da União Soviética, na esperança de poderem exportar universalmente os valores da democracia e do liberalismo. Seria a vitória mundial das chamadas democracias liberais. Uma ingenuidade que os Estados Unidos (e não só) pagaram muito caro. De certa maneira, houve uma certa dificuldade por parte de vários sectores em Washington em aceitar a realidade sistémica do pós-Guerra Fria como ela é e não como alguns gostariam que fosse.

E por isso, Holslag acrescenta a vertente realista à sua reflexão: “Nos últimos anos, no entanto, a voz dos intelectuais politicamente realistas tornou-se mais audível. Eles acreditam que as entidades políticas sempre envidarão esforços por obter autonomia, segurança e poder; por consequência, é improvável que a cooperação e a paz sejam sustentáveis. O mundo mantém-se nas garras da anarquia, o que, para estudantes de política internacional, significa competição perpétua entre entidades políticas e a ausência de uma força duradoura que possa arbitrar ou resolver as suas disputas.”

O autor tem razão quando escreve que “esta transição de um idealismo optimista para um realismo pessimista não é nada de novo”. A História dá-nos inúmeros exemplos, sendo que talvez o caso mais recente nos remeta para o período do final da II GM e anos subsequentes, onde duas visões sistémicas se confrontaram sobre o que seria o mundo das décadas vindouras. Dois homens personificaram este embate de paradigmas, ambos “The Wise Men”, especialistas em assuntos soviéticos: Charles Bohlen, principal conselheiro do Presidente Franklin Roosevelt nestas matérias, e George F. Kennan, vice-chefe da missão americana em Moscovo logo a seguir à Guerra. A visão de “um mundo” pacificado e liderado pelos Estados Unidos preconizada por Bohlen não resistiu à perspectiva realista das “esferas de influência” e do “containment” defendida por Kennan.

Ciente das perversidades e males do regime de Estaline, Kennan não acreditava, no entanto, na ideia de um conflito directo entre as duas superpotências. A sua doutrina acabaria por favorecer uma solução intermédia de estabilidade e de “contenção” perante o avanço do comunismo na Europa e em diferentes partes do mundo. O seu pensamento ajudou a forjar o sistema bipolar da Guerra Fria que, em parte, viria assentar na “contenção” e na “dissuasão”, privilegiando-se, assim, a estabilidade sistémica através da manutenção de um status quo de equilíbrio de poderes, com momentos de fricção, mas sem confrontação directa. A tal Guerra Fria que mais tarde o sociólogo realista Raymond Aron viria a caracterizar de forma sábia, como um sistema onde “a paz é impossível, a guerra é improvável”.

É ainda cedo para se perceber as implicações sistémicas da crise que vivemos e que António Guterres classificou como sendo o maior desafio para as Nações Unidas desde a sua formação. Ou que Carl Bildt, ex-primeiro ministro sueco e diplomata com muita experiência em assuntos internacionais, nomeadamente nos Balcãs, considerou ser “a primeira grande crise do mundo pós-americano”. Como em qualquer crise na história política dos Estados, podemos estar perante acontecimentos que ajudem a consolidar e clarificar dinâmicas que se vinham afirmando nas relações internacionais.

Carlos Gaspar, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL), escreveu no brief de Março do Instituto de Defesa Nacional (IDN) que “a epidemia do novo coronavírus não é um ‘cisne negro’. Não é por sua causa que nada vai mudar no sistema internacional, mas o vírus pode ser um acelerador das mudanças dos últimos dez anos, patentes na erosão da ordem liberal internacional”. Também na sua coluna habitual no Expresso (4 de Abril), Miguel Monjardino, professor universitário e investigador em Relações Internacionais, sublinhou que nos últimos anos tem chamado a atenção “para a transição na ordem internacional e nas escolhas estratégicas das principais potências mundiais”. E acrescenta: “A pandemia está a ocultar todo este processo histórico, que continua em curso. O aumento da competição entre os EUA e a China, o enfraquecimento das instituições internacionais ou a proteção de sectores tecnológicos considerados estratégicos para a segurança nacional não começaram no final de 2019”. Para Miguel Monjardino, “a covid-19 está a funcionar como catalisador” de algo que, no entanto, não pode ser visto de forma determinista. Henrique Burnay, consultor em assuntos europeus, partilha igualmente dessa visão ao observar no DN (6 de Abril) que “a pandemia acelerou, mais do que revolucionou” a dinâmica que se tem vindo a verificar relativamente ao papel dos Estados Unidos no sistema internacional.

Parece haver algum consenso entre analistas na área das Relações Internacionais de que a actual crise que se vive, embora possa provocar algumas mudanças nas sociedades, não é por si só factor de ruptura no sistema internacional. Não é o tal “cisne negro”. Poderá ser sim, o “catalisador”, o “acelerador” para a solidificação do novo paradigma das relações internacionais. Ao fim de 30 anos de transição sistémica, esta pandemia dissipou os sonhos que ainda restavam de alguns iludidos em Washington que acreditavam cegamente nas virtudes daquilo que poderia ser um poder hegemónico dos Estados Unidos no mundo.

Hoje, são obrigados a aceitar que estão numa competição sistémica com a China, mas também com a Rússia. E espera-se que, para bem da União Europeia, também esta possa vir a ser uma “competidora” nas relações internacionais.   

Nesta linha de pensamento, Graham Allison, ainda antes de esta crise ter atingido as proporções que conhecemos, admitia que Washington parece ter finalmente despertado para a realidade tal como ela é, onde existe competição com outras duas grandes potências, a Rússia e a China. “Para os Estados Unidos, isso implica ter que aceitar a realidade que existem esferas de influência no mundo de hoje – e que nem todas elas são esferas americanas.” . Efectivamente, estas “novas esferas de influência” de que fala Graham Allison não são uma realidade que decorrem da actual crise. “As esferas de influência [no pós-Guerra Fria] deram lugar a uma esfera de influência [americana]. O mais forte impôs a sua vontade sobre o fraco; o resto do mundo foi compelido a jogar sob as regras americanas, se não enfrentava um preço alto a pagar, desde sanções agressivas a mudanças de regime. As esferas de influência não desapareceram; elas colapsaram numa só, sob o poder esmagador de facto da hegemonia dos Estados Unidos. Agora, no entanto, essa hegemonia está a esbater-se e Washington acordou para aquilo que se chama uma ‘nova era de competição pelo grande poder’”.

Basta uma análise simples para facilmente se constatar que, nos últimos anos, essas esferas de influência em termos territoriais foram ganhando força, sem que Washington tivesse doutrinado sobre esse paradigma, limitando-se a aceitá-lo tácita e cinicamente. Por exemplo, em pouco mais de dez anos, a Rússia invadiu a Abecásia e a Ossétia do Sul, declarando-as como “Estados independentes”. E anexou “de facto” a região de Donbass, no Leste da Ucrânia, e a Península da Crimeia. Da parte de Washington, ao bom e velho estilo da Guerra Fria, o caminho esteve sempre livre para Moscovo investir no seu “espaço vital”. Mais recentemente, a intervenção da Rússia no conflito da Síria trouxe ao de cima os antigos jogos geoestratégicos tão característicos das dinâmicas de competição e de partilha de poder nas relações internacionais. Esta análise aplica-se igualmente a Pequim que, nos anos mais recentes, procedeu em força à militarização do Mar do Sul da China. Ao mesmo tempo lançou uma autêntica ofensiva territorial e económica denominada “Belt and Road Initiative”, que mais não é do que alargar a influência chinesa a vários Estados. Também a opressão brutal da minoria uigure e a repressão das manifestações pró-democracia em Hong Kong foi outro exercício de poder autoritário, totalmente condenável à luz dos Direitos Humanos. Perante tudo isto, e tirando algumas declarações mediáticas inconsequentes e manobras de diversão da Marinha de guerra dos Estados Unidos, Washington foi aceitando este status quo. Naturalmente que estas esferas de influência vão continuar a ser reforçadas com outras componentes além da militar, tais como a económica, a tecnológica ou a científica.

A pandemia que se vive deverá ter destruído as ilusões daqueles que ainda acreditavam em soluções globais. Há apenas quatro meses, o mundo estava confrontado com a falência do combate político universal às alterações climáticas. Os líderes não se entendiam e os compromissos foram atirados para um futuro longínquo. A crise do Covid-19 colocou igualmente os países perante um problema global cuja resposta tem sido nacional. O esforço é internacional, mas há pouca cooperação transnacional. A “competição” adensou-se. E mesmo quando se fala em colaboração científica entre nações, o que se verifica é uma autêntica “corrida” à descoberta da cura para a doença, que é também uma competição de poder e de liderança entre os EUA e a China.

Sem certezas absolutas sobre o paradigma que enquadrará as relações internacionais nas próximas décadas, foram acima expostos elementos que nos permitem antecipar sistemicamente as próximas décadas. Claro está que é sempre um exercício com algum grau especulativo, mas relativamente confortável, porque só a médio e longo prazo conseguiremos ter uma ideia clara da evolução do sistema internacional e perceber o quanto esta crise foi importante na sua consolidação.

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.

Jesus, a política e as mulheres

Alexandre Guerra, 08.04.20

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Uma pintura de Giovanni Cariani (1490-1547) que retrata Verónica a ir ao encontro a Jesus Cristo, quando este percorria a Via Dolorosa em direcção ao Calvário, para, com o seu véu, lhe limpar o sangue e suor do rosto, que ficou estampado no tecido. E assim terá ficado eternamente, tendo o "Véu de Verónica" se tornado numa das mais famosas "relíquias" do Cristianismo.

Além do seu significado religioso, a Semana Santa representa um dos acontecimentos políticos e sociais mais importantes da Humanidade: a chegada em glória de Jesus Cristo, o "rei" dos judeus revoltosos contra o domínio de Roma, a Jerusalém. O motivo era a celebração da Páscoa judaica, mas os dias que se seguiram foram conturbados, de autênticas manobras políticas, conspirações e traições. No fim, a condenação e crucificação de Jesus Cristo, não sem antes sofrer na caminhada pela Via Dolorosa com a cruz às costas, perante uma sociedade instrumentalizada e instigada. O percurso final de Jesus Cristo para o Calvário, na altura situado numa colina fora da cidade velha de Jerusalém, começa no local onde Pilatos terá "lavado as mãos", desresponsabilizando-se do destino do "rei" dos judeus. A partir daí, a Via Dolorosa vai atravessando parte da cidade velha de Jerusalém, uma experiência única e de um interesse admirável. Percorri-a algumas vezes. É muito emocionante andar pelas várias estações que compõem a Via Dolorosa e que assinalam diferentes momentos bíblicos dessa caminhada de Jesus Cristo, realizada nesta altura do ano há 2020 anos. É um exercício interior e introspectivo, que nos confronta com o mal e sofrimento humano, mas também com a solidariedade e o amor do próximo. Para lá de qualquer leitura religiosa, pensando um pouco naqueles acontecimentos e na sociedade da altura, percebemos que são poucas as pessoas que vão em auxílio de Jesus Cristo. São sobretudo mulheres que O ajudam na hora do seu sofrimento. 

As mulheres na vida de Jesus é um dos temas mais interessantes que se encontram nos Evangelhos, mas é também um dos assuntos menos debatidos e analisados à luz daquilo que são os Direitos Humanos, nomeadamente ao nível da igualdade de género. Como disse o padre e professor universitário Anselmo Borges, numa entrevista no ano passado, Jesus Cristo terá sido o primeiro feminista da História, no entanto, poucas são as vezes em que esse mérito lhe é atribuído. E de facto, à medida que se vai ficando a conhecer melhor alguns dos episódios da vida de Jesus, sobretudo a partir do momento em que inicia o seu ministério e se faz acompanhar dos seus discípulos fiéis, começa-se a vislumbrar a forma disruptiva de como o nazareno quebrou com convenções sociais e práticas instituídas nas sociedades judaica e romana, que à época estendia o seu império até à Judeia e Galileia.

Muito além da sua intervenção política, Jesus foi inovador naquilo que, séculos mais tarde, se iria chamar de Direitos Humanos. A sua mensagem assentava num conceito de igualdade entre povos, entre ricos e pobres, entre enfermos e sãos… entre homens e mulheres. De certa maneira, a Igreja fundada por Pedro vai reflectir grande parte dessa mensagem humanista, com excepção da visão de Jesus sobre o papel da mulher na sociedade. Aqui, a Igreja ao longo dos séculos nunca foi fiel à mensagem do filho de Deus, optando por remeter a mulher para um papel secundário.

E porque terá isso acontecido? A resposta não é óbvia e pode conduzir a debates intermináveis, mas não pode deixar de causar estranheza, se tivermos em consideração que houve uma vontade expressa na Bíblia de enfatizar esse factor revolucionário relativo ao papel da mulher na sociedade. Ou seja, em momento algum, os autores da Sagrada Escritura tentaram escamotear essa realidade nem subestimar a importância histórico-religioso das mulheres que acompanharam Jesus em diferentes momentos da sua vida.

Durante o seu ministério por terras da Galileia e da Judeia, Jesus fez-se acompanhar por mulheres em condições de igualdade com os homens. E isto era uma realidade nunca vista na sociedade judaica. Tal como Pedro, Lázaro ou João, as irmãs Maria e Marta de Betânia, ou Maria Madalena, eram discípulas de Jesus e viam Nele um “mestre”, um “professor”. Jesus depositava nestas mulheres total confiança e, em muitos casos, eram elas que assumiam os encargos do quotidiano dos homens, evidenciando-se a sua emancipação sem qualquer constrangimento ou preconceito.

Analise-se, por exemplo, um dos acontecimentos mais marcantes da História da Humanidade e que agora se celebra entre os cristãos: a Paixão. No seu esforço sobre-humano e auto-sacrifício em prol de um bem maior, são sobretudo mulheres que O ajudam na sua caminhada em sofrimento. Maria Madelena é uma delas, mas também Verónica, e as chamadas "mulheres de Jerusalém", que choram pelo filho de Deus e acompanham-No com toda a sua compaixão ao Calvário. Maria, a mãe de Jesus, acolhe-O na Descida da Cruz, num gesto de “piedade”.

Dizem os Evangelhos que foram essas mesmas mulheres, muito provavelmente Maria Madalena, as primeiras a dirigirem-se ao túmulo de Jesus Cristo e a constatarem que estava vazio. Os textos sagrados não são suficientemente claros quanto aos contornos específicos desse momento, se foi apenas uma “Maria” ou mais “Marias”, mas uma coisa é certa: Pedro e João souberam da Ressurreição pela voz de uma dessas mulheres, a quem Jesus, coberto por vestes brancas, lhes terá dito para transmitir tão importante mensagem aos Apóstolos. Mensagem, essa, que foi recebida com bastante relutância por parte de Pedro e João, porque não concebiam que um acontecimento desta magnitude lhes fosse transmitido por uma mulher. Rapidamente se dirigem ao túmulo para serem confrontados com uma realidade que não conseguiram compreender.

Mas o que é facto é que as Escrituras nos deixaram esse registo, atribuindo às mulheres em geral, e em particular a Maria Madalena, a responsabilidade do anúncio de uma das ideias centrais do Cristianismo: a Ressurreição. Quando Jesus ressuscitado surge em frente a Maria Madalena, naquele preciso momento, há um reconhecimento implícito de que ela é a discípula que melhor compreendeu a Sua mensagem e o acto que tinha acabado de acontecer, tornando-se assim, de facto, a “primeira apóstola”, uma ideia que, como se sabe, nunca foi aceite pelos cânones tradicionais da Igreja.

Ao nível do poder político, parece ter havido uma compreensão imediata do potencial problema que representava o misterioso desaparecimento do corpo de Jesus Cristo. As autoridades judaicas quando souberam do fenómeno, através dos guardas do túmulo, mantiveram segredo em relação à versão original que lhes contaram e não perderam tempo a forjar uma teoria da conspiração para justificar o acontecimento, fazendo passar a mensagem de que os discípulos de Cristo tinham roubado o seu corpo durante a noite, no que poderia ser interpretado com um acto de fanatismo. Ironicamente, para os historiadores, esta posição da parte dos anciões judeus, acabaria por ser a assunção de que o túmulo estava, efectivamente, vazio, dando força a uma das ideias centrais do Cristianismo: a Ressurreição. 

Nota

Alexandre Guerra, 26.03.20

Na óptica de comunicação política, o nosso sistema de Governo semi-presidencialista tem a particularidade de permitir uma dinâmica bicéfala numa gestão de crise. Uma originalidade portuguesa, quando comparada com outros sistemas, onde quem tem o poder Executivo comunica a solo.

Conservadores e progressistas

Alexandre Guerra, 19.02.20

O “caso” Terry Shiavo espoletou um dos maiores embates ideológicos dos últimos anos nos Estados Unidos, no âmbito das chamadas questões fracturantes, provocando um feroz debate entre conservadores e progressistas. Foi há quinze anos e desde então, que me recorde, nenhum outro assunto fracturante voltou a inflamar e a dividir a sociedade norte-americana daquela maneira.

O tema começou por assumir contornos privados, com a decisão de Michael Shiavo, marido de Terry, uma paciente que estava num estado vegetativo há 15 anos (mas não em coma), em deixá-la morrer naturalmente, tendo para isso que ser retirado o tubo através do qual se ia inserindo no seu organismo os líquidos necessários para a sua sobrevivência. Para Michael tratava-se de uma questão de dignidade da sua mulher, face a uma situação que os médicos consideravam já não ter retorno. No entanto, rapidamente esta questão extravasou para a esfera pública, até porque os pais de Terry se opunham à decisão de Michael, com quem disputavam legalmente há vários anos esta questão.

Quando a 18 de Março de 2005 foi retirado o tubo que garantia a vida de Terry, rapidamente o poder político interveio. O Congresso americano, na altura dominado maioritariamente pelos republicanos, subscreveu uma lei especial proposta pelo então Presidente George W. Bush, na qual se exigia que o tubo fosse recolocado e se atribuísse aos pais a guarda legal da filha. Enquanto Terry se ia lentamente entregando à morte, a América mergulhava nesta discussão. A clivagem foi evidente e na arena política, em termos gerais, republicanos e democratas defenderam posições contrárias. Era sobretudo o combate dos combates entre conservadores e progressistas.

Os conservadores recusavam-se a aceitar o acto de Michael e Terry porque, em última instância, poderia colocar em causa um modelo de sociedade ao qual estavam acomodados e que, apesar de tudo, no seu entendimento, funcionava em relativa harmonia. […] Esta posição identificava-se, de certa maneira, com uma política conservadora no sentido sociológico da palavra. Ordem e estabilidade são os dois conceitos basilares do espírito conservador e assim a “política conservadora advoga a permanência de uma ordem político-social quer histórica quer eterna e não reconhece a possibilidade de um regime novo e melhor que os do passado, pretextando que os caracteres fundamentais das sociedades são sempre os mesmos, sejam quais forem as épocas”. […]

Por outro lado, os progressistas estavam receptivos à descoberta de algo novo, resultante das liberdades individuais, e dispostos a aceitar as respectivas consequências sociais, desde que estas se apresentassem como benéficas para a Humanidade. Na verdade, estes viam no gesto de Michael e Terry a ideia de um progresso contínuo e ascendente da Humanidade. Na linguagem restrita da Sociologia ou da Ciência Política, “o progressismo tanto se pode opor ao marxismo como ao conservadorismo”. Do mesmo modo que um “reformista pode ser dito progressista na medida em que defenda um melhoramento progressivo do sistema sócio-político”. Veja-se, por exemplo, a definição que Raymond Aron atribui à política progressista: “A que se recusa a afirmar exclusivamente quer o fim quer a constância da História, admitindo as transformações, irregulares mas indefinidas, em direcção a um termo situado no horizonte, ele próprio justificado por princípios abstractos.”

No caso concreto da Terry Shiavo, os conservadores seguiram a linha de pensamento tradicional, recusando qualquer prática consciente de privação da vida de um ser humano, mesmo que este esteja condenado a um estado vegetativo até ao fim dos seus dias. No campo democrata, ia-se criticando a intervenção política e legislativa nesta matéria, sublinhando que se estava perante uma clara interferência do poder do Estado na esfera privada. Os congressistas democratas sustentaram ainda que o Congresso não podia fazer o papel de médico ou de Deus, além de que estava a ir contra as decisões dos tribunais. E a verdade é que quase três semanas depois de Bush ter apresentado a sua lei, um tribunal federal considerou-a inconstitucional. A 31 de Março, os pais de Terry anunciavam a morte da filha.

Este caso tinha chegado ao fim, mas as consequências políticas perpetuaram-se. Como, aliás, escrevia na altura o correspondente da BBC em Washington: “The death of Terri Schiavo this week has not ended America's painful ethical and political debate over individuals' right to die.” Mas, o problema vai mais longe e Justin Webb acrescentava: The founding fathers, with a wisdom which truly does echo down the ages, decided that there would be a separation of powers. General laws would be made by politicians representing the people, but then interpreted and applied by judges. The reason is simple, to limit the power of government to interfere in any individuals life.”

Ora, este princípio aplica-se não apenas ao caso Terry Shiavo, mas a todos os temas fracturantes que possam emergir na sociedade, neste caso a americana, mas em qualquer outra. Então em última instância serão os tribunais a regular os processos de ruptura? Em princípio sim, se se estiver a falar num Estado de Direito. Porém, o poder político e os grupos de pressão tentarão sempre instrumentalizar o debate, de acordo com a sua doutrina. É lógico assumir que Governo e oposição se digladiem na defesa das suas ideologias, o que se reflectirá na produção legislativa.

Poder-se-á então afirmar que todos os democratas são progressistas e todos os republicanos são conservadores? Que a esquerda é mais progressista e a direita mais conservadora? Certamente que não. Mas é possível estabelecer um modelo ideológico característico para cada um daqueles campos político-partidários. Os conservadores tendem a enquadrar as questões partidárias no campo da moral e da ética e, como tal, são menos tolerantes a determinados desvios nos princípios basilares. Além de que são menos permissivos a fenómenos ocasionais que possam colocar em causa os valores da harmonia familiar e social. Por outro lado, as correntes progressistas tendem a observar o fenómeno social e humano sob a perspectiva positiva e científica, evitando reflectir sobre as eventuais consequências negativas, neste caso sociais ou morais e, até mesmo, políticas. Aceitam de forma natural o avanço científico e social.

Artigo adaptado de um excerto do livro “A Política e o Homem Pós-Humano – Novas biotecnologias e as células estaminais embrionárias: ruptura no pensamento político” (GUERRA, Alexandre [Lisboa, Alêtheia Editores, 2016])

Desconstruir análises

Alexandre Guerra, 07.02.20

Meses depois do conselheiro especial da Casa Branca, Jared Kuschner, ter apresentado ao mundo árabe a componente económica do plano de paz americano para o Médio Oriente, durante um "workshop" em Manama, Bahrein, recentemente foi a vez do Presidente Donald Trump revelar os contornos políticos e mais "quentes" daquilo que ele classifica de "Visão" (Vision for Peace, Prosperity and a Brighter Future) para a resolução do conflito israelo-palestinino. Se na vertente económica já era sabido que se estava perante um potencial investimento de cerca de 50 mil milhões de dólares,  no patamar político, o documento com a "Visão" de Trump apresentado há semanas concretiza muito claramente os intentos de Washington e Telavive para a "sua" solução de "dois Estados.

Não se pretende aqui analisar em detalhe todos os contornos do plano apresentado, mas sim desconstruir as análises erradas que se fizeram na imprensa, porque aquilo que alguns comentadores vêem como (novas) consequências provocadas pelo plano de Trump, são na verdade realidades que existem "de facto" desde a intifada de al Aqsa, em Setembro de 2000: a questão da descontinuidade territorial; a criação do sistema de "apartheid"; e o isolamento dos territórios palestinianos com os Estados limítrofes. 

Com o ressurgimento da violência israelo-palestiniana, em Setembro de 2000, espoletada pela provocatória visita do então primeiro-minsitro, Ariel Sharon, ao Monte do Templo (para os judeus) ou Haram al-Sharif (para os muçulmanos), o território da Cisjordânia foi sendo asfixiado e fragmentado pela política de colonatos judaicos e de segurança israelita. São várias as localidades e cidades dentro da Cisjordânia que, desde estão, ficaram totalmente controladas pelas IDF, sendo que, em muitos casos, a liberdade de circulação está limitada pelos inúmeros checkpoints levantados pelas IDF. A intensidade desta realidade vai sempre variando e dependendo do grau de violência que se vai vivendo no âmbito do conflito israelo-palestiniano. Por exemplo, durante os anos da intifada de al-Aqsa, os checkpoints entre a capital Ramalhah e a localidade universitária de Bir Zeit, a 20 minutos de carro, eram recorrentes a várias horas do dia. 

E quando há uns analistas que falam num novo “apartheid”, estão a ignorar por completo o que se passa há vinte anos na Cisjordânia, onde existem estradas que ligam directamente Israel aos colonatos, sem que os palestinianos possam utilizá-las, apesar de atravessarem território palestiniano. Estão a ignorar que os checkpoints são impostos discricionariamente de acordo com a vontade das IDF, muitas vezes de uma hora para o outra, impedindo que muitos palestinianos regressem as suas casas ou não possam deslocar-se de um local para outro, obrigando-os a esperar horas e até dias. Estes mesmos analistas, que agora vêem nesta “Visão” a fonte de todos os males, ignoram a realidade de duas décadas, onde milhares de palestinianos ficaram impedidos de atravessar a “fronteira” em Jerusalém para irem trabalhar diariamente em Israel. Ignoram ainda que desde 2000, Israel cortou com a ligação entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, provocando, nalguns casos, a separação de famílias. Muito dificilmente um palestiniano da Cisjordânia conseguirá chegar à Faixa de Gaza através de Israel. Quanto muito, terá que sair da Cisjordânia pela Jordânia e entrar em Gaza pelo Egipto.   

Recuperemos então algumas passagens do documento apresentado por Donald Trump. Na sua introdução, é referido que: "Gaza and the West Bank are politically divided." É verdade, mas como foi acima sublinhado, é omitido que também estão fisicamente separados desde o início da intifada de al Aqsa, em Setembro de 2000, por imposição das IDF. Ainda de acordo com a mesma introdução, lê-se: "Since 1946, there have been close to 700 United Nations General Assembly resolutions and over 100 United Nations Security Council resolutions in connection with this conflict." É obra, mas é revelador da ineficácia completa da comunidade internacional na tentativa de resolução desta questão. E como é que Trump vê estas resoluções da ONU? "This Vision is not a recitation of General Assembly, Security Council and other international resolutions on this topic because such resolutions have not and will not resolve the conflict."

Sendo os “males” potenciais identificados por muitos analistas, na verdade, evidências bem reais há vários anos, não será de estranhar que o plano de paz de Washington seja uma ferramenta diplomática tendenciosa para os interesses de Israel. A determinada altura lê-se: "It must be recognized that the State of Israel has already withdrawn from at least 88% of the territory it captured in 1967." Ora, depende da interpretação que se fizer e do território em causa. É que em 1967, Israel ocupou a Cisjordânia, Gaza, Montes Golã e um enclave ao Líbano e Síria (Shebaa Farms). Entretanto, retirou as IDF de Gaza, mas manteve o controlo fronteiriço; retirou a presença militar dos Golã, mas manteve a soberania e não devolveu à Síria (tal como as Shebaa Farms). Na Cisjordânia, recuou nalgumas zonas, mas isolou outras e fragmentou o território, enchendo-o de colonatos.

Um dos pontos mais importantes deste documento e mais estratégico para a sobrevivência de Israel tem a ver com algo a que não vi qualquer analista fazer referência: “The State of Israel will retain sovereignty over territorial waters, which are vital to Israel’s security and which provides stability to the region.” Ao contrário de outras matérias em disputa, como a questão da capital em Jerusalém (mais simbólica do que estratégica) ou dos colonatos (mais ideológica do que securitária), há dois temas que ameaçam directamente a existência de Israel (não, não é o Hamas nem o Irão): o acesso à água e o factor demográfico. Este tema ficará para um próximo texto.

Estrategos (e estratégias) por detrás dos líderes políticos

Alexandre Guerra, 03.02.20

 

O político carismático desempenha um papel. É esse a sua condição natural. Entre a esfera pública e o domínio privado há uma “cortina” que separa as duas dimensões. No entanto, nenhuma personagem política é construída a partir do zero, porque há sempre algo inato. Um político contém uma espécie de ADN, que vai sendo editado de acordo com o ambiente que o rodeia e os interesses que o norteiam. Se o trabalho for bem feito por aqueles que estão por detrás dessa tal “cortina” (leia-se conselheiros e assessores), essa edição preservará a autenticidade que é reconhecida ao político pelo eleitorado. Poucos duvidarão de que existe algo (ou muito) de autêntico na simpatia de Barack Obama, no populismo de Donald Trump, na traquinice de Boris Johnson, na rigidez de Vladimir Putin, na elegância de Emanuel Macron, na austeridade de Angela Merkel, na jovialidade de Justine Trudeau ou no justicialismo de Jair Bolsonaro, citando apenas alguns líderes. Todos eles potenciam estas caraterísticas junto dos seus eleitorados, porque é o seu elemento identitário, é aquilo que os distingue de todos os outros. De notar que esta autenticidade não implica qualquer conotação moral ou valorativa, já que o estado natural do político, numa escala de valores, tanto pode ir do “príncipe” virtuoso ao déspota implacável. Há sempre uma problemática de perspectiva em matéria de juízo aos políticos e às suas lideranças.

 

É nos bastidores, no circuito fechado, que se prepara, que se encena, que se dramatiza e teatraliza a acção política para alimentar as “percepções” do eleitorado: ora através das “impressões”, de que o filósofo David Hume falava no seu Tratado da Natureza Humana (1739), e que considerava serem as “sensações, as paixões e as emoções”; ora através das “ideias”, pela construção de uma imagem sustentada no pensamento e na razão. Há um quadro expectável de actuação, onde o político se deve movimentar o mais naturalmente possível. Os eleitores querem produtos que considerem ser genuínos, independentemente do crivo político e moral que se possa fazer de um determinado político.

 

Na sua irreverente e cativante biografia sobre Winston Churchill (O Factor Churchill, D. Quixote, 2015), o agora primeiro-ministro britânico Boris Johnson sublinha esse facto, exemplificando com um episódio que aconteceu no final de Julho de 1940, quando a Alemanha tentava destruir a Força Aérea britânica: “Churchill desloca-se à cidade de Hartlepool para inspecionar as defesas. Detém-se perante um soldado britânico equipado com uma arma de fabrico americano, uma Thompson SMG, espingarda semiautomática de 1928. Churchill arranca-a das mãos do soldado e empunha-a, de cano apontado para baixo e para a frente, como se estivesse a patrulhar o litoral britânico. Vira-se para encarar a câmara…e a imagem que daí resulta torna-se um dos grandes retratos da sua determinação de resistir.”

 

Ninguém duvidará que, perante a oportunidade, Churchill tenha visto ali um momento valioso de comunicação, sendo “impossível imaginar que qualquer dos seus adversários políticos pudesse conseguir tal proeza”, como também observou Johnson. “Nenhum dos dirigentes políticos britânicos da época teria conseguido empunhar aquela espingarda e ser credível”. Este é um dos ensinamentos mais úteis em comunicação política: um político nunca deve tentar desempenhar um papel que não é o seu e nunca deve forçar uma situação que não colará com a imagem que o eleitorado tem dele. Como sintetiza Johnson (e sabe bem do que fala), deve ser respeitada “a regra de ouro de todos os instantâneos fotográficos na política” e que o bom assessor terá o dever de avisar o seu político: “Não toque na arma!” É uma metáfora exemplar que se aplica a qualquer tempo e a qualquer circunstância, mas que tantas vezes é ignorada, colocando, por vezes, os políticos num plano de descrédito e, até mesmo, de ridículo. As massas não são assim tão amorfas como o conceito sociológico nos quer fazer querer, já que na sua sapiência popular acabam por saber identificar o papel natural reservado a cada um dos políticos. E é dentro desse quadro previsível que esperam que actue e represente.

 

Churchill tinha um faro apurado para identificar as oportunidades históricas e uma grande sensibilidade para a comunicação política. Tinha na oratória a sua principal arma e na encenação a maior aliada, tendo devotado muitas horas de trabalho para aperfeiçoar estas técnicas. Como ele dizia, “a aptidão retórica não é nem inteiramente inata, nem inteiramente adquirida, mas sim cultivada” e que “o aperfeiçoamento é encorajado pela prática” (Churchill – Caminhando com o Destino, Texto Editores/2019). O seu método era rigoroso e tudo obedecia a uma coreografia previamente ensaiada, mesmo os pequenos gestos, como aquele que ele fazia durante os discursos, de levar a mão lentamente ao bolso do casaco, como se estivesse à procura de algo. Uma técnica para criar suspense e que aprendeu com o seu pai, Randolph. Poucos terão compreendido que esta sua forma de estar aparentemente espontânea “era inteiramente intencional”, escreve o historiador Andrew Roberts na biografia acima citada.

 

A comunicação política não é propriamente uma ciência, mas resulta da experimentação e assenta em pressupostos racionais e metódicos. Há uma técnica e um saber acumulados que têm de ser dominados, que vêm única e exclusivamente com a prática. Não se ensina nas universidades, apesar de serem muitos os académicos a presumirem que o sabem fazer. A abordagem no plano teórico pode remeter até aos clássicos gregos e, admite-se, suscitar um debate intelectual interessante, mas é no plano prático, naquilo que é a realidade quotidiana de governantes e políticos no seu relacionamento com o eleitorado e opinião pública, que se faz e se aprende comunicação política. Um tipo de comunicação que acontece numa arena onde, normalmente, e como diria Max Weber, “a política não existe em função da filosofia ética", mas sim em razão do poder.

 

Filmes clássicos como All the King’s Men (1949), de Robert Rossen, baseado no romance homónimo de Robert Penn Warren, ou algumas películas de John Ford, como Young Mr. Lincoln (1939), The Last Hurrah (1958) ou The Man Who Shot Liberty Valance (1962), ou ainda a aclamada série The West Wing (1999-2006), transportam-nos com bastante realismo para esse universo da comunicação política, onde os líderes e os homens que os rodeiam procuram conquistar e manter o poder, alguns de forma populista e com fins egoístas, outros bem-intencionados, que acreditam ser "possível fazer corresponder a política a um padrão ético" e moral.

 

Embora o exercício do poder seja em si solitário, por trás desses líderes, que podem ser mais ou menos virtuosos, há sempre uma equipa, um staff, um conjunto de “wise men” que aconselham e assessoram, que pensam, reflectem e dão suporte ao processo de decisão. Já dizia Maquiavel, num dos muitos ensinamentos do seu autêntico “manual” de política, que o “príncipe prudente” deveria estar rodeado de sábios que lhe pudessem responder de forma livre e sem adulação. Esta regra continua a ser aplicável na política dos nossos dias, sendo expectável encontrar-se pelo menos um “sábio” influente no apoio a um político que alcance relativo sucesso na busca ou manutenção do poder. Se tivermos em consideração a alta política anglo-saxónica nos últimos 30 anos, facilmente encontramos essas pessoas que trabalharam durante muito tempo na sombra. Nomes como Dominic Cummings, Steve Bannon, David Axelrod, Karl Rove, Alastair Campbell ou James Carville tornaram-se referências incontornáveis na comunicação política. Todos eles foram responsáveis, em parte, por levarem os “seus” políticos ao poder, citando apenas alguns dos casos mais relevantes que fizeram escola na comunicação política nas décadas mais recentes. Assessores de imprensa, estrategos políticos, consultores de comunicação, speechwriters, spin doctors, foram (e são) tudo isto num só. Lordes do “dark side” com instinto predador, dirão muitos, mas todos lhes reconhecem inteligência e capacidade operacional. Cada um terá o seu estilo e perfil, uns mais agressivos do que outros, uns mais “dark” do que outros, mas ninguém lhes retira o talento para o ofício. São homens de terreno e intelectualmente sofisticados, que lêem como ninguém as dinâmicas e vontades do eleitorado, antecipam as tendências do sistema e adaptam o político ao ambiente. São homens que se movimentam nos bastidores até ao dia em que o sucesso dos seus líderes é o seu sucesso.

 

Normalmente, depois de passada a euforia inicial com a glória do “frontman”, há uma tendência por parte dos media (e agora redes socais) de irem à procura do estratego que está na “sombra”. A ascensão de Boris Johnson ao poder, através de um roteiro previamente definido e calculado, não fugiu a esse escrutínio por parte dos jornalistas e dos analistas. Depois de tudo se ter dito e escrito sobre Johnson, o alvo da atenção mais especializada passou a ser Cummings, o orquestrador de uma campanha de sucesso. Tal como Axelrod, Rove, Campbell ou Carville, há muito que Cummings andava nos corredores da comunicação política. Nos Tories, entre outros cargos, Cummings fora conselheiro do antigo líder conservador, Ian Duncan Smith, e posteriormente de Michael Gove. Recentemente, foi director de campanha da Vote Leave, a organização pró-Brexit que terá contribuído decisivamente para o desfecho do processo no sentido de saída do Reino Unido da UE. Cummings não é uma novidade, mas só saltou para ribalta internacional embalado pelo sucesso de Johnson que, no passado mês de Julho, o nomeou seu conselheiro especial.

 

A mesma ribalta que alcançou o “ideólogo” Steve Bannon depois de Donald Trump ter causado uma hecatombe no sistema político americano ao sentar-se na Sala Oval. Nestes últimos anos, Bannon acabou por atingir uma notoriedade imensa, provavelmente mais do que qualquer um dos “mestres” da arte da comunicação política aqui citados, no entanto, terá sido o que menos peso teve na vitória do seu candidato. As razões são várias e não cabe neste texto escrutiná-las, mas a personalidade de Trump não é alheia a esse facto. Bannon e Trump nunca foram amigos e muito menos tiveram uma relação sólida de trabalho. O antigo homem da Breitbart News foi mais um entre vários que iam entrando e saindo do círculo restrito de Trump, onde apenas alguns familiares mantiveram lugar cativo. O fenómeno Bannon resulta essencialmente da curiosidade que Trump tinha nos seus textos. Alguém intermediou o contacto entre os dois e assim começa o seu relacionamento profissional, efémero, diga-se, à semelhança de tantos outros que Trump tem desenvolvido na Casa Branca.

 

Trump nunca reconheceu nem considerou profissionalmente quem o rodeia. Basta conhecer um pouco a sua vida e percurso. É literalmente “one man show”, acreditando que tudo o que alcançou foi única e exclusivamente à sua conta. Trump nunca viu em Bannon um estratego ou conselheiro, considerou-o sempre mais como um fã ou uma espécie de “groupie”. Foi sempre assim que Trump esteve na vida empresarial e agora na política. Basta ver como tudo acabou entre os dois, com Bannon a ser despedido de forma humilhante e Trump a desabafar que o seu antigo conselheiro “chorou quando foi despedido e que implorou pelo seu emprego”. Mais recentemente, Trump veio reforçar essa ideia condescendente num dos seus célebres tweets: “É bom ver que um dos meus melhores pupilos é ainda um fã gigante de Trump […]”

 

Bannon foi mais um figurante no já vasto elenco deste “filme” e esteve longe de ter sido o que mais influenciou Trump. Há uma sobrevalorização do seu papel e até mesmo o slogan “Make America Great Again” nada teve a ver com Bannon, não sendo mais do que uma reciclagem do tema de campanha de Ronald Reagan, em 1980, feita pelo infame consultor político, Roger Stone, talvez aquele que mais responsabilidades terá tido na ascensão de Trump à Casa Branca. O que não é de estranhar, tendo em conta que é profunda a ligação de Stone com o “lado mais sombrio da política” e que aos 19 anos já andava metido nas confusões do Watergate.

 

Na verdade, e vendo bem as coisas numa lógica de ganhos e perdas na relação entre Trump e Bannon, é um dos poucos casos onde o conselheiro terá beneficiado muito mais do que o candidato. Mas nem por isso Bannon deixou de ter importância na construção da personagem política Trump, porque lhe deu uma roupagem ideológica que, mesmo sendo inconsequente durante o mandato na Casa Branca, conseguiu criar algum lastro nas correntes mais conservadoras da América.

 

Incontestável foi a influência e importância de David Axelrod no sucesso de de Barack Obama. Foi um dos grandes estrategos, não apenas da primeira vitória presidencial de Obama em 2008 (e também em 2012), mas da euforia comunicacional que se gerou à volta daquela que era então a grande esperança para os Estados Unidos e para o mundo. Amigo íntimo de Obama do círculo de Chicago, David Axelrod tornou-se numa estrela mundial da comunicação política a quem o New York Times chamou em tempos o “narrador” de Obama. Axelrod tinha alguns traços que o diferenciavam num sector, por vezes, marcado por algum mimetismo. Ainda antes de Obama, sempre se assumiu como um homem de causas, algumas bastante progressistas, e partiu desta sua maneira de pensar e viver para trabalhar, sobretudo, campanhas de políticos afro-americanos nos Estados Unidos. Com bastante sucesso, diga-se. Esta vertente era, aliás, uma das suas imagens de marca. Tendo trabalhado com vários políticos negros, obtendo importantes vitórias, como a de Deval Patrick, que em 2006 se tornou no primeiro governador negro de Massachusetts. Axelrod também já tinha no seu currículo nomes como os de Hillary Clinton, Chris Dodd ou John Edwards. Antigo jornalista do Chicago Tribune, Axelrod começou a trabalhar na comunicação política no início dos anos 80. Um dos segredos para o seu sucesso é "acreditar" nas pessoas e nos projectos em que se envolve. O famoso slogan da campanha de Obama, "Yes, we can!", é também o reflexo dessa atitude. Há uns anos, o já falecido Paul Green, então director do Instituto de Política da Roosevelt University, dizia o seguinte: "Axelrod é o que eu chamo de uma banda de um homem só - ele é bom a fazer campanhas, formular a mensagem, fazer os anúncios de TV e escrever discursos."

 

Após ter reeleito Obama em 2012, Axelrod afastou-se das lides da Casa Branca para se dedicar à sua empresa de consultoria. Axelrod sempre foi, de certa forma, um idealista político e, talvez por isso, o seu trabalho só seja compatível com candidatos dotados de um perfil específico. À luz desta lógica, não é de estranhar a tímida experiência comunicacional que Axelrod teve com o antigo comissário europeu Mário Monti, na campanha para as eleições gerais em Itália de Fevereiro de 2013. Ao contrário de Obama, Monti não era um homem de paixões nem de causas. Era um economista e académico, um tecnocrata sem qualquer chama, aclamado apenas pelos “mercados” e por alguns ministros europeus das Finanças. Monti, ao contrário de Obama, não tinha qualquer carisma, nem sequer “matéria-prima” inata para ser trabalhada. E quando assim é, por mais gente talentosa que o rodeie, dificilmente esse político ascenderá ao Olimpo.

 

Não era o caso de George W. Bush quando se lançou na corrida presidencial. Bush filho é um clássico exemplo de um político que, não tendo uma aura brilhante, tinha alguns atributos que, devidamente trabalhados e potenciados, podiam fazê-lo sonhar com a Casa Branca. Além de pertencer a uma dinastia política (os americanos são muito receptivos a esse tipo de dinâmica), tinha sido governador do Texas durante dois mandatos e apresentava características que podiam facilitar a entrada no eleitorado conservador moderado. Talvez, por isso, estrategicamente, o seu slogan de campanha nas eleições de 2000 tenha sido “compassionate conservatism”. Karl Rove foi o responsável enquanto estratego chefe da campanha.

 

Embora fosse um autêntico “falcão” da ala mais conservadora republicana, Rove percebeu claramente que o conservadorismo de Bush teria que ser suavizado para chegar a um eleitorado mais vasto. Foi ele o principal responsável por ter levado George W. Bush à Casa Branca, não sem antes ter orquestrado as suas vitórias enquanto Governador do Texas, em 1994 e 1998. O verdadeiro “polítical mastermind” de Bush, reconhecido no discurso de vitória da sua reeleição presidencial em 2004, no Ronald Reagan Building, em Washington, quando o Presidente apelidou Rove como “the architect”. Este momento de comunicação é marcado pela forma como o recém-eleito Presidente a prepara, com uma breve pausa e aquele sorriso matreiro que o caracterizou, antes de prestar homenagem à sua estrela maior, ao seu mais bravo guerreiro.

 

Quando Kove começou a trabalhar com George W. Bush já apresentava um currículo invejável de muitos anos no combate político, com dezenas de campanhas e inúmeras vitórias de relevo nas fileiras republicanas, mas foi a dramática eleição de 2000 que lhe deu a notoriedade universal. Em Novembro de 2004, a revista The Atlantic escrevia o seguinte: “São as corridas renhidas que fazem as reputações dos grandes estrategos políticos, e muito poucas foram tão disputadas como as presidenciais de 2000. […] George W. Bush saiu vitorioso por uma margem de 537 votos na Florida – suficiente para elevá-lo à presidência e ao seu estratego chefe, Karl Rove, ao estatuto de lenda.”

 

Também Alastair Campbell se encaixa nesse panteão das celebridades da comunicação política. Responsável pela estratégia de comunicação do ex-primeiro-ministro, Tony Blair, entre 1997 e 2003, Campbell, como em tempos disse o The Telegraph, deixara de lado uma carreira promissora no jornalismo ou na televisão, para assumir o papel de orquestrador do “assalto” de Tony Blair ao número 10 da Downing Street. Um trabalho que desempenhou com êxito, através de “manobras” e “esquemas” que, segundo aquele jornal, foram reconhecidos como eficazes e que fizeram escola até mesmo junto dos opositores políticos. Efectivamente, Campbell foi um dos obreiros do sucesso do New Labour, conseguindo obter sondagens com resultados “estratosféricos”, nas palavras de outro jornal, The Guardian, contribuindo decisivamente para aquela que seria a primeira de três vitórias seguidas do New Labour em legislativas, em Maio de 1997. Campbell demonstrou igualmente uma habilidade comunicacional para lidar com a sanguinária imprensa britânica, fazendo dele um consultor feroz na defesa dos interesses de Blair e um temível adversário para os seus opositores políticos.

 

Poucos meses depois de ter sido eleito primeiro-ministro, Tony Blair é confrontado com a morte da Princesa Diana, na madrugada de domingo de 31 de Agosto de 1997, um acontecimento que chocou brutalmente o Reino Unido (e não só), numa dimensão, provavelmente, nunca vista desde o pós-II GM. A inabilidade da Casa Real empurrou-a para uma das suas maiores crises de reputação e de comunicação. Blair e os seus assessores, com especial destaque para Campbell, perceberam que tinham de reagir rapidamente, perante o silêncio de Buckingham. A concretização dessa estratégia dá-se horas após a tragédia, já durante a manhã, quando Blair presta uma declaração aos jornalistas à entrada da Igreja de Santa Maria Madalena, em Trimdon, seu círculo eleitoral, para onde se dirigia para a habitual missa dominical. O discurso não tem mais de três minutos, mas é uma autêntica obra-prima de comunicação política. O conteúdo emocional, as pausas, o tom, a linguagem corporal, o discurso sem hesitações, tudo impecavelmente decorado… O exímio encadeamento do fraseado até ao climax, quando Blair se refere a Diana como a “Princesa do Povo”.

 

Ainda hoje é pouco claro sobre quem, efectivamente, incluiu essa expressão no discurso, mas no filme The Queen (2006) de Stephen Frears, que retrata os trágicos acontecimentos, a autoria é atribuída a Campbell que, após receber um telefonema de Blair na madrugada desse Domingo, se disponibilizou a fazer de imediato um rascunho. Quem está familiarizado com estas dinâmicas da comunicação política, facilmente admitirá que esta versão é perfeitamente verosímil, sendo que a verdade dos factos não andará muito longe, até porque nessa madrugada Blair pouco tempo teria para estar focado no discurso. Certo é – e isto dito por Alastair Campbell – que o rascunho foi discutido entre os dois. Um trabalho de excelência, porque aquele discurso, e sobretudo aquela expressão, conduziu Blair àquela que muitos consideram ser a sua “finest hour” enquanto político, reflectindo-se de imediato num record absurdo de popularidade de 93 por cento.

 

O carisma num político não é uma qualidade de subjectiva classificação. Mesmo os seus maiores inimigos lhe conseguem reconhecer esse atributo. Blair, seguramente, tinha esse carisma. O desafio está, por vezes, em identificar esse potencial à partida, trabalhá-lo e potenciá-lo. De certa maneira, James Carville fez esse trabalho quando aceitou ser o principal estratego da campanha do então semi-desconhecido governador do Arkansas, Bill Clinton, nas presidenciais de 1992. Carville já tinha uma considerável experiência em consultoria política, tendo-se movimentado sempre pelas fileiras do Partido Democrata e quando aceitou o desafio de levar Clinton à Casa Branca tinha bem noção de que a mensagem daquela campanha teria que ser disruptiva com o tom e registo do mandato do Presidente George H. W. Bush, marcado pela glória da grandeza militar dos EUA. É importante recordar que a América celebrava a vitória sobre os despojos da União Soviética e estava em plena Guerra do Golfo, um conflito tido como “justo” aos olhos da comunidade internacional e que granjeou todo o tipo de apoios dos aliados e da opinião pública. Aliás, após este conflito que os EUA venceram rápida e facilmente no início de 1991, Bush chegou a ter quase 90 por cento nos índices de popularidade, afastando das primárias do Partido Democrata potenciais candidatos de alto perfil, que receavam perder no derradeiro confronto com o Presidente republicano em exercício. Clinton acabaria por avançar contra nomes de segunda linha, vencendo facilmente as primárias dentro do seu partido, abrindo-lhe caminho ao embate com Bush.

 

Carville sabia que dificilmente venceria Bush recorrendo às emoções e aos corações dos americanos, depois de quatro anos de patriotismo insuflado pelos feitos geopolíticos e geoestratégicos dos EUA no mundo. Bush tivera o privilégio e a oportunidade histórica de ter vivido quatros anos únicos nas Relações Internacionais. Não conseguindo bater Bush nesse campo, Carville teve a capacidade de ler a conjuntura, identificou a fragilidade do Presidente e antecipou o grande tema que iria marcar a agenda nos anos seguintes: a economia. E a síntese dessa estratégia consubstanciou-se na sua célebre frase, “The economy, stupid” (esta é a frase original, sem o “it’s”). Como todas as criações brilhantes, também esta parece ter resultado de um qualquer sopro divino, pelo menos a dar crédito ao relato de George Stephanopoulos, nas suas memórias sobre essa campanha, na qual foi director de comunicação. Conta Stephanopoulos que Carville estava na sede de candidatura a escrever várias frases soltas num cartaz branco e pregou-o numa pilar no meio da sala. Entre as várias frases, lá estava aquela que iria levar Clinton à Casa Branca. A ideia era de tal forma poderosa que ganhou vida e se interiorizou na cultura política e popular americana. Se George H. W. Bush durante quatro anos tinha governado para os patriotas americanos, Clinton dirigia-se agora aos trabalhadores e contribuintes americanos. Carville, tal como todos os outros que ajudaram os seus líderes na caminhada triunfal, teve a sensibilidade e a audácia para saber o que dizer no momento certo. Quase sempre, é na concretização virtuosa deste exercício que um político deixa de ser uma nota de rodapé na História para passar a fazer História.

 

Texto publicado originalmente no PÚBLICO.

 

O Duplo

Alexandre Guerra, 28.01.20

 

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O segundo livro de Dostoievski, escrito aos 24 anos, e, como sempre, um retrato denso mas dramático e empolgante da sociedade russa do século XIX. "Se um qualquer observador estranho, desinteressado, olhasse agora sem mais, de lado, a triste figura do senhor Goliádkin, sentiria por completo o horror das suas desgraças e diria sem falta que o senhor Goliádkin tinha agora o aspeto de quem queria esconder-se de si próprio em qualquer parte, como que queria fugir de si mesmo."

 

Reflectir Auschwitz

Alexandre Guerra, 27.01.20

 

Celebra-se, esta Segunda-feira, 75 anos sobre a libertação de Auschwitz. Deixo aqui a minha reflexão do que vi e senti quando visitei aquele campo de concentração em 1995.

 

Quando Steven Spielberg realizou o filme A Lista de Schindler, em 1993, estava a prestar uma homenagem emotiva aos seis milhões de judeus que perderam a vida no Holocausto (este número tem sido motivo de acesa discussão entre historiadores), mas também estava a despertar consciências (ou a relembrá-las) para uma realidade específica daquele genocídio, que se viveu nos campos de concentração de Auschwitz (eram três), no sul da Polónia. As célebres imagens recriadas por Spielberg, também ele judeu, em que se vêem comboios compostos por vagões apinhados de judeus a chegarem a Auschwitz II-Birkenau, veio relançar o interesse do público por aqueles acontecimentos dramáticos da História recente da Humanidade.

 

O campo de Auschwitz II-Birkenau, que ficou genericamente conhecido por Auschwitz, o campo de extermínio, era o maior e o único que tinha acesso ferroviário, no entanto, havia mais dois campos, o Auschwitz I e o Auschwitz III - Monowitz. Em Birkenau terão sido mortos cerca de um milhão de judeus e ciganos (também aqui não há consenso quanto ao número), embora, tenha sido no primeiro campo que começaram as experiências de extermínio numa câmara de gás construída propositadamente para o efeito, com o respectivo crematório anexado.

 

Sensivelmente três anos após a libertação dos campos de Auschwitz, a 27 de Janeiro de 1945, as autoridades polacas decidiram fazer um museu e um memorial de homenagem às vítimas, que engloba Auschwitz I e Birkenau e, por isso, é denominado de Auschwitz-Birkenau. Este complexo foi considerado Património Cultural da Humanidade pela UNESCO, sendo que em Birkenau houve maior dificuldade em restaurar os edifícios originais (devido aos materiais de que eram feitos) do que no complexo de Auschwitz I (ambos estão separados por apenas 3 km) que, para quem já teve o privilégio de visitar, apresenta um bom, mas arrepiante, estado de conservação.

 

Ao cruzar-se o portão de entrada de Auschwitz I (onde a dimensão da tragédia não foi tão massiva, estimando-se que ali tenham sido exterminados 60 mil judeus) tem-se sobre a cabeça a célebre frase forjada a metal: "Arbeit macht frei" ("O trabalho liberta"). Lá dentro, o visitante é confrontado com uma realidade física impressionante, onde tudo parece estar como era dantes. Aliás, fazendo-se uma comparação do que se vê hoje em dia com os registos fotográficos da época, percebe-se como Auschwitz I mantém praticamente intacto o seu espaço. O Muro da Morte onde eram feitos os fuzilamentos, as celas do Bloco 11, o Bloco 10 onde se faziam as experiências médicas, tudo está lá, igual. Ainda mais impressionante é visitar a única câmara de gás existente naquele campo, que foi a primeira a ser construída a título experimental. Birkenau viria depois a acentuar o extermínio dos judeus com as outras câmaras (em Birkenau restam apenas algumas ruínas).

 

No que diz respeito à preservação da memória histórica das milhares de pessoas que ali pereceram nas mãos do regime nazi, nada é tão chocante como entrar numa sala de um dos blocos de Auschwtiz preparada para o efeito museológico e ver uma vitrine com cerca de 30 metros cheia até cima de cabelo humano, cortado aos prisioneiros antes de irem para a câmara de gás. Noutro espaço pode-se ver ainda pertences pessoais, como roupa, óculos e outro tipo de objectos e utensílios. Muito perturbador.

 

Embora Auschwitz I não tenha tido a dimensão trágica de Auschwitz II-Birkenau, como objecto histórico é provável que ofereça uma perspectiva mais cruel e realista do que aconteceu, atendendo ao seu estado de conservação é à forma como está organizado em termos museológicos. Por outro lado, Birkenau oferece aquela vista aterradora que Spielberg projectou no cinema, do caminho de ferro a entrar directamente nas portas daquele campo, e imagina-se o que terá sido aqueles comboios a conduzir milhares de pessoas literalmente para a morte. Por isso mesmo, os responsáveis do Memorial e Museu Auschwitz-Birkenau aconselham que os visitantes conheçam os dois campos para melhor compreenderem a dimensão de toda a tragédia.

 

Visitei Auschwitz I há muitos anos, num dia cinzento, que mais parecia de Outono. No entanto, estava nas minhas férias de Verão, ainda jovem, prestes a entrar no curso de Relações Internacionais, movido pela paixão que me suscitava (e suscita) essa disciplina. Apesar de chegar àquele local já com algum conhecimento sobre as atrocidades ali cometidas, percebi de imediato que nada é comparável ao exercício empírico na reconstrução dos factos in loco. Uma experiência enriquecedora e sobretudo inesquecível.

 

Celebrar MLK

Alexandre Guerra, 21.01.20

 

 

20 de Janeiro é o Dia de Martin Luther King Jr., e, por isso, sugiro o documentário "King in the Wilderness" (HBO/2018), lançado por ocasião do 50º aniversário da sua morte. Vale também a pena parar um pouco e debruçarmo-nos sobre a carta que MLK escreveu quando esteve detido na prisão de Birmingham, Alabama, em Abril de 1963. Foi publicada em vários sítios, incluindo na revista The Atlantic. Barack Obama partilhou-a nas redes sociais e eu também aqui a deixo porque, mais do que nunca, as suas reflexões e ensinamentos podem iluminar aqueles que, cegos pela sua arrogância e radicalismo, apregoam supostos valores cívicos e morais. 

 

Do livro "Decadência"...

Alexandre Guerra, 15.01.20

 

"Um Jesus histórico teria posto na mesa aquilo que havia então na Palestina: um bulgur de lentilhas com pimenta e cominhos, cebolas e azeite, uma sopa de lentilhas com limão e acelgas, coentros e dentes de alho, folhas de malva e cebolas fritas, um quarto de borrego com um prato de arroz de beringela salpicado de pinhões e amêndoas descascadas, temperado com noz-moscada e canela, uma tajine de peixe com molho sésamo, faláfel (grão-de-bico, favas secas, cebola, alho, salsa, coentros, pimentos...), um kanafeh com sêmola e flor de laranjeira, um vinho de palma, uma cerveja local. Em vez de tudo isto, apenas os símbolos que conhecemos..."

 

Michel Onfray in "Decadência" (Edições70/Junho de 2019)