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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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Defesa europeia dá passo importante e Washington irritou-se

Alexandre Guerra, 22.05.19

 

Dias depois do Parlamento Europeu ter aprovado as verbas destinadas ao novo Fundo Europeu de Defesa, no valor de 13 mil milhões de euros, proposto pela Comissão Europeia no âmbito do Quadro Financeiro Plurianual (QFP) para 2021-2027, com o objectivo de promover a inovação tecnológica e a cooperação no sector da defesa e segurança entre Estados-membros, nomeadamente no apoio ao seu complexo militar-industrial, Washington enviou uma carta a Bruxelas com um tom bastante agressivo, deixando implícitas várias ameaças políticas e represálias comerciais. A missiva, à qual vários meios de comunicação social internacionais tiveram acesso, tinha a data de 1 de Maio e foi enviada a Frederica Mogherini, Alta Representante da União Europeia (UE) para a Política Externa e Segurança, tendo como remetentes a Sub-Secretária de Defesa dos EUA, Ellen M. Lord, e a Sub-Secretária de Estado, Andrea L. Thompson. Nesse “duríssimo texto” (palavras do El País), Washington mostra-se “profundamente preocupado” já que, à luz das regras do Fundo – e não obstante países fora da UE poderem participar –, toda a propriedade intelectual dos projectos abrangidos por aquelas verbas comunitárias tem de ser exclusivamente europeia. Mas mesmo para que um país externo possa participar nestes projectos, estará sempre sujeito a uma votação por unanimidade no âmbito da Cooperação Estruturada Permanente (PESCO), entidade contemplada no Tratado de Lisboa e lançada em finais de 2017. Além disso, o regulamento do Fundo impede que um país terceiro que participe num projecto europeu imponha restrições à exportação comunitária da tecnologia e armamento produzidos. 

 

A União Europeia parece estar finalmente a dar corpo a uma estratégia comum na investigação e desenvolvimento (I&D) da sua indústria de segurança e defesa, ainda para mais, validada pelo Parlamento Europeu, dando-lhe um carácter mais democrático, que vai muito além das decisões circunscritas ao Conselho Europeu. Para quem acompanha estas questões no seio da União Europeia consegue elencar um role de medidas que, durante anos, foram sendo anunciadas, muitas delas com grande pompa mas sem qualquer efeito prático. O Fundo Europeu de Defesa, por seu lado, passou praticamente despercebido (Teresa de Sousa faz referência ao tema na edição do Público de 16 de Maio) apesar de revelar concretização e assertividade dos governantes europeus ao nível da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD). É um passo importante que, acima de tudo, vai ao encontro dos interesses europeus, não deixando de se constatar algum realismo político europeu e “proteccionismo” (eventualmente saudável) face à concorrência de potências externas, nomeadamente os Estados Unidos.

 

Perante isto, Washington reagiu e na carta de Ellen M. Lord e Andrea L. Thompson é referido que o Fundo Europeu de Defesa e a PESCO “pressupõe um retrocesso dramático depois de três décadas de crescente integração da indústria de defesa transatlântica”. Palavras que não deixam de ser cínicas quando lidas à luz daquilo que tem sido a política proteccionista da administração norte-americana e o desinteresse (e até animosidade) com que tem tratado os seus aliados europeus e a própria NATO.

 

Nessa mesma carta, ficam subentendidas potenciais represálias por parte de Washington ao mesmo tempo que exige a Bruxelas que altere as regras do Fundo, especialmente aquelas que dizem respeito à exclusividade europeia da propriedade intelectual e à liberdade de os países europeus poderem exportar livremente material militar, mesmo em projectos participados por empresas americanas. O Pentágono e o Departamento de Estado querem ainda que seja eliminado o direito de veto na PESCO, porque desconfiam que esta medida tenha como intuito afastar deliberadamente empresas norte-americanas.

 

Se foi esse ou não o verdadeiro objectivo que esteve por detrás da medida europeia, não se sabe. Certo é que Bruxelas “ripostou” contra a administração de Donald Trump, precisamente numa das áreas que lhe é mais sensível: o complexo militar-industrial. A julgar pelo grau de irritação patente na carta de Lord e Thompson, dir-se-ia que Bruxelas está, de forma inédita, a concretizar uma política com alguma solidez.

 

Na génese do Fundo Europeu de Defesa, a UE assume claramente que pretende fomentar a “autonomia estratégica na protecção e defesa dos seus cidadãos” através da coordenação, reforço e potenciação dos investimentos dos Estados-membros na área da defesa e segurança. Esta posição representa uma mudança de paradigma perante aquilo que tem sido a “política” europeia ao longo das últimas décadas, resumida a iniciativas de cariz protocolar ou a projectos embrionários que rapidamente ficaram condenados.

 

E importante relembrar que o Fundo Europeu de Defesa foi anunciado pela primeira vez em Setembro de 2016, pelo presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, por ocasião do Discurso do Estado da União, com o objectivo de inovar e potenciar a indústria de defesa europeia. Três meses depois, sairia do Conselho Europeu o convite para a Comissão apresentar propostas para a criação desse mecanismo, que incluísse uma vertente para o desenvolvimento conjunto de capacidades definidas de comum acordo pelos Estados-Membros. O Fundo viria a ser criado formalmente em Junho de 2017 e há poucas semanas a Comissão aprovou para o biénio 2019-2020 o primeiro programa de co-financiamento no valor de mais de 590 milhões de euros para vários projectos industriais nas áreas da cibersegurança, sistemas de alarme e comunicações, vigilância marítima e tecnologia de drones. Note-se que é a primeira vez na história da UE que, no âmbito do orçamento corrente, é disponibilizada uma verba desta dimensão para incentivar os países comunitários a cooperarem na área da defesa. É importante também sublinhar que o período entre 2017 a 2020 deve ser visto como uma fase preliminar do Fundo, antes de arrancar a todo o gás em 2021, com o orçamento já aqui referido de 13 mil milhões de euros.

 

Também esta quantia vai sair directamente do orçamento comunitário, não implicando um aumento da contribuição por parte dos Estados-membros, o que torna a medida ainda mais relevante politicamente, porque decorre de uma opção clara da Comissão e do Parlamento em desviar para a defesa e segurança verbas que podiam ser aplicadas noutras áreas. A medida foi aprovada por 328 eurodeputados, tendo 231 votos contra e 19 abstenções.

 

“Acredito que o Fundo Europeu de Defesa irá ajudar ao desenvolvimento conjunto de produtos e tecnologias de defesa inovadoras em cooperação entre indústrias de diferentes Estados-membros, incluindo aqueles que nunca estiveram envolvidos neste processo até hoje. Graças ao Fundo Europeu de Defesa, não vamos apenas evitar que se desperdice dinheiro dos contribuintes em duplicação desnecessária de recursos de defesa, como, mais importante, vamos aumentar a segurança europeia e criar novos empregos no sector da indústria da defesa”, palavras proferidas por Zdzisław Krasnodebski, o eurodeputado relator do texto aprovado. Caberá agora ao novo Parlamento Europeu que sair das eleições de 26 de Maio continuar as negociações das questões que ainda têm de ser finalizadas. Seja como for, com esta votação, o Parlamento Europeu já fez história e deu um passo muito concreto na construção de uma verdadeira política europeia comum de defesa.

 

Texto publicado originalmente no Público.

 

Farage e o Movimento 5 Estrelas

Alexandre Guerra, 21.05.19

 

A revista The Economist relembrava esta semana que Nigel Farage tem sido um dos políticos mais influentes no Reino Unido, mesmo sem nunca se ter sentado na Câmara dos Comuns. Ao reforçar a popularidade do UKIP, acabou por “obrigar” David Cameron a convocar um referendo, que viria a ter o desfecho que se conhece. Pode dizer-se que a campanha do UKIP alcançou os seus objectivos. Mas, apesar do sucesso e depois de ter estado 25 anos naquele partido, Farage decidiu abandoná-lo para fundar o Brexit. Resultado? O novo partido aparece à frente nas sondagens para as eleições de Domingo.

 

Há quem diga que este novo partido é uma “cópia” do Movimento 5 Estrelas de Beppe Grilo em Itália. É pelo menos esta a opinião de Arron Banks, um dos colaboradores mais próximos de Farage. Seja como for, Farage nunca escondeu o seu fascínio pelo fenómeno do Movimento 5 Estrelas, sobretudo pela forma como irrompeu no sistema político, quebrando com os paradigmas tradicionais e apostando em novos modelos e formatos. O The Guardian desenvolve este tema num excelente trabalho merecedor de uma leitura atenta.

 

A academia

Alexandre Guerra, 08.05.19

 

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"A Escola de Atenas", Rafael, 1509-11, Palácio Apostólico, Vaticano

 

Numa das galerias adjacentes à Capela Sistina, no Palácio Apostólico do Vaticano, encontra-se uma das mais famosas pinturas renascentistas: “A Escola de Atenas”. Há quem diga que é a grande obra-prima de Rafael por representar tão bem a essência do Renascimento, uma época de luz, conhecimento e inovação. As figuras que supostamente lá estão representavam à época tudo o que de virtuoso tinha a Humanidade. Filósofos, matemáticos, historiadores, políticos, religiosos, militares, engenheiros, artistas, todos eles na vanguarda das suas artes e ofícios.

 

Poderemos considerar que o fresco de Rafael não simbolizará tanto o conhecimento em si, mas antes o processo para a produção desse mesmo conhecimento. Mais do que um espaço físico, a “Escola de Atenas” pode ser vista como um conceito, como um paradigma para a construção de saber. Ao estar a representar academia de Atenas, Rafael está a enfatizar a importância da troca de conhecimento e de experiências entre pessoas das mais variadas áreas do saber e da vida, do intelectual ao artístico, do filósofo ao político, do artífice ao militar. No seu âmago, trata-se de um princípio inerente à essência da “Escola de Platão”.

 

Hoje, tal como dantes, a academia é (ou deve ser) um lugar privilegiado de produção de conhecimento e de debate. Deve ser um fórum de vanguarda onde se (re)formulam doutrinas. As suas gentes, professores e alunos, devem ter liberdade de pensamento, sem dogmas e preconceitos, independentemente das suas posições políticas e convicções ideológicas. A academia deve ser um espaço de propagação de ideias e tendências, onde o espírito de arrojo deve estar aliado à humildade perante o saber dos outros.

 

Para a academia cumprir a sua função de excelência não pode ficar fechada sobre si própria, estanque ao mundo exterior, correndo o risco de asfixiar a sua criatividade intelectual. Universidades e centros de saber só se realizam na sua missão quando se enquadram e servem a pólis, ao procurarem dar respostas inovadoras aos desafios que se lhe impõe. Professores e alunos aprendem e ensinam-se mutuamente, cumprindo cada um o seu papel com o talento possível. Mas essa relação não deve ficar por aqui, nem se deve perpetuar no tempo circunscrita à mesma academia, anos e anos a fio, grau a grau, até se chegar ao topo da carreira, correndo-se o risco dos sistemas universitários ficarem resumidos a um micro-cosmos, dominado por alinhamentos ideológicos, partidários ou de interesses de proximidade.

 

Esta é uma realidade que se verifica nalguns polos universitários em Portugal, onde as elites de algumas destas universidades se perpetuam à frente dos mecanismos que, supostamente, originam a produção de saber e conhecimento. Facilmente se identifica no seio destes meios académicos correntes dominantes que partilham determinadas afinidades, numa lógica tribal fechada, de quase “endogamia académica”, em que pouco ou nada se expõem ao mérito e concorrência externas. Consequência: a academia fica desvirtuada no seu propósito, deixando de dar lugar aos melhores e às ideias de vanguarda, para servir de albergue aos “académicos da casa”, que sempre viveram para esse (e naquele) sistema.

 

Ainda recentemente, o Público abordava precisamente o tema da “endogamia académica” e concluía que este problema persiste na academia portuguesa. Aliás, aquilo que o jornal descreve como “situações de imobilidade profissional”, recorrendo ao relatório da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) do ano lectivo de 2015-2016 sobre endogamia académica, manifestam-se no facto de cerca de 70% dos docentes das universidades públicas portuguesas se doutorarem na mesma instituição onde leccionam.

 

Por exemplo, nas áreas das Ciências Sociais (Relações Internacionais e Ciência Política) e Comunicação, aquelas que o autor destas linhas melhor conhece, é muito comum ver académicos e investigadores a desenvolverem uma carreira de 10, 15, 20 anos numa mesma instituição, sem qualquer contacto com outras realidades académicas, sociais e profissionais. É certo que muitos destes académicos detém um determinado grau de conhecimento teórico que não pode ser descurado, mas fica-se por aqui o seu contributo em termos de produção de novo saber e isso explica-se, em parte, pela ausência de outras componentes que vão além da universidade.

 

No artigo do Público aqui referido, Pedro Santa-Clara, professor na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, salientava precisamente essa consequência, ou seja, “o facto de as pessoas não terem mundo, não terem alternativas e terem crescido sempre no mesmo sistema”. Dizia ele que “o sistema torna-se impermeável à inovação e a novas ideias”.

 

Essa é uma das maiores críticas que se faz à academia portuguesa quando comparada com outros meios universitários, nomeadamente o anglo-saxónico. Nalgumas universidades nacionais existe um modelo instalado que privilegia, por um lado, um determinado conhecimento estático, e, por outro, determinadas figuras, algumas delas catapultadas para a condição de estrela através da sua mediatização. Mas, efectivamente, através de um olhar crítico e científico constata-se que a dimensão da sua obra é, por vezes, mediana, para não dizer medíocre. É um sistema que funciona como uma “bolha”, à imagem de outros sistemas da nossa sociedade, e que fomenta um “status quo” conservador, muitas vezes alimentado pela arrogância e falta de humildade.

 

Uma realidade que foi apontada no recente livro “Cientistas Portugueses”, do bioquímico e antigo jornalista David Marçal, no qual traça um retrato de quem faz investigação científica no país. Editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, o jornal Público fez a pré-publicação de um capítulo precisamente dedicado “aos cientistas que vivem fechados nessas bolhas”.

 

E neste capítulo lê-se o seguinte:

 

“Os investigadores Arcadi Navarro e Ana Rivero fizeram um grande estrondo em 2001 quando publicaram na prestigiada revista Nature uma carta que quantificava o fenómeno da contratação de professores universitários com base em critérios de proximidade social em vez de qualidade científica. A bem instalada lógica de que “mais vale bêbado conhecido do que alcoólico anónimo.”

 

Mais à frente, David Marçal escreve:

 

“Em Dezembro de 2006 entrevistei Arcadi Navarro (na altura tinha interrompido o meu doutoramento para participar no programa Cientistas na Redacção, integrado na secção de Ciência do PÚBLICO durante três meses). A entrevista foi a propósito de um debate sobre mobilidade e endogamia nas universidades portuguesas, que decorreu no Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras. […]Perguntei a Arcadi Navarro quais eram as consequências da endogamia nas universidades: ‘São horríveis. As pessoas em vez de ciência estão a fazer política de corredores e a universidade torna-se uma maneira de arranjar salários para os amigos’.”

 

Lê-se ainda:

 

“Damos um salto a Portugal, ao ano lectivo de 2015-2016. […]De acordo com os dados deste relatório da DGEEC, a Universidade de Coimbra é a campeã nacional da endogamia, com 80% de docentes doutorados na mesma instituição em que leccionam. Seguem-se a Universidade dos Açores e a Universidade de Lisboa (ambas com 74% de endogamia), a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (73%), a Universidade do Porto (72%), a Universidade de Aveiro (64%), a Universidade Nova de Lisboa (61%), a Universidade da Beira Interior (57%), o ISCTE (49%), a Universidade da Madeira (48%) e a Universidade do Algarve (40%). […] Globalmente, cerca de 70% dos professores das instituições de ensino superior em Portugal doutoraram-se na mesma faculdade onde estão empregados. Sete em cada dez vezes, um candidato interno ganha o concurso para a entrada no quadro. A menos que achemos que os candidatos vindos de fora são, por qualquer motivo, de facto muito maus, temos que presumir que há uma viciação sistemática dos concursos a favor dos candidatos internos.”

 

Toda esta informação vem apenas encorpar a noção pouco vanguardista que muitos têm da academia portuguesa. Há excepções? Claro que sim. Há exemplos de produção de conhecimento inovador? Sem dúvida. Temos académicos e investigadores de excelência? Seguramente. O problema é que, no geral, as grandes universidades portuguesas continuam a ser um reflexo da sociedade, não sendo de estranhar que se encontrem nelas os mesmos males e “jogos de interesses” que assolam outros sectores. É caso para dizer que a academia portuguesa está muito afastada do espírito virtuoso representado na “A Escola de Atenas” de Rafael, onde os melhores dos melhores se reuniam na produção de saber de vanguarda.