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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

A inércia da guerra mais longa

Alexandre Guerra, 26.04.21

Quando a 28 de Setembro de 2001, ainda enquanto jornalista de Internacional, um texto da minha autoria fez manchete na edição do extinto Semanário desse dia e que titulava “Força Delta estará no Afeganistão”, estava muito longe de imaginar que seria o início de uma presença militar americana naquele país que se arrastaria durante vinte anos. Nem eu, nem ninguém na altura, antecipou ou prospectivou um envolvimento militar americano que se estendesse temporal e materialmente bem para lá daquilo que tinha sido, por exemplo, a Guerra do Vietname.

Porém, entre analistas e especialistas havia uma quase certeza quanto ao desfecho da guerra lançada pelo então Presidente George W. Bush: como a História já tinha demonstrado com os britânicos e com os soviéticos, os soldados americanos iam partir para um país que nunca se deixara invadir por forças ocupantes e que, de uma maneira ou outra, seriam repelidas daquele território sem os objetivos verdadeiramente alcançados.

Importa notar que logo após os atentados de 11 de Setembro de 2001, num primeiro momento de choque, toda a gente foi apanhada de surpresa em Washington, das estruturas militares às várias agências de segurança e contra-terrorismo, passando pelos serviços de intelligence. Uns meses mais tarde em Bruxelas, alguns altos responsáveis militares da NATO diziam-me precisamente isso. Por momentos, foi o desnorte. O povo americano e o mundo clamavam por uma reposta imediata contra um inimigo bárbaro, mas em Washington a dúvida era: contra quem e contra quê?

Perante uma América prostrada, receosa e revoltada, exigia-se rapidez no processo de decisão política e o Presidente George W. Bush, assim como os “falcões” que o secundavam, estava perfeitamente ciente desse facto. Rapidamente se começaram a ligar as muitas pontas soltas de informação dispersa entre as várias agências de segurança e de intelligence, ao mesmo tempo que se começava também a perceber as inúmeras falhas sistémicas que permitiram um ataque daquela magnitude sem que qualquer alarme tivesse soado ou qualquer alerta tivesse sido dado.

Bastou um olhar mais atento e integrado para se chegar facilmente a Osama bin Laden e à sua organização al Qaeda, que nem sequer eram estreantes no terrorismo islâmico contra interesses americanos. O Afeganistão e o regime Taliban (outrora financiado e treinado pelos americanos na guerra contra o Exército Vermelho da União Soviética nos anos 80) tornavam-se o alvo imediato e consensual dos Estados Unidos.

Após algumas semanas em que muito se especulou sobre a possível chegada de forças especiais ao Afeganistão, na noite de 19 de Outubro uma força conjunta composta por elementos da Delta Force e dos Rangers, transportados pelos pilotos de elite do 160º Regimento de Aviação de Operações Especiais do Exército, conhecidos como “Night Stalkers”, iniciavam as operações de combate homem a homem no terreno.

Duas companhias compostas por duzentos Rangers levavam a cabo o “Objective Rhino”, saltando de paraquedas a partir de quatro Lockheed MC-130 a sul de Kandahar. Desde as operações do Panamá em 1989 que os Rangers não faziam uma operação deste género. Agora o objetivo era destruir todas as forças Taliban e da al Qaeda que encontrassem pela frente e estabelecer um perímetro de segurança numa faixa de terreno que permitisse uma pista de aterragem para o reabastecimento da aeronaves.

Ao mesmo tempo, os homens da Delta, a alguns quilómetros distância, a bordo de quatro MH-47 Chinooks pilotados pelos “Night Stalkers”, davam “Objective Geck”, numa operação furtiva nocturna dirigida à residência do líder máximo dos Taliban, Mullah Omar, embora a intelligence tivesse avisado que seria muito pouco provável que ele estive em casa. Mas o objectivo era, sobretudo, mostrar ao inimigo que as forças americanas podiam chegar onde quisessem e que nenhum taliban estaria a salvo.

Em termos mediáticos e de percepção pública começava a mais longa guerra dos Estados Unidos, denominada de operação Enduring Freedom, cujos objectivos iniciais eram a captura/eliminação de Osama bin Laden, a erradicação da al Qaeda, a destruição do regime Taliban – objectivo que viria a mudar mais tarde – e consequente esbatimento da ameaça terrorista a partir daquele “santuário”. No entanto, em termos práticos, a operação já estava em curso com os bombardeamentos americanos no Afeganistão desde o início de Outubro. Além disso, os Delta e os Rangers não foram os primeiros a meter as “botas” em território afegão. Há semanas que já estavam infiltrados no terreno alguns elementos da CIA no vale de Panjhir, a norte de Cabul. Os homens da CIA tinham sobretudo dois objectivos: por um lado, criar canais de negociação com possíveis aliados na região, nomeadamente a Aliança do Norte, e, por outro, preparar o terreno para a chegada dos militares.

E os militares americanos chegaram e foram chegando ao longo de muitos anos. E com eles, milhares de contractors, onde se incluem serviços de segurança privada, transporte, construção, análise de intelligence, entre outros providenciados por empresas com quem o Departamento de Defesa tem contractos. No pico da presença militar americana no Afeganistão chegaram a estar em 2011 quase 100 mil soldados e no ano seguinte atingiu-se o recorde de mais de 28 mil contractors de segurança privada. Ao todo, em 2012, estavam no Afeganistão quase 120 mil contractors. Um esforço massivo em termos logísticos e de folhas de pagamentos de ordenados.

A 2 de Dezembro de 2009, Barack Obama perante os cadetes de West Point anunciava a mobilização de mais 30 mil soldados para o Afeganistão. O objectivo era alcançar uma “conclusão bem sucedida” da guerra que já se arrastava há alguns anos. Nesse mesmo discurso, Obama informava a América que num espaço de dezoito meses as tropas poderiam começar a regressar a casa, no que se subentendia como o princípio do fim do envolvimento dos EUA num país onde já ninguém queria estar.

Em finais de 2009, inícios de 2010, já era evidente o atoleiro em que se tinha transformado o Afeganistão. Os líderes da al Qaeda estavam confortavelmente instalados nas zonas tribais do Paquistão, os Taliban retomaram o controlo de parte substancial do território do Afeganistão, a violência recrudescia, assim como o cultivo de ópio. A tudo isto somava-se outro desastre ainda maior chamado Iraque.

Após quase dez anos de guerra no Afeganistão, o fardo tornava-se demasiado pesado e Washington estava a ser confrontado com o seu erro originário ao ter iniciado uma guerra sem uma estratégia de saída bem definida e que, provavelmente, nunca esteve adequada aos objectivos concretos delineados pela administração de George W. Bush.

Quando Obama toma posse em 2009 como Presidente dos EUA, a sua secretária de Estado, Hillary Clinton, nomeia o embaixador Richard Hoolbrooke para um cargo recém-criado: representante especial para o Afeganistão e Paquistão. Holbrooke era um homem com enorme experiência internacional, nomeadamente em cenários de conflito, como foram os casos da Guerra do Vietname e, muitos anos mais tarde, do conflito dos Balcãs – foi um dos grandes responsáveis pelo Acordo de Dayton. Holbrooke não perdeu tempo e viajou de imediato para Cabul, numa altura em que as chefias militares americanas pediam um reforço massivo de tropas.

Na edição de Maio/Junho da Foreign Affairs que está para sair é relatada uma reunião extraordinária na “Situation Room” da Casa Branca, onde estavam presentes Hoolbroke, através de videoconferência a partir de Cabul (Hillary Clinton não pôde participar por motivos de agenda), Obama e restantes elementos do staff. A intervenção de Holbrooke não correu bem, porque a determinada altura foi desenvolvendo a sua ideia à luz dos ensinamentos do Vietname, chegando a sustentar que a problemática do envio de mais soldados assentava numa “savage intersection of policy, politics, and history”.

Obama não percebeu Holbrooke e ignorando todo o passado do diplomata enquanto homem de terreno, acabou por remetê-lo a uma condição de teórico nostálgico sem capacidade de dar uma resposta concreta a um problema presente e que, para o Presidente, nada tinha a ver com o Vietname. E essa era a questão central, porque Obama não queria ouvir falar nisso, nessas comparações que em nada favoreciam uma retórica de vitória que se queria “vender” ao povo americano. Todo o seu staff directo era jovem e o próprio Obama tinha nascido pouco antes do início da Guerra do Vietname. Para esta gente era uma questão meramente histórica, do passado, sem qualquer utilidade para a crise presente.

Dias depois, Hillary Clinton abordava Holbrooke, após Obama ter falado com a secretária de Estado:

  • “They don’t think they have anything to learn from Vietnam”, disse Hillary.
  • They’re going to make the same mistakes!”, respondeu Holbrooke.

Na comparação entre o Vietname e o Afeganistão, Holbrooke, que viria a morrer pouco tempo depois, escreveria no seu diário o seguinte:

“Of course, everything is different — and everything is the same. And somehow, I am back in the middle of it, the only senior official who really lived it. I had not thought much about it for years, now it comes back every day. Every program has its prior incarnation—mostly unsuccessful. . . . I think we must recognize that military success is not possible, + we must seek a negotiation. But with who? The Taliban are not Hanoi, + their alliance with Al Qaeda is a deal-breaker.”

Embora Obama não quisesse ouvir falar em qualquer comparação com o Vietname, Holbrooke antecipou aquilo que viriam a ser os dez anos seguintes. Apesar da importante vitória que Obama teve a 2 de Maio de 2011, com a morte de Osama bin Laden, os Estados Unidos passariam mais dez anos no Afeganistão sem que pudessem clamar de forma peremptória qualquer vitória. Pelo contrário, a situação foi-se deteriorando.

A verdade é que desde George W. Bush, as administrações limitaram-se a gerir o “dossier afegão” herdado do antecessor, sem que tivesse havido qualquer ruptura no modelo de política que estava ser seguido em relação àquele país. Aliás, é muito interessante constatar que nos anos recentes a The National Interest recuperasse umas declarações de Obama, proferidas em 2010, onde este admitia que os EUA tanto podiam ficar no Afeganistão por mais cinco, oito ou dez anos, não por uma questão de estratégia, mas sim por “inércia”.

A mesma inércia que viria a obrigar os Estados Unidos a fazerem aquilo que seria impensável quando Bush deu luz verde para a Enduring Freedom: negociar com inimigo. Uma perspectiva cínica e cruel, mas realista. A única que impera nas Relações Internacionais. Faça-se justiça ao ex-Presidente Mário Soares, estadista em toda a sua plenitude, porque foi dos primeiros a falar nessa possibilidade em 2004, tendo, na altura, sido fortemente criticado por aqueles que, nada tinham aprendido com a história do Afeganistão e, ingenuamente, acreditavam numa solução militar clássica para derrotar a al Qaeda e o regime Taliban no Afeganistão. Houve quem também visse virtuosidade nestas palavras. Miguel Sousa Tavares escrevia na altura no Público: “Ou muito me engano, ou as palavras de Soares são premonitórias: dêem tempo ao tempo.”

Mais de 15 anos passaram até que as palavras de Mário Soares encontrassem eco na realidade, com o acordo de Doha de 29 de Fevereiro de 2020 entre os EUA e os Taliban. O tempo que passou foi o tal tempo de inércia, que foi ceifando vidas e queimando recursos. Cingindo-nos apenas aos EUA, os vinte anos de guerra no Afeganistão custaram mais de 2300 vidas, quase 20 700 feridos e cerca de 900 mil milhões de dólares. Do lado afegão, a Brown University estima que tenham morrido mais de 64 mil soldados e polícias. Quanto aos civis afegãos, os números não são claros, porque a Missão de Assistência ao Afeganistão das Nações Unidas (UNAMA) só começou a contabilizar a partir de 2009, com o número a ascender aos 110 000.

Uma fotografia impressionante e pouco entusiasmante. Talvez por isso, na hora de anunciar a retirada total dos soldados americanos até ao próximo dia 11 de Setembro (adiando por mais uns meses o que tinha sido acordado entre Washington e os Taliban há mais de um ano), Joe Biden tenha poucas razões para festejar, sublinhando que o objectivo nunca foi a estabilização ou a unificação do país, mas sim a eliminação da potencial ameaça que dali vinha. Provavelmente isso já poderia ter sido anunciado há dez anos, como referia há dias Vanda Felbab-Brwon, directora da Initiative on Nonstate Armed Actors, no blogue Order from Chaos da Brookings Institution: The U.S. primary objective in Afghanistan since 2001 has been to degrade the threat of terrorism against the United States and its allies. That basic goal was accomplished a decade ago.”

Biden pouco interesse ou vontade tinha em reverter o acordo do seu antecessor alcançado com os Taliban, tendo apenas adiado em poucos meses a sua concretização. Biden, tal como Donald Trump, sabia que chegara o momento de meter fim ao envolvimento perpétuo americano no Afeganistão. Obama já o podia ter feito (chegou a ensaiar essa retirada, como acima foi referido). Todos sabem que os últimos soldados americanos vão regressar a casa e deixar um país dilacerado, economicamente em farrapos, com uma criminalidade galopante e com os Taliban a prepararem-se para disputar o poder central em Cabul, como referia há dias o especialista Max Boot num artigo no site da Foreign Affairs.

As chefias militares americanas discordam desta retirada e já alertaram para os perigos a médio prazo. Ainda esta Terça-feira (20), numa audição do Comité dos Serviços Armados do Congresso, o General Frank McKenzie, chefe do Comando Central dos Estados Unidos, avisou que será muito difícil identificarem e anularem eventuais ameaças terroristas no Afeganistão sem tropas no terreno. Também o Afghanistan Study Group, promovido pelo Congresso dos EUA sob alçada do US Institute of Peace, referia num relatório do início de Fevereiro que “uma retirada precipitada poderia conduzir à reconstituição da ameaça terrorista ao território dos Estados Unidos num espaço de 18 meses a três anos”. É que mesmo que fiquem alguns elementos da CIA no Afeganistão, a sua capacidade operacional será substancialmente reduzida, porque deixam de poder contar com o apoio militar de retaguarda. Além disso, neste momento, os Estados Unidos não têm qualquer acordo negociado com os países vizinhos do Afeganistão para poderem instalar unidades militares de apoio.

Seja como for, a decisão está tomada e a administração Biden vai mandar regressar os cerca de 2500 militares que ainda estão no Afeganistão (a NATO retirará também o seu contingente) e cessar vínculos com os mais de 6300 contractors. Vinte anos depois, é o princípio do fim do envolvimento americano no Afeganistão, não por qualquer evidência retumbante de glória ou vitória, mas simplesmente por inércia.

Virá novamente o Afeganistão representar uma ameaça terrorista directa ao território dos EUA? É ainda cedo para se perceber, mas uma coisa é certa, os Taliban ficarão com maior margem para alargar o seu domínio ao resto do país, incluindo Cabul, e, ao contrário do que prometeram em Doha, é muito provável que venham a reforçar os laços de proximidade com a al Qaeda.

Publicado originalmente no NOVO Semanário

Jesus, a política e as mulheres

Alexandre Guerra, 01.04.21

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Uma pintura de Giovanni Cariani (1490-1547) que retrata Verónica a ir ao encontro a Jesus Cristo, quando este percorria a Via Dolorosa em direcção ao Calvário, para, com o seu véu, lhe limpar o sangue e suor do rosto, que ficou estampado no tecido. E assim terá ficado eternamente, tendo o "Véu de Verónica" se tornado numa das mais famosas "relíquias" do Cristianismo.

Além do seu significado religioso, a Semana Santa representa um dos acontecimentos políticos e sociais mais importantes da Humanidade: a chegada em glória de Jesus Cristo, o "rei" dos judeus revoltosos contra o domínio de Roma, a Jerusalém. O motivo era a celebração da Páscoa judaica, mas os dias que se seguiram foram conturbados, de autênticas manobras políticas, conspirações e traições. No fim, a condenação e crucificação de Jesus Cristo, não sem antes sofrer na caminhada pela Via Dolorosa com a cruz às costas, perante uma sociedade instrumentalizada e instigada. O percurso final de Jesus Cristo para o Calvário, na altura situado numa colina fora da cidade velha de Jerusalém, começa no local onde Pilatos terá "lavado as mãos", desresponsabilizando-se do destino do "rei" dos judeus. A partir daí, a Via Dolorosa vai atravessando parte da cidade velha de Jerusalém, uma experiência única e de um interesse admirável. Percorri-a algumas vezes. É muito emocionante andar pelas várias estações que compõem a Via Dolorosa e que assinalam diferentes momentos bíblicos dessa caminhada de Jesus Cristo. É um exercício interior e introspectivo, que nos confronta com o mal e sofrimento humano, mas também com a solidariedade e o amor do próximo. Para lá de qualquer leitura religiosa, pensando um pouco naqueles acontecimentos e na sociedade da altura, percebemos que são poucas as pessoas que vão em auxílio de Jesus Cristo. São sobretudo mulheres que O ajudam na hora do seu sofrimento. 

As mulheres na vida de Jesus é um dos temas mais interessantes que se encontram nos Evangelhos, mas é também um dos assuntos menos debatidos e analisados à luz daquilo que são os Direitos Humanos, nomeadamente ao nível da igualdade de género. Como disse um dia numa entrevista o padre e professor universitário Anselmo Borges, Jesus Cristo terá sido o primeiro feminista da História, no entanto, poucas são as vezes em que esse mérito lhe é atribuído. E de facto, à medida que se vai ficando a conhecer melhor alguns dos episódios da vida de Jesus, sobretudo a partir do momento em que inicia o seu ministério e se faz acompanhar dos seus discípulos fiéis, começa-se a vislumbrar a forma disruptiva de como o nazareno quebrou com convenções sociais e práticas instituídas nas sociedades judaica e romana, que à época estendia o seu império até à Judeia e Galileia.

Muito além da sua intervenção política, Jesus foi inovador naquilo que, séculos mais tarde, se iria chamar de Direitos Humanos. A sua mensagem assentava num conceito de igualdade entre povos, entre ricos e pobres, entre enfermos e sãos… entre homens e mulheres. De certa maneira, a Igreja fundada por Pedro vai reflectir grande parte dessa mensagem humanista, com excepção da visão de Jesus sobre o papel da mulher na sociedade. Aqui, a Igreja ao longo dos séculos nunca foi fiel à mensagem do filho de Deus, optando por remeter a mulher para um papel secundário.

E porque terá isso acontecido? A resposta não é óbvia e pode conduzir a debates intermináveis, mas não pode deixar de causar estranheza, se tivermos em consideração que houve uma vontade expressa na Bíblia de enfatizar esse factor revolucionário relativo ao papel da mulher na sociedade. Ou seja, em momento algum, os autores da Sagrada Escritura tentaram escamotear essa realidade nem subestimar a importância histórico-religioso das mulheres que acompanharam Jesus em diferentes momentos da sua vida.

Durante o seu ministério por terras da Galileia e da Judeia, Jesus fez-se acompanhar por mulheres em condições de igualdade com os homens. E isto era uma realidade nunca vista na sociedade judaica. Tal como Pedro, Lázaro ou João, as irmãs Maria e Marta de Betânia, ou Maria Madalena, eram discípulas de Jesus e viam Nele um “mestre”, um “professor”. Jesus depositava nestas mulheres total confiança e, em muitos casos, eram elas que assumiam os encargos do quotidiano dos homens, evidenciando-se a sua emancipação sem qualquer constrangimento ou preconceito.

Analise-se, por exemplo, um dos acontecimentos mais marcantes da História da Humanidade e que agora se celebra entre os cristãos: a Paixão. No seu esforço sobre-humano e auto-sacrifício em prol de um bem maior, são sobretudo mulheres que O ajudam na sua caminhada em sofrimento. Maria Madelena é uma delas, mas também Verónica, e as chamadas "mulheres de Jerusalém", que choram pelo filho de Deus e acompanham-No com toda a sua compaixão ao Calvário. Maria, a mãe de Jesus, acolhe-O na Descida da Cruz, num gesto de “piedade”.

Dizem os Evangelhos que foram essas mesmas mulheres, muito provavelmente Maria Madalena, as primeiras a dirigirem-se ao túmulo de Jesus Cristo e a constatarem que estava vazio. Os textos sagrados não são suficientemente claros quanto aos contornos específicos desse momento, se foi apenas uma “Maria” ou mais “Marias”, mas uma coisa é certa: Pedro e João souberam da Ressurreição pela voz de uma dessas mulheres, a quem Jesus, coberto por vestes brancas, lhes terá dito para transmitir tão importante mensagem aos Apóstolos. Mensagem, essa, que foi recebida com bastante relutância por parte de Pedro e João, porque não concebiam que um acontecimento desta magnitude lhes fosse transmitido por uma mulher. Rapidamente se dirigem ao túmulo para serem confrontados com uma realidade que não conseguiram compreender.

Mas o que é facto é que as Escrituras nos deixaram esse registo, atribuindo às mulheres em geral, e em particular a Maria Madalena, a responsabilidade do anúncio de uma das ideias centrais do Cristianismo: a Ressurreição. Quando Jesus ressuscitado surge em frente a Maria Madalena, naquele preciso momento, há um reconhecimento implícito de que ela é a discípula que melhor compreendeu a Sua mensagem e o acto que tinha acabado de acontecer, tornando-se assim, de facto, a “primeira apóstola”, uma ideia que, como se sabe, nunca foi aceite pelos cânones tradicionais da Igreja.

Ao nível do poder político, parece ter havido uma compreensão imediata do potencial problema que representava o misterioso desaparecimento do corpo de Jesus Cristo. As autoridades judaicas quando souberam do fenómeno, através dos guardas do túmulo, mantiveram segredo em relação à versão original que lhes contaram e não perderam tempo a forjar uma teoria da conspiração para justificar o acontecimento, fazendo passar a mensagem de que os discípulos de Cristo tinham roubado o seu corpo durante a noite, no que poderia ser interpretado com um acto de fanatismo. Ironicamente, para os historiadores, esta posição da parte dos anciões judeus, acabaria por ser a assunção de que o túmulo estava, efectivamente, vazio, dando força a uma das ideias centrais do Cristianismo: a Ressurreição.