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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

As nuances da Palestina

Alexandre Guerra, 24.05.21

Quando comecei a estudar Relações Internacionais, já no longínquo ano de 1995, sabia que, por mais livros que lesse, por mais artigos que analisasse ou por mais especialistas que ouvisse, nunca iria compreender o conflito do Médio Oriente na sua plenitude ou ter uma leitura equilibrada e correcta das suas verdadeiras dinâmicas se não fosse directamente ao terreno. Tinha a noção de que a realidade nos territórios da Palestina era de tal maneira intrincada e complexa, com contornos específicos e únicos, que qualquer tentativa de construção de um quadro analítico teórico estaria condenada, no mínimo, a um desonesto e enviesado exercício intelectual. Tinha consciência de que a teoria acumulada, por mais robusta e sofisticada que fosse, nunca me dotaria do conhecimento necessário para compreender as dinâmicas quotidianas entre duas realidades muito interligadas, enquadradas por factores históricos, sociais, políticos e religiosos de enorme complexidade.

Aos vinte e cinco anos, na altura enquanto jornalista, e em plena intifada de Al Aqsa viajei para a Palestina, onde passei uma temporada (voltaria lá depois). Ali estudei, fiz amigos, entrevistei políticos, convivi com militantes armados, fui acolhido por bons samaritanos nas montanhas de Nablus, dormi em campos de refugiados, visitei os Montes Golã e as Shebaa Farms, andei de Gaza a Haifa, de Jericó a Telavive. Concretizei o sonho de conhecer uma terra tão fascinante, que um dia o poeta inglês George Sandys a definiu como “uma terra onde corre leite e mel”. Sabia que, para entender o poder da atracção milenar da Cidade Velha de Jerusalém, só vendo com os meus próprios olhos, ouvindo os seus sons, calcorreando as suas ruas, falando com as suas gentes de diferentes religiões, sentindo os seus cheiros, confrontando as suas idiossincrasias, vendo as suas fissuras, aceitando as suas virtudes e reconhecendo os seus males.

Sabia que só entenderia verdadeiramente a frustração de milhares de palestinianos se observasse o sistema apartheid montado nos territórios da Cisjordânia, através de checkpoints entre diferentes localidades palestinianas, através de estradas reservadas a judeus com acesso directo entre Israel e colonatos ultra-ortodoxos, através de raides gratuitos das IDF, através do contraste entre o conforto dos colonatos judaicos e as condições debilitadas de muitas localidades palestinianas, algumas delas sem infraestruturas dignas. Sabia que só estando no terreno compreenderia a revolta de uma mãe que queria levar o filho ao médico ou à escola e, sem qualquer justificação, via-se impedida de o fazer pelas IDF ou pela polícia israelita. Ou a raiva sentida por um jovem palestiniano ao ser detido ou agredido pelos soldados ou polícias israelitas por querer, simplesmente, regressar a casa depois das aulas.

Tinha a noção de que só entenderia a manta de retalhos em que se tornou a Cisjordânia se fosse ao território ver o desenho das três zonas administrativas (A,B,C) consignadas nos Acordos de Oslo (II), para saber que, neste momento, mais de 60 por cento do território está sob administração civil e militar de Israel (Zona C). Um território ligado continuamente a Israel, que integra uma grande parte de Jerusalém Oriental e as áreas mais férteis e mais ricas em termos hídricos da Cisjordânia, mas na qual não vivem mais do que 200 mil palestinianos, a maioria dos quais em localidades sem quaisquer condições de habitabilidade e infraestruturas de saneamento. Além disso, nestas áreas, os direitos de construção estão praticamente vedados aos palestinianos, ao contrário daquilo que tem sido a política de expansionismo judaica e de construção de colonatos nas localidades da Zona C. A tão ambicionada transferência destas áreas da Zona C para a Autoridade Palestiniana nunca chegou a efectivar-se e, actualmente, deverão viver cerca de 400 mil judeus ortodoxos e ultra-ortodoxos nestes territórios espalhados por mais de 200 colonatos.

Também nunca entenderia a vida de muitos palestinianos se não conhecesse os campos de refugiados nalgumas cidades onde vivem à margem de uma sociedade já ela própria marginalizada por Israel e pela comunidade internacional. Nunca perceberia o que é a autêntica prisão a céu aberto na Faixa de Gaza, se não tivesse visitado este território por duas vezes, com pouco mais de 40 quilómetros de comprimento e 10 de largura, onde vivem cerca de dois milhões de palestinianos em condições de enorme fragilidade social e económica, sendo que, na maior parte dos casos, a única rede de apoio social vem dos partidos políticos Hamas e Jihad Islâmica, ambos criados sob forte inspiração da Irmandade Muçulmana, movimento pan-árabe com um forte cariz social e que durante décadas no Egipto teve um envolvimento muito profundo com as comunidades locais. Importa referir que a Jihad, criada em 1981, e o Hamas em 1987, resultam, em grande parte, das circunstâncias políticas que se abateram sobre os palestinianos durante essa década. Com a viragem à direita em Israel, entre 1977 e 1992, o Likud governou praticamente de forma ininterrupta, com Governos liderados por Menachem Begin e Yitzhak Shamir, tendo os anos 80 sido dramáticos para os palestinianos a vários níveis. Conflitos no Líbano, na Jordânia, os massacres de Sabra e Shatila, entre outros episódios. Nos territórios ocupados da Cisjordânia e da Faixa de Gaza estala a primeira intifada em 1987, que ficou conhecida como a “Guerra das Pedras”.

E sem ir à Palestina também não me aperceberia o quão a cidade de Belém era um símbolo de integração entre muçulmanos e cristãos, da mesma maneira que Haifa, no norte de Israel, é (ou era?) um exemplo da convivência pacífica entre judeus e árabes israelitas, uma cidade progressista que se orgulha dos seus valores e princípios. Mas sem ir à região também nunca sentiria os receios de um qualquer cidadão israelita, sentado numa esplanada entregue à sorte da lotaria da vida, nunca sabendo quando chegaria a sua hora de ser alvo de um rocket ou de um atentado suicida. Relembre-se que os atentados suicidas foram uma realidade muito presente nos anos 90 e ainda mais durante a intifada de al Aqsa (2000-2005). Para se ter uma ideia, e segundo os números que consegui apurar, nos anos 90, sobretudo no período a seguir aos Acordos de Oslo II (1995), morreram cerca de 120 israelitas, em 14 ataques suicidas perpetrados maioritariamente pelo Hamas, através do seu braço armado, Brigadas Izz ad-Din al Qassam, e pela Jihad, pelas mãos das Brigadas al Quds. Esta prática intensificou-se brutalmente durante a intifada de al Aqsa, que se iniciou em Setembro de 2000. Até 2005 foram realizados mais de 130 atentados suicidas, provocando mais de 600 mortos em Israel, com as Brigadas de al Aqsa, ligadas à Fatah, a contribuírem também para esta mortandade. Historicamente, foi Fati Shaqaqi, um dos fundadores da Jihad, quem pela primeira vez, nos anos 80, falou na possibilidade de serem utilizados mártires na luta contra Israel. A partir de 2006/2007 praticamente deixou de haver atentados suicidas, ao contrário do uso de rockets por parte do Hamas, a partir da Faixa de Gaza, e do Hezbollah, desde o sul do Líbano.

Só estando no terreno é que é possível compreender os receios e os medos de uma parte da consciência colectiva judaica, que se sente rodeada de inimigos, num Estado em que a zona mais estreita de profundidade estratégica tem apenas 14 quilómetros, e que acredita convictamente que do “outro lado” existem algumas correntes (minoritárias, note-se) que continuam a acalentar o sonho de “empurrar os israelitas para o mar”. Um Estado, apesar de tudo ainda marcado, pelas três guerras que travou com os países árabes (1948, 1967 e 1973). Factores que reforçam uma certa psicose que perpassa uma parte da sociedade israelita, que lida no seu quotidiano com actos e gestos algo perturbadores para um qualquer cidadão europeu. Basta ir a uma simples esplanada israelita ou a um restaurante para se perceber o nível de militarização da sociedade hebraica, onde facilmente se vêem jovens militares fardados, sempre acompanhados da sua arma, numa convivência natural com os civis e crianças. Muitos destes jovens, a quem é privada uma parte da sua juventude para servir nos territórios ocupados, acabam por ficar com marcas emocionais que condicionam a sua forma de verem o “vizinho” palestiniano. E quando digo “vizinho”, é importante ter a noção da proximidade territorial entre os dois povos. Por exemplo, de Ramalhah a Jerusalém é pouco mais do que 20 quilómetros, da cidade de Gaza a Telavive não chega a 80 quilómetros. Além disso, em períodos de maior acalmia, é há um forte fluxo diário de trabalhadores palestinianos da Cisjordânia para Israel. Importa ainda saber que mais de 20 por cento da população israelita é árabe, muita dela com ligações familiares à Cisjordânia e Faixa de Gaza. Aliás, a título de curiosidade, as três irmãs do líder máximo do Hamas, Ismail Haniyeh, são cidadãs israelitas há muitos anos, tendo inclusive alguns dos seus filhos já servido nas IDF.

No terreno constata-se também o quão progressistas são muitos sectores da sociedade israelita, alguns deles muito activos ao longo dos anos a exigir a retirada dos colonatos judaicos da Cisjordânia. Aliás, de ambos os lados, existem movimentos e pessoas envolvidas em lutas por melhores condições de vida e por uma solução de estabilidade para ambos os povos. É certo que as franjas radicais das duas sociedades, ora que se apresentam sob a forma Política, ora munidas de uma herança histórico-religiosa que lhes dá uma aura quase divina, são uma evidência impossível de contornar e que, lamentavelmente, continuam a ditar os desígnios dos dois povos. Mas a maioria anseia por uma vida normal. A maior parte dos israelitas não vive sob os ditames da Promessa da Terra Prometida que Deus fez a Abrão ou na obsessão de um dia verem reconstruído o Terceiro Templo de Jerusalém. E sim, a historia palestiniana é traumática, mas a maioria dos palestinianos não vive rancorosa com a traição britânica da Declaração Balfour de 1917 e muito menos quer “empurrar os israelitas para o Mediterrâneo”.

Edward Said escreveu um dia que o orientalismo e o anti-semitismo moderno tinham raízes comuns. Penso que o autor com isso quis dizer que se tratam de construções mentais exteriores à vivência dos povos árabe e judeu, feitas a partir de ilusões, percepções, preconceitos, estigmas, dogmas, ideias preconcebidas, que acabam por criar um turbilhão de discussão e ódio. É curioso constatar que as inúmeras considerações teóricas e políticas que decorrem dos modelos de análise exteriores ao conflito e à vivência no terreno, e que vemos agora diariamente plasmados amiúde na imprensa e redes sociais, muitas vezes não têm qualquer eco no quadro racional e motivacional de um simples cidadão palestiniano ou israelita. De certa maneira, o mundo exterior continua a olhar para o conflito israelo-palestiniano através de lentes desfocadas, escapando-lhe as nuances do terreno, perpetuando, assim, convicções pessoais inabaláveis e posições de princípio inamovíveis que vão alimentando uma ideia de rivalidade ancestral dos tempos bíblicos entre palestinianos e judeus.  

Texto publicado originalmente no Novo Semanário

PESCO reaproxima EUA e UE em matéria de Segurança e Defesa

Alexandre Guerra, 18.05.21

Uma das medidas mais importantes alcançadas até ao momento pela presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (UE) passou um pouco despercebida nos meios de comunicação social nacionais, mas reveste-se de enorme importância no quadro de Segurança e Defesa das relações transatlânticas, nomeadamente entre a NATO e a UE. Foi o próprio ministro português da Defesa, João Gomes Cravinho, que, em vésperas do Conselho Europeu com os seus homólogos em Bruxelas há precisamente uma semana, anunciou a disponibilidade da Noruega, Canadá e Estados Unidos se associaram à Cooperação Estruturada Permanente (PESCO). É um mecanismo instituído no Conselho Europeu de Dezembro de 2017 e que estava previsto no Tratado de Lisboa, com o objectivo de aprofundar a cooperação militar entre os Estados-membros, através de projectos comuns que contribuam para a autonomia estratégica da UE e para o reforço do complexo militar-industrial e tecnológico.

A PESCO é o primeiro mecanismo permanente da UE vocacionado para o desenvolvimento de projectos na área da Segurança e Defesa. Pode ser o embrião de um possível complexo militar-industrial europeu. Para isso, a PESCO conta com financiamento comunitário através do Fundo Europeu de Defesa (EDF), um dos pilares deste mecanismo. É importante relembrar que o EDF foi anunciado pela primeira vez em Setembro de 2016, pelo ex-presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, por ocasião do Discurso do Estado da União, com o objectivo de inovar e potenciar a indústria de Defesa europeia. Três meses depois, sairia do Conselho Europeu o convite para a Comissão apresentar propostas para a criação desse Fundo, que incluísse uma vertente para o desenvolvimento conjunto de capacidades definidas de comum acordo pelos Estados-membros. O Fundo viria a ser criado formalmente em Junho de 2017 e dois anos depois o Parlamento Europeu dava luz verde para dotar o fundo de 13 mil milhões de euros, propostos pela Comissão Europeia no âmbito do Quadro Financeiro Plurianual (QFP) para 2021-2027.

Sendo este Fundo vital para sustentar os projectos da PESCO, dias depois da votação do Parlamento Europeu, Washington, sob a presidência de Donald Trump, enviou uma carta a Bruxelas com um tom bastante agressivo, deixando implícitas várias ameaças políticas e represálias comerciais. A missiva, à qual vários meios de comunicação social internacionais tiveram acesso, tinha a data de 1 de Maio de 2019 e foi enviada a Frederica Mogherini, a então Alta Representante da UE para a Política Externa e Segurança, tendo como remetentes na altura a sub-secretária de Defesa dos EUA, Ellen M. Lord, e a sub-secretária de Estado, Andrea L. Thompson. Nesse “duríssimo texto” (palavras do El País), Washington mostrava-se “profundamente preocupado” já que, à luz das regras do Fundo – e não obstante países fora da UE poderem participar –, toda a propriedade intelectual dos projectos abrangidos por aquelas verbas comunitárias tem de ser exclusivamente europeia. Além disso, o regulamento do Fundo impede que um país terceiro que participe num projecto europeu imponha restrições à exportação comunitária da tecnologia e armamento produzidos.

Estas regras – que surpreenderam e irritaram Washington pela assertividade pouco habitual com que Bruxelas defendeu e protegeu os seus interesses – serão agora aplicadas no projecto da PESCO ao qual os Estados Unidos, Noruega e Canadá se irão associar, já que é financiado pelo EDF no valor de 1,7 mil milhões de euros. Um sinal particularmente importante por parte dos Estados Unidos que, com esta nova presidência de Joe Biden, demonstra vontade de participar num esforço conjunto para a segurança transatlântica no âmbito da NATO e da UE. Por outro lado, esta disponibilidade da UE à participação de outros países terceiros na PESCO, em especial os Estados Unidos, comporta uma mensagem política relevante para Washington, uma vez que é uma contribuição financeira efectiva por parte de Bruxelas para o esforço colectivo da defesa transatlântica no quadro conjunto da UE e NATO. Compreendem-se, por isso, as declarações entusiásticas da ministra alemã da Defesa, Annegret Kramp-Karrenbauer, que considerou estar-se perante um "salto quântico em termos de cooperação". Também João Gomes Cravinho foi muito claro nas declarações que deu ao site Politico: "É muito positivo que os EUA se juntem a isto, em vez de dizerem que a PESCO é, como ouvi noutras alturas da anterior administração, negativa para os interesses da NATO.”

O projecto em causa está relacionado com mobilidade militar europeia e prevê a uniformização de informação entre países da UE, harmonização de regulamentos fronteiriços e melhoramento de pontes e vias terrestres para a passagem de tanques e outras viaturas blindadas. Medidas que possam facilitar o transporte de equipamento pesado e a mobilização de tropas entre diferentes países na Europa. Uma preocupação que a NATO tem demonstrado perante o cenário de um eventual conflito com a Rússia, onde será precisa uma projecção rápida e eficaz de forças. "Actualmente, há barreiras administrativas e de infraestruturas que tornam difícil para o pessoal militar e equipamento se movimentar através da Europa. Muitas vezes, é mais fácil para um turista viajar pela UE do que o pessoal militar”, informou a ministra holandesa da Defesa, Ank Bijleveld, país que lidera este novo projecto em concreto. É um dos 46 projectos que neste momento estão a ser desenvolvidos no âmbito da PESCO, com naturezas e finalidades diferentes, que podem ir da logística à mobilidade militar, passando por sistemas militares de índole variada, cibersegurança ou comunicações.

Com a operacionalização da PESCO, que apenas não integra a Dinamarca e Malta, a UE parece estar finalmente a dar corpo a uma estratégia comum na investigação e desenvolvimento da sua indústria de Segurança e Defesa, ainda para mais, validada pelo Parlamento Europeu através do financiamento do EDF, dando-lhe um carácter mais democrático, que vai muito além das decisões circunscritas ao Conselho Europeu. Para quem acompanha estas questões no seio da UE, consegue elencar um rol de medidas que, durante anos, foram sendo anunciadas, muitas delas com grande pompa, mas sem qualquer efeito prático.

A PESCO corporiza essa vontade partilhada ao nível da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD), sendo um passo importante para ir ao encontro da tal “linguagem do poder” que Josep Borrell, Alto Representante da UE para a Política Externa e Política de Segurança, referia há tempos que a Europa teria que reaprender a falar. Além disso, a medida anunciada pelo ministro João Gomes Cravinho, e formalizada no Conselho Europeu dos ministros da Defesa da passada semana, tem um importante simbolismo, porque dá um sinal de reaproximação política nas relações entre os EUA e a Europa em matéria de Segurança e Defesa. No entanto, é importante relembrar que, apesar do distanciamento político-diplomático imposto pela administração de Trump em relação à segurança europeia, os aliados da NATO, incluindo os EUA, nunca descuraram os seus compromissos militares e operacionais no quadro dos objectivos da Aliança. A questão é que com esta nova parceria com os EUA no âmbito da PESCO, entra-se numa nova fase, na qual a UE assume as “despesas” em matéria de Segurança e Defesa num esforço comum e complementar com os interesses da NATO. Como o próprio João Gomes Cravinho reconheceu, cada organização tem vocações diferentes e, seguramente, à NATO não compete estar a reconstruir pontes em território europeu. Nesse sentido, a PESCO pode ser um mecanismo fundamental para a UE reforçar o seu contributo financeiro em prol da Segurança e Defesa transatlântica.

Texto publicado originalmente no Novo Semanário

Czares da Rússia, o primeiro e o actual

Alexandre Guerra, 10.05.21

Nos tempos recentes o autoritarismo do regime russo tem vindo a ficar mais musculado, com a introdução de uma série de medidas que, por um lado, reforçam e perpetuam o poder de Vladimir Putin e, por outro, instituem de forma brutal e audível o factor medo junto dos actuais e potenciais opositores. A estratégia não é nova, mas se outrora havia uma certa dissimulação na sua concretização ou alguma preocupação do regime em tentar disfarçar associações directas do Kremlin a tudo o que eram manobras ou acções para silenciar opositores indesejáveis ou oligarcas rivais, agora as coisas começam a ser feitas às claras, assumidas política e publicamente por Putin. Como referia há dias Mark Galeotti, especialista em assuntos russos, num interessante artigo no The Moscow Times, durante estes últimos vinte anos a Rússia viveu num regime de “autoritarismo pós-moderno”. Era algo “híbrido” em que a relação de poder entre o Kremlin e a sociedade russa não assentava tanto na força e no medo, mas antes numa narrativa de grandeza patriótica e de nacionalismo exacerbado, alimentada por uma certa ideia romântica de renascimento russo e por uma exortação quase bélica contra os inimigos internos e externos da “Mother Russia”.

Importa recordar que, naquilo que foi a sua construção de poder, Putin beneficiou da anarquia herdada do então Presidente Boris Yeltsin, que conduziu a Rússia e o orgulho do seu povo à sarjeta da História. Em contraste absoluto, Putin emergiu aos olhos dos russos como um novo Czar, o líder que iria restituir a dignidade perdida. Durante vinte anos, este modelo de governação foi resultando, com Putin a manter taxas de popularidade muito elevadas e com a oposição interna reduzida a alguns casos pontuais, mais mediatizados pela imprensa internacional do que propriamente potenciadores de movimentos contestatários internos. No entanto, foram-se abrindo algumas brechas na sociedade e nas elites, ao mesmo tempo que a popularidade de Putin foi descendo. Por exemplo, há cinco anos, andava à volta dos 80 por cento, actualmente rondará os 60. Muito alta ainda, mas a decrescer.

Aos 68 anos e após duas décadas de poder incontestado, Putin percebeu que chegara a hora de reajustar a estratégia e assumir de forma desinibida o seu autoritarismo. Nestes primeiros meses de 2021 já formalizou alterações constitucionais necessárias para que possa servir durante mais dois mandatos, o que é o mesmo que dizer que se manterá no Kremlin até, pelo menos, 2036. Caminho aberto para a perpetuação de poder. Deteve sem qualquer hesitação ou camuflagem o seu principal rival à chegada ao aeroporto de Moscovo, indiferente ao aparato mediático ou às pressões internacionais, ou ainda a eventuais consequências internas provocadas por movimentos contestatários. E há dias, Alexei Navalny foi declarado como inimigo público da Rússia e a sua organização classificada como “terrorist-linked”. Pelo meio, restringiu o trabalho dos meios de comunicação social internacionais no país, classificando-os como foreign agents. Como se não bastasse, na passada Sexta-feira assinou uma lei em que exige aos meios de comunicação nacionais que, sempre que repliquem uma notícia de um destes órgãos estrangeiros, tenham que citar a fonte como foreign agents. E ainda houve tempo para uma mobilização massiva de poder de fogo para a fronteira com a Ucrânia e costa do Mar Negro.

Putin intensifica a repressão e reforça o seu controlo, evolui no modelo de “autoritarismo pós-moderno”, para o que Galeotti chama de “autoritarismo pós-pós-moderno”, o que na prática representa um regresso ao “autoritarismo à moda antiga”, em linha com aquilo que tem sido o comportamento histórico dos vários líderes russos desde os tempos de Ivan III (1440-1505). A este propósito eu escrevia em 2015 no Público um artigo sobre a longa história de autoritarismo na Rússia, no qual sustentava a tese de que havia quase como que uma espécie de predisposição da sociedade russa para aceitar essa forma de Governo. Uma ideia sustentada por vários estudos sociológicos e defendida, em certa medida, por Richard Pipes, um dos maiores especialistas da Rússia, falecido em 2018, com mais de 90 anos.

É preciso relembrar que, desde os tempos da sua formação enquanto reino, a Rússia tem sido uma região muito especial no que à dinâmica entre governantes e governados diz respeito. Para quem conhece e segue a história das lideranças russas, constatará uma tendência crónica para o autoritarismo (já para não falar em totalitarismo, nalguns períodos). É uma evidência histórica. Quando no século XV Moscovo era ainda um Principado, o Grão-Príncipe Ivan III foi o primeiro líder russo a adoptar uma política clara de agregação de vários territórios no sentido de unificar um Estado grande e poderoso. Influenciado pela tradição política mongol, e à semelhança do que iria acontecer com todos os governantes russos até aos dias de hoje, Ivan III impôs um estilo autocrático na prossecução dos seus objectivos. Embora não fosse propriamente um líder sanguinário, nunca deixou de recorrer à violência sempre que não conseguia alcançar os seus propósitos pela via negocial. É através de uma lógica agressiva que vai conquistando alguns territórios para a Rússia que ainda estavam sob jugo mongol-tártaro. Para aquele líder, Moscovo tinha que se assumir como um pólo imperial. E, para isso, era preciso transformar o Principado num centro metropolitano da Igreja, ou seja, a “Terceira Roma”.

O estilo autocrático dos poderes de Roma e de Constantinopla foram uma inspiração para Ivan III, inspiração essa que se tornou uma marca no estilo de liderança russa. Moscovo passava a ser o centro da Igreja Ortodoxa e esta assumia-se como um instrumento fundamental para a sua legitimação junto do povo e como correia de transmissão entre o poder e a sociedade feudal. Basta ver a forma como todos os líderes russos, incluindo Vladimir Putin, se relacionam com os patriarcas ortodoxos e percebe-se a proximidade entre a Igreja e o Estado.

Quando morreu, Ivan III deixou um Estado russo independente, centralizado e poderoso, tendo Moscovo como capital e um vasto território. Introduziu a cerimónia da coroação e foi o primeiro a denominar-se Czar da Rússia. Hoje, e apesar da tal título ter desaparecido do léxico russo com a Revolução de 1917, Putin continua a personificar o espírito dessa figura autoritária, poderosa e quase semi-divina. Em muitos aspectos, poucas diferenças há entre Ivan III e Vladimir Putin. Na verdade, ao longo dos séculos, os traços de autoritarismo e, por vezes, de algum totalitarismo aliado a uma violência extrema, estiveram sempre presentes na forma de governar dos líderes russos. Putin não é mais do que um Czar dos tempos modernos.

Porém, houve um processo evolutivo na entronização de Putin. Quando a 9 de Agosto de 1999 o então Presidente Yeltsin demitia o seu Governo e apresentava ao mundo uma nova figura na vida política russa, poucos eram aqueles que conheciam Vladimir Putin. Aos 46 anos, Putin, ligado ao círculo de São Petersburgo, e antigo oficial do KGB (serviços secretos), assumia a chefia do novo Executivo, com a motivação manifestada por Yeltsin de que gostaria de vê-lo como seu sucessor nas eleições presidenciais de 2000. Segundo alguns registos, Putin nunca terá tido a intenção de seguir uma carreira política, no entanto, teve sempre um alto sentido de servidão ao Estado, como aliás fica bem evidente na biografia de Steven Lee Myers, "O Novo Czar" (2015, Edições 70). Na altura, terá confessado que jamais tinha pensado no Kremlin, mas outros valores se erguiam: “We are military men, and we will implement the decision that has been made”, disse Putin.

Muitos viram na decisão de Yeltsin o corolário de uma carreira recheada de erros e que conduzira o país ao caos e anarquia. A ascensão de Putin era vista como mais um erro. Citado pelo The Moscow Times, Boris Nemtsov, então um dos líderes do bloco dos "jovens reformistas" na Duma e que viria a ser assassinado em Fevereiro de 2015, disse que Putin causou uma fraca impressão na primeira intervenção naquela câmara. "Não era carismático. Era fraco." Também ao mesmo jornal, Nikolai Petrov, do Carnegie Moscow Center, relembrava que Putin deixou uma "patética imagem", sendo um desconhecido dos grandes círculos políticos e que demonstrava ter pouco à vontade com aparições públicas, chegando mesmo a ter alguns comportamentos provincianos. Apesar disso, a Duma acabaria por aprovar a sua nomeação para a liderança do Governo, embora por uma margem mínima.

É preciso não esquecer que Putin reunia apoio nalguns sectores, nomeadamente naqueles ligados aos serviços de segurança, que o viam como um homem inteligente e com grandes qualidades pessoais. E, efectivamente, após ter assumido os desígnios do Governo, Putin começou de imediato a colmatar algumas das suas falhas, nomeadamente ao nível de comunicação, e a desenvolver capacidades que se viriam a revelar fundamentais na sua vida política. É o próprio Nemtsov que reconheceu o facto de Putin se ter tornado mais agressivo e carismático, dando às pessoas a imagem do governante que os russos prezam. Características que se encaixaram na perfeição ao estilo musculado necessário para responder às explosões que ocorreram em blocos de apartamentos de três cidades russas, incluindo Moscovo, em Setembro de 1999, vitimando sensivelmente 300 pessoas, colocando o tema da segurança no topo da agenda da vida política russa, para nunca mais sair de lá. Em Outubro desse ano, como resposta, Putin dava ordem para o envio de tropas para a Chechénia. O novo Czar mostrava-se ao povo russo como um guerreiro implacável. 

Nas eleições presidenciais de 2000, Putin obteve 53 por cento dos votos, contrastando com os 71 por cento conquistados quatro anos mais tarde. Por imposição constitucional ficou impedido de concorrer a um terceiro mandato presidencial. Putin teve então de fazer uma passagem pela chefia do Governo entre 2008 e 2012, mas era claro que não tinha verdadeiras intenções de deixar os desígnios da nação nas mãos do novo ocupante do Kremlin. Conhecendo-se um pouco da história política russa e da sua liderança, facilmente se chegaria à conclusão que Putin era o homem por detrás do poder, enquanto o novo Presidente em exercício, Dimitri Medvedev, seria apenas um "fantoche". Medvedev compreendeu bem o seu papel nesta lógica de coabitação, remetendo-se praticamente a uma mera representação institucional, sem ousar discutir com Putin a liderança da política russa. Como na altura se constatou, a forma seria apenas um pormenor porque o que estava em causa era a substância da decisão. Ouvido na altura pela rádio Ekho Moskvy, o analista russo Gleb Pavlovsky ia directo à questão central: "We can forget our favourite cliche that the president is tsar in Russia." E neste caso o Czar é Vladimir Putin que tanto o poderia ser na presidência (Kremlin), na chefia do Governo ou noutro cargo qualquer, desde que fizesse as devidas alterações constitucionais e que continuasse acompanhado dos seus siloviki.

Texto publicado originalmente no Novo Semanário

Para que servem as presidências rotativas do Conselho da UE?

Alexandre Guerra, 05.05.21

À medida que a União Europeia (UE) foi alargando e crescendo, mais dificuldade foi tendo em acomodar a sede de protagonismo político dos seus vários Estados-membros. Ao mesmo tempo, foi ficando mais complexa na sua estrutura de gestão política, adensando o intricado burocrático nas hierarquias de poder e precedências entre os vários órgãos institucionais europeus. O recente episódio do “sofagate” em Ancara – que num primeiro momento foi analisado à luz da intransigência turca ou do erro protocolar europeu (ambos os casos se verificaram) – é um bom exemplo dessa “competição” interna nos corredores de Bruxelas pela cadeira do poder. Uma disputa embaraçosa permitida pela indefinição política sobre quem é a figura de proa do edifício europeu, percebendo-se, por exemplo, a renitência cautelosa dos líderes internacionais antes de pegarem no telefone e ligarem para Bruxelas, não se vá dar o caso de ferirem inadvertidamente susceptibilidades, ora da presidência da Comissão Europeia, actualmente nas mãos de Ursula von der Leyen, ora da presidência do Conselho Europeu, detida neste momento por Charles Michel. A esta liderança bicéfala junta-se ainda a figura da presidência rotativa do Conselho da UE, instituída pelo Tratado de Lisboa, que, tendo uma função mais decorativa, não deixa de baralhar aqueles que, menos elucidados sobre estas nuances europeias, tentam descortinar “quem é quem?” na cúpula decisória e de poder do edifício europeu.

Esta sobreposição de cargos europeus resulta, em parte, de um acumular de legislação e tratados e de uma indefinição crónica sobre a delimitação das esferas de poderes políticos. Se nos sistemas políticos internos de cada Estado-membro as constituições definem claramente os contornos do regime e o “papel” do Presidente e do primeiro-ministro, já os tratados europeus não são propriamente claros na hierarquização das suas figuras de topo. Ou melhor dizendo, definem as suas funções e responsabilidades, mas são omissos na atribuição da relevância política, até porque nenhum desses cargos é sufragado pelos cidadãos europeus. Tudo isto deixa margem para uma interpretação criativa, e por vezes abusiva, por parte de quem ocupa os órgãos de poder, sobre onde acha que se deve sentar. Por exemplo, Von der Leyen considerou que tinha o direito de se sentar ao lado do Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, já Charles Michel parece ter tido uma perspectiva diferente sobre este “jogo” das cadeiras, que, na verdade, é uma disputa séria sobre a interpretação de ambos do seu próprio poder. A isto somam-se as dinâmicas das presidências rotativas do Conselho da UE que, em bom rigor, acrescentam pouco àquilo que é o “output” do sistema europeu.

As presidências rotativas são mais uma camada de burocracia institucional na liderança europeia, embora praticamente irrelevante naquilo que é o exercício de poder interno e, muito menos, no reconhecimento externo desse mesmo poder nas Relações Internacionais. É preciso assumir que estas presidências não existem propriamente por necessidade e são pouco fulcrais no exercício quotidiano dos desígnios europeus. A sua utilidade prática é questionável, já que dificilmente se poderá atribuir às presidências rotativas os créditos daquilo que é resultado do normal funcionamento dos órgãos europeus permanentes ou da acção político-diplomática das principais potências, França e Alemanha.

Dificilmente uma presidência rotativa inicia e concluiu um dossier específico, sendo que em muitos casos os “sucessos” dependem da casualidade dos calendários, permitindo que aquela possa celebrar uma determinada cimeira ou tratado, mas que é fruto de um processo complexo e moroso – como aconteceu com a presidência portuguesa de 2007, ao assinar o Tratado de Lisboa. Naturalmente que a arte diplomática de cada Estado-membro poderá facilitar e acelerar a conclusão de um dossier nos bastidores ou agilizar a realização de determinado evento, mas nada que altere o curso dos desígnios europeus ou que se substitua ao trabalho desenvolvido pelos órgãos competentes e serviços próprios da UE. Nas presidências rotativas cada Estado-membro define um programa próprio que se esgota ao fim do semestre. Sendo certo que existe em permanência uma troika de Estados-membros que procura assegurar a transição nas agendas programáticas das presidências rotativas, cada país não se coíbe de aproveitar o “palco” semestral para dar o seu cunho criativo na construção do projecto europeu.

Tendo em consideração o que acima foi exposto, admitamos que a mais-valia das presidências rotativas seja a promoção de um certo sentimento de pertença de cada Estado-membro ao projecto comum europeu. O problema é que esse sentimento fica confinado a determinadas elites e circuitos. Para a maioria dos cidadãos europeus, este conceito de presidência rotativa pouco ou nada diz. E se já olham com distanciamento para aqueles que são os órgãos tradicionais de topo da UE, quanto mais para uma presidência semestral, com pouco ou nenhum eco mediático no panorama nacional do Estado-membro presidente e muito menos nos outros países europeus. Com um elevado grau de certeza, diria que a maioria dos portugueses não faz qualquer ideia que Portugal ocupa a presidência rotativa da UE neste momento e muito menos identificará a sua finalidade.

 Além disso, as presidências rotativas acarretam um esforço adicional e uma “distração” aos governos dos Estados-membros. Por um lado, há uma mobilização de recursos humanos e financeiros que se inicia meses antes da presidência no âmbito dos trabalhos preparatórios da troika. Isto implica reorganizações internas nos ministérios, com realocação de profissionais e reagendamento de prioridades políticas. É também necessário contratar pessoal e serviços externos, com os impactos financeiros inerentes. Por outro lado, politicamente, uma presidência rotativa exige uma atenção quase total de alguns responsáveis máximos de um Governo, nomeadamente do primeiro-ministro ou do Presidente (dependendo do sistema). Além dos eventos públicos, diariamente são inúmeras as iniciativas de bastidores, entre reuniões de trabalho e actos protocolares.

A presidência rotativa da UE absorve uma parte da liderança governamental durante seis meses, sem que isso traga um retorno relevante na consolidação do projecto europeu. Nem sequer cumpre aquele objectivo vago de “aproximar os cidadãos à Europa”. Também a liderança política bicéfala da UE, partilhada entre Conselho e Comissão, deveria ser clarificada, não em termos das suas funções, mas na óptica da sua afirmação e projecção de poder. A simplificação e clarificação deste tríptico – presidência rotativa do Conselho da UE, presidência do Conselho Europeu, presidência da Comissão – seria um excelente ponto de partida de debate na Conferência Sobre o Futuro da Europa, mas que, infelizmente, não contemplará qualquer reforma institucional.

Esta iniciativa vai ser lançada formalmente no próximo Dia da Europa (9 de Maio) por António Costa, enquanto primeiro-ministro do país que ocupa actualmente a presidência rotativa do Conselho da UE. Será, sem dúvida, uma das marcas desta presidência que até ver, e por motivos vários – nomeadamente a pandemia Covid-19 –, não será tão luminosa como as três anteriores que o nosso País assumiu (1992, 2000 e 2007). Esta Conferência consiste “numa série de debates e discussões promovidos pelos cidadãos e que permitirão às pessoas de toda a Europa partilhar as suas ideias e ajudar a moldar o nosso futuro comum”. Uma definição algo vaga à qual a Comissão chama de “grande exercício democrático pan-europeu”, que proporcionará um “fórum público para travar um debate aberto, inclusivo e transparente com os cidadãos em torno de uma série de prioridades e desafios fundamentais”.

O princípio é meritório, mas os objectivos parecem ser demasiado dispersos e inconsequentes, residindo aqui uma diferença substancial com a célebre Convenção Sobre o Futuro da Europa, liderada pelo antigo Presidente francês, Giscard D’Estaing, e que tinha como propósito a reforma das instituições europeias. Se a actual Conferência abre espaço ao diálogo e à participação da sociedade civil, mas com um horizonte mais longínquo e menos evidente nas suas metas, já a Convenção circunscrevia-se a um circuito limitado de políticos e decisores, porém com impacto mais imediato e substancial na estrutura organizacional da UE.

Ou seja, a Convenção criada pelo Conselho Europeu de Nice, em Dezembro de 2000, teve uma abordagem mais técnica e burocrática, no entanto, distanciada dos cidadãos. Ao invés, a Conferência prestes a ser lançada propõe-se a algo mais alargado, num modelo de debates e conferências dispersos pelos Estados-membros que se prolongará até à Primavera do próximo ano, porém sem que se perceba bem qual a finalidade concreta deste exercício – se há coisa que a UE não tem falta é de conferências e debates.

Neste momento já é possível aceder a plataforma digital interactiva multilingue (https://futureu.europa.eu/) da Conferência, que permite aos cidadãos inscreverem-se em eventos ou debates e apresentarem as suas ideias e propostas relativas a diferentes áreas. Esta plataforma funcionará como uma espécie de hub, a partir do qual toda a informação será sistematizada e agregada para depois ser debatida em painéis de discussão e conferências descentralizadas. O ideal teria sido um modelo misto entre a Convenção e a Conferência, definindo-se, por um lado, objectivos claros e concretos e, por outro, permitindo a participação da sociedade civil. Dessa forma, eu teria a possibilidade de propor que se acabasse com as presidências rotativas do Conselho da UE e se hierarquizasse politicamente de forma inequívoca as presidências do Conselho Europeu e da Comissão Europeia.

Texto publicado originalmente no NOVO Semanário