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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

As primeiras notas sobre a biografia de Churchill

Alexandre Guerra, 28.10.19

 

Da leitura que estou a fazer da biografia de Andrew Roberts, "Churchill - Caminhando com o Destino" (Texto Editores, Gupo Leya), acabada de ser lançada em Portugal, retiro algumas ideias:

 

- Os cinco "elementos" que Churchill considerou como alicerces da sua grande oratória: "a escolha certeira das palavras; as frases cuidadosamente tecidas; a acumulação dos argumentos; o recurso à analogia; o recurso às extravagâncias".

 

- A religião esteve sempre presente no discurso político conservador anglo-saxónico. Mas veja-se isto: "Do total de cinco milhões de palavras que [Churchill] pronunciou nos seus discursos, nunca disse a palavra 'Jesus' e só uma vez proferiu a palavra 'Cristo' (...)."

 

- "[Churchill] Era o correspondente de guerra mais bem pago do mundo. Com esses proventos, mais dos livros e palestras correspondentes, em 1901 já tinha amealhado uma fortuna correspondente a um milhão de libras de hoje (...)."

 

- Lê-se na biografia que Churchill só aos 73 anos terá marcado um número de telefone pela sua própria mão. Não surpreende, se tivermos em conta o ambiente elitista em que viveu. Surpreende, sim, é haver políticos no século. XXI com práticas distanciadas do mundo real.

 

A ilusão

Alexandre Guerra, 28.10.19

 

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Brave New World (part two) by Marit Otto (2018)

 

A reler o "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley... "Oh, admirável mundo novo..." Disse o "selvagem" John quando reagiu ao convite do "civilizado" Bernard para regressar com este e sua companheira Lenina a Londres, capital da civilização, da utopia. John nunca tinha saído do pueblo Malpais, uma espécie de reserva indígena museológica de uma humanidade pré-civilizacional, localizada algures na região do Novo México e México. O "selvagem" nunca tinha visto nenhuma mulher como Lenina, para ele, um "anjo vestido de viscose verde garrafa, resplandecente de mocidade e de cremes de beleza, rechonchudo, sorrindo com meiguice", um ideal de perfeição e harmonia, um exemplo das "virtudes" da grande civilização de Ford, contrastando com o estádio primitivo do mundo renegado de Malpais. "Oh, admirável mundo novo, onde existem tais criaturas..." Dizia John deslumbrado com a civilização de Bernard e Lenina. Era um mundo novo, sim, mas desconhecia o jovem "selvagem" que em Londres o esperava uma sociedade sem alma nem humanismo, onde não havia vontade própria nem livre arbítrio. 

 

Churchill - Caminhando com o Destino

Alexandre Guerra, 21.10.19

 

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Churchill - Caminhando com o Destino, acabou de sair em Portugal pela mão da Texto Editores (Grupo LeYa), com a edição de Duarte Bárbara (com quem já tive o privilégio de trabalhar na edição de um livro de um antigo dirigente político português). Esta nova biografia do historiador Andrew Roberts foi lançada no ano passado e mereceu elogios internacionais. Com mais de mil biografias escritas sobre Churchill, o The Guardian revela que esta obra tem a virtude de apresentar novo material, que, entre outras coisas, destapa o sentimentalismo e as lágrimas literais da vida privada do antigo primeiro-ministro. E apesar da admiração que o autor tem por Churchill, isso não o impediu de abordar os muitos erros desastrosos do antigo líder britânico. Já o The New York Times questiona-se se esta não será a melhor biografia do antigo primeiro-ministro britânico alguma vez publicada e destaca a sua autoridade e elegância na escrita. Voltarei a este tema em breve aqui neste espaço.

 

Elijah E. Cummings (1951-2019), o adeus de um homem de "clarividência moral"

Alexandre Guerra, 17.10.19

 

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De forma algo repentina, o congressista democrata Elijah E. Cummings morreu aos 68 anos. Eleito pelo círculo de Baltimore no estado de Maryland, Cummings foi um homem de consensos e que sempre teve um enorme respeito pelos seus adversários republicanos. Nos últimos tempos, travou duras batalhas com Donald Trump, que foi bastante agressivo com Cummings, mas nem isso impediu o Presidente de ser elogioso com o congressista depois de ter tido conhecimento da sua morte.

 

Dedicado à democracia e aos direitos civis, Cummings foi, como disse a “speaker” do Congresso Nancy Pelosi, uma “voz de clarividência moral” num país que atravessa um dos períodos políticos mais conturbados da sua história. Quando fez ouvir essa mesma voz contra a política da Casa Branca em relação aos centros de detenção de migrantes ilegais, Trump ripostou de forma rude e agressiva, acusando Cummings de ser um "bully brutal" e  da sua cidade Baltimore ser um "ninho infestado de roedores" onde "nenhum ser vivo quer viver". Na resposta, Cummings foi um senhor e explanou toda a sua maneira de estar na política : "Mr. President, I go home to my district daily. Each morning, I wake up, and I go and fight for my neighbors. It is my constitutional duty to conduct oversight of the Executive Branch. But, it is my moral duty to fight for my constituents."

 

Lições da Guerra Fria para um combate realista às alterações climáticas

Alexandre Guerra, 08.10.19

 

Em tempos escrevi que “uma Humanidade criada das cinzas de um conflito nuclear à escala global teria certamente que lutar pela sobrevivência da espécie, num mundo que estaria de regresso às origens do primitivismo social, eventualmente mergulhado num ‘estádio natureza’ hobbesiano, sem qualquer tipo de ordem ou contrato social”. E acrescentava: “O decisor político, que em última instância ordenaria a auto-destruição da Humanidade, num gesto calculado e analisado (ou não tivesse na sua posse a informação necessária para antecipar as consequências do seu acto), assumiria o papel de Deus, ao interferir com a existência das espécies, incluindo a única dotada com a faculdade do ‘entendimento’.” (1)

 

Recupera-se aqui estas palavras porque, de certa forma, há um paralelismo que pode ser estabelecido entre o potencial destruidor das armas nucleares e o das alterações climáticas: na sua versão pós-apocalíptica estas duas realidades – ironicamente resultantes da “inevitabilidade” do progresso científico – contêm na sua génese elementos perturbadores à vivência do Homem, não apenas enquanto ser social, mas como entidade biológica, podendo conduzir mesmo à sua destruição.

 

I am become Death, the destroyer of worlds”, desabafou J. Robert Oppenheimer, momentos após o Trinity Test a 16 de Julho de 1945, vendo confirmada a sua teoria sobre o potencial destrutivo da tecnologia de fissão nuclear. Semanas depois, as bombas atómicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki revelaram ao mundo uma força avassaladora até então desconhecida, potencialmente capaz de aniquilar a Humanidade.

 

Da literatura ao cinema, a cultura popular foi invadida pelo imaginário dantesco do cataclisma nuclear. Durante décadas, as sociedades viveram sob o medo de um conflito nuclear iminente à escala global. A natureza competitiva do sistema bipolar conduziu a uma disputa pelo domínio militar e a uma corrida aos armamentos (convencional e nuclear), gerando uma situação insustentável com potencial destrutivo da Humanidade. Era a primeira vez que a História do Homem estava confrontada com essa possibilidade. Como escreveu Aldous Huxley no seu prefácio à edição de 1946 da sua célebre obra Admirável Mundo Novo, “a libertação do atómico representou uma grande revolução na história humana”.

 

Quando os líderes ocidentais das duas superpotências nucleares tomaram consciência de que a escalada nuclear ilimitada poderia conduzir a um desastre de proporções bíblicas, Washington e Moscovo, sob forte pressão das suas opiniões públicas, construíram um regime internacional que permitiu “controlar” a problemática da “corrida” às armas nucleares. Além disso, este regime pretendia também conter a proliferação nuclear além dos Estados que já estivessem no “clube”. De certa forma, este regime tem funcionado durante décadas, embora tenha começado a revelar algumas brechas no pós-Guerra Fria, mais concretamente nos últimos anos, com o Irão e a Coreia do Norte.

 

Porém, é importante relembrar que nas ruas de algumas capitais ocidentais, o que se exigia na altura era uma solução irrealista e inalcançável, que apontava para o desarmamento total e global. Por mais mérito e virtude que essa ideia tivesse, jamais seria colocada em prática. Não havia condições objectivas para tal. Num mundo ideal, próximo da utopia, talvez. Mas nunca naquele sistema de Guerra Fria. Além disso, as receitas excessivamente idealistas já se tinham revelado no passado contraproducentes em termos sistémicos, bastando recordar as consequências desastrosas das políticas bem intencionadas, mas totalmente irrealistas, de Woodrow Wilson.

 

Idealismo à parte, foi o realismo político de então que permitiu viabilizar um modelo de entendimento na questão nuclear, concretizável e com resultados quantificáveis. Em vez de se falar de desarmamento total, algo que Washington e Moscovo nunca iriam aceitar, o objectivo passou a ser o “controlo” da corrida às armas e o combate à proliferação nuclear. Um feito mais modesto, mas realizável.

 

O debate público que actualmente se faz ouvir em torno da questão ambiental tem semelhanças com os movimentos pacifistas que se manifestaram no pico da crise nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética. Além de estar carregado de hipocrisia e contradição, a retórica ambientalista mainstream contém os elementos do seu próprio falhanço, porque assenta numa abordagem ingénua e, muitas vezes, populista, distante de possíveis modelos racionais que possam contribuir, efectivamente, para uma resposta prática. As proclamações genéricas soam bem para quem as ouve e as manifestações imprimem uma sensação de obra para quem participa nelas, mas, realisticamente, estas acções em pouco ou nada se repercutem, eficazmente, no ataque ao problema.

 

O mundo tem continuado a fazer a sua caminhada imparável para a beira do precipício, com a cumplicidade de todos, seja por irresponsabilidade, negligência ou puro egoísmo, com as sociedades a entrarem numa espiral cada vez mais consumista, incapazes de abdicarem dos seus níveis crescentes de conforto, sejam gerações mais velhas ou mais novas. Não tem sido por falta de sensibilização e muito menos de conhecimento científico que se chegou ao ponto onde se chegou. Não é de agora que as questões ambientais agitam as opiniões públicas. Basta recuar até há quase 25 anos, quando a Humanidade despertou para a ameaça à sua existência com a descoberta do “buraco” na camada de ozono na região da Antártida. Perante o anúncio chocante, gerou-se um debate intenso, alimentado por um sentimento de alarme geral que obrigou os governos a subscreverem muito rapidamente o Protocolo de Montreal, em 1987. Este documento, à semelhança de tantos outros do género, poderia ter sido mais uma declaração vazia de princípios, sem qualquer foco. Continha a grandiosidade imensa de um acordo universal, tendo sido a primeira vez que todas as nações do mundo subscreveram um documento deste tipo. Ou seja, tinha tudo para dar em nada, no entanto, a grande diferença é que o Protocolo de Montreal se centrou num objectivo muito concreto e realista: acabar com a comercialização de produtos com compostos químicos gasosos de clorofluorcarbonetos (CFC). As metas ficaram muito bem definidas e especificadas.

 

Este protocolo revelou-se um dos mecanismos mais eficazes de sempre, conseguindo em pouco mais de duas décadas alcançar uma grande parte dos objectivos propostos, com resultados ambientais evidentes ao nível da redução do “buraco” na camada de ozono. E como foi possível tal feito? Através de um modelo mais realista. Embora estivesse assente numa base alargada a todas as nações, o Protocolo foi construído de modo a que todos os Estados, independentemente do seu estádio de desenvolvimento, pudessem alcançar as metas.

 

É preferível ter uma medida concretizada do que um enunciado delas que revelam ser não mais do que meras declarações de circunstância. Ainda recentemente na Cimeira da Acção Climática realizada em Nova Iorque, à margem da 74.ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, 77 países, Portugal incluído, anunciaram a intenção de alcançar a meta de emissão zero de gases com efeito de estufa até 2050. Uma declaração que vai ao encontro da agenda mediática e das vozes que ecoam nas ruas, mas, na verdade, o que é que em termos práticos isso significa? Rigorosamente nada. Não há medidas concretas que acompanhem estas declarações e, provavelmente, nem todos os países estarão nas mesmas condições para porem em prática qualquer plano digno desse nome. É verdade que, por exemplo, o Protocolo de Quioto, que foi prorrogado para lá de 2012, previa algumas diferenças de tratamento na abordagem às reduções das emissões dos gases com efeito de estufa, porém, todo o seu conceito era de tal maneira genérico e abrangente que os resultados foram modestos para não dizer nulos. Se forem analisados os períodos dos primeiro e segundo compromissos (até 2020), o que se verifica é que em vez de uma diminuição, houve um aumento das emissões.

 

Estamos agora prestes a entrar na “era” do Acordo de Paris (pós-2020), mas os erros de sempre estão lá e basta ver o pressuposto basilar do documento: “O Acordo de Paris é ambicioso, dinâmico e universal. É um acordo que abrange as emissões de gases de todos os países.” Esta proclamação desmesurada é, por si só, reveladora da sua própria irrelevância, uma fórmula que se tem revelado inadequada à causa ambiental. Na verdade, o que é preciso é menos ambição e universalidade e mais realismo e pragmatismo no processo de construção de soluções, porque, à semelhança do que aconteceu na era nuclear, só assim se conseguem regimes consequentes.

 

A pergunta que os líderes mundiais devem fazer a si próprios é a seguinte: no âmbito de um quadro negocial (sim, porque é disso que estamos a falar), valerá a pena continuar a tentar forçar um compromisso global (mas artificial) com quase 200 nações? Forçar um acordo cheio de promessas pomposas e vãs, técnica e humanamente impraticáveis?

 

Ou, por outro lado, não será mais eficaz que alguns líderes promovam um fórum de trabalho permanente e exequível com as 15 nações responsáveis por mais de 70 por cento das emissões? Nações essas que estão em condições de adoptarem medidas concretas e realistas a curto e médio prazo. Uma espécie de G15 para o ambiente ou algo parecido, mas que contemple canais de diálogo abertos e formatos de negociação, quer multilateral ou bilateral. Seguramente que qualquer medida concretizada neste âmbito, por mais pequena que fosse, teria efeitos mais positivos do que as proclamações genéricas feitas nas grandes cimeiras. Basta sublinhar que só os EUA e a China são responsáveis por cerca de 40 por cento das emissões de gases com efeito de estufa. Qualquer acordo bilateral entre as duas partes terá implicações directas no ambiente.

 

Seria aconselhável que os líderes das principais potências mundiais regressassem a uma retórica mais realista e pragmática, assumindo uma solução que terá de ser negociada num círculo mais fechado de países: aqueles que mais poluem, mas também aqueles que estão em melhores condições para implementarem medidas imediatas e concretas. À primeira vista poderá parecer uma opção mais modesta, menos global e universal, mas é sem dúvida um caminho mais inteligente e concretizável. Ao contrário do que tem sido a tónica generalizada, este é o momento de sermos menos ambiciosos e sonhadores, para dar lugar ao racionalismo e à efectiva negociação. Há compromissos que têm de ser feitos, cedências acordadas e incentivos atribuídos. E isso não se faz com quase 200 nações sentadas à mesa, até porque a maioria delas tem pouco para oferecer em termos de capacidade de resposta na mudança de hábitos no seu tecido social e na transformação técnica do seu complexo industrial.

 

Não vem mal ao mundo que as vozes nas ruas se continuem a expressar entusiasticamente, mesmo que, muitas vezes, esse discurso esteja impregnado daquilo a que o investigador José Pedro Teixeira Fernandes, aqui no PÚBLICO, chamou de “populismo ambientalista dos perpetuamente ofendidos”. O importante para o futuro da Humanidade é que, para lá desses movimentos de massas, surjam uns quantos “wise men” com visão e capacidade de negociar acordos para serem cumpridos a curto e médio prazo. Conhecimento científico já o têm e tecnologia também. Faltam as decisões inteligentes e práticas.

 

 (1) GUERRA, Alexandre - A Política e o Homem Pós-Humano, prefácio de Viriato Soromenho-Marques, texto de contracapa de José Manuel Durão Barroso (Lisboa: Alêtheia, Outubro de 2016)

(2) Quando na universidade tirei uma cadeira específica sobre estas matérias, chamava-se precisamente “Problemática do Controlo de Armamentos”, sendo que um dos primeiros ensinamentos foi evitar a palavra “desarmamento”. Um conceito que ficava bem nos jornais, mas com pouca repercussão prática: o correcto era “redução” e “controlo” de armamentos.

 

Texto publicado originalmente no jornal PÚBLICO