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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

Jornalismo e cidadania

Alexandre Guerra, 28.11.18

 

O jornalismo confronta-se com novos fenómenos de erosão que o empurram por caminhos tortuosos. Os cidadãos das sociedades livres e democráticas, com menos tempo e paciência para se dedicaram a grandes exercícios de leitura jornalística e reflexão, vão encontrando novos focos de “distracção”, inspirando-se em fontes pouco credíveis para construir as suas percepções sobre quem os governa e administra a polis. Aos preconceitos e ódios, inerentes à própria natureza humana, junta-se a instrumentalização dos títulos noticiosos enviesados que se propagam nas redes sociais – sem que alguém tenha uma verdadeira preocupação de ler o seu conteúdo –, os tweets incendiários, os posts populistas e demagógicos, as imagens adulteradas e as tão badaladas fake news. Tudo isto ajuda a sedimentar essas percepções nefastas que se vão metamorfoseando em falsas realidades e narrativas alternativas, onde tudo vale (ou nada vale). Cada qual constrói uma espécie de play list de soundbites de acordo com as suas crenças e convicções.

 

A comunicação é hoje um processo perverso, em que uma evidência objectiva, como dois mais dois serem quatro, se tornou num exercício criativo, dando lugar a inúmeras “realidades” fantasiosas, tantas aquelas em que cada um quer acreditar. No fundo, é uma questão de crença e não de aceitação da realidade como ela, efectivamente, é. Se antigamente as notícias eram referenciais de verdade, hoje, aos olhos das pessoas, o jornalismo perdeu muita da força que tinha para impor na comunidade a versão impoluta dos factos e acontecimentos.

 

Na visão mais pessimista, o jornalismo deixou de ter capacidade para se sobrepor ao ruído das “redes”, porque, infelizmente, e devido a vários factores, deixou-se fragilizar, descredibilizar e, especialmente em Portugal, acantonou-se num círculo vicioso de elites e gabinetes. Passe o exagero, diz-nos a experiência empírica mais recente que o jornalismo deixou de ter o poder para fazer cair ministros quando surge a “cacha” com evidências cabais de uma violação do “contrato social” firmado entre o governante e o governado. E isso é muito preocupante.

 

O definhar do jornalismo não pode ser única e exclusivamente imputado às contingências económicas e ao desinteresse das chamadas “massas”, por terem deixado de consumir hard news provenientes de fontes válidas. Há inúmeras responsabilidades que são partilhadas pelos profissionais do jornalismo: seja quando são os próprios meios de informação tradicionais a importar para as suas agendas e editorias o tom displicente da “conversa de café” e o registo incendiário das redes sociais; seja quando são os comentadores e opinion makers, que têm responsabilidades cívicas muito importantes junto da opinião pública, a ignorarem a natureza intrínseca das coisas, para porem em prática agendas próprias ou para assumirem o papel de activistas ou pregadores da moral.

 

Paradoxalmente, nunca se consumiram tantos conteúdos como agora, mas sabemos que os meios noticiosos mainstream vão perdendo o seu público, a sua influência junto da comunidade. A cada dia que passa fica-se com a sensação de que o jornalismo vai morrendo um pouco. Vai abdicando dos seus princípios e valores, vai violando o seu código deontológico e vai delapidando o seu capital de instituição de referência na sociedade.

 

Como em todas as profissões, há bons e maus jornalistas, há uns que se deixaram cegar pela arrogância dos tempos gloriosos, outros que se acomodaram na secretária, há ainda outros que se esqueceram do que é ser jornalista e foram consumidos pelo seu ego. Porém, a maioria dos jornalistas, de forma séria e profissional, fazem o seu trabalho em prol do bem comum, muitas vezes enfrentando inúmeras contrariedades, algumas delas vindas das suas próprias estruturas empregadoras.

 

Nutro o maior respeito e gosto pelo jornalismo, já que cresci nesse ambiente, ainda no tempo das máquinas de escrever. Lembro-me de quando era criança, nos anos 80, depois de o jornal estar “fechado” madrugada adentro, ir com o meu pai, jornalista desportivo desde sempre, ver se estava tudo bem com a impressão nas rotativas da gráfica que havia em frente à Escola de Música do Conservatório Nacional, no Bairro Alto. Já o meu avô tinha sido tipógrafo no Diário Popular (na verdade, linotipista). Como não podia deixar de ser, após ter concluído a universidade, comecei a minha carreira profissional precisamente como jornalista na secção de política internacional, onde estive durante alguns anos, tendo depois transitado para a área da consultoria de comunicação, na qual me mantenho desde então.

 

Por interesse pessoal, mas também por motivos profissionais, gosto de acompanhar os debates que se fazem lá fora (cá dentro, menos) sobre o futuro do jornalismo. Contacto quase diariamente com jornalistas e, sempre que se proporciona, gosto de trocar ideias sobre o estado da profissão em Portugal e no mundo. Na generalidade dos casos, percebe-se que existe, da parte dos seus profissionais, a consciência dos problemas e da deriva editorial que se verifica genericamente nos meios de comunicação social. Constata-se que existe a vontade de encontrar um caminho sólido, que devolva a essência primária ao jornalismo, mas ao mesmo tempo, sente-se uma espécie de resignação perante uma tendência que parece imparável.

 

Sobre o jornalismo pairam ameaças, incertezas e indefinições, não apenas a propósito do modelo de sustentabilidade económica, mas no âmbito da sua própria essência e papel fulcral na defesa da democracia. Ora, um exercício pleno de cidadania deve estar assente nos direitos políticos, sociais e cívicos de cada cidadão, o que pressupõe duas coisas: conhecimento da realidade que nos rodeia e escrutínio a quem exerce o poder.

 

Que ninguém se iluda, o declínio do jornalismo é também o declínio da cidadania e da democracia. É por esta razão que, na minha opinião, são indignos da confiança do Povo aqueles que vêem no jornalismo uma ameaça aos seus projectos de poder e de “governance”. Além disso, são tolos e irresponsáveis os que acham que o jornalismo pode ser substituído pelas “verdades absolutas” que emanam das redes sociais. É importante nunca esquecer que uma sociedade democraticamente saudável e forte exige como requisito obrigatório um jornalismo virtuoso e de referência.

 

Texto publicado hoje no Público.

 

Lançado há dois anos

Alexandre Guerra, 15.11.18

 

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Faz esta Quinta-feira dois anos que lancei este livro. É um daqueles projectos que nos enche de satisfação e orgulho. Baseado na minha tese de mestrado, sob orientação dos já falecidos Hermínio Martins (St. Antony College, Oxford University) e João Bettencourt da Câmara (ISCSP), o livro apela à reflexão de novas temáticas fracturantes, muito longe das prioridades imediatas das agendas mediáticas e ausentes do pensamento quotidiano das pessoas. Mas que ninguém duvide, serão estes os temas de um futuro próximo que vão alterar a nossa própria concepção de Humanidade. É precisamente sobre isso que Durão Barroso, antigo primeiro-ministro português e presidente da Comissão Europeia, se questiona na contra-capa do livro: "O extraordinário progresso da investigação científica no domínio da genética e das biotecnologias suscita questões éticas essenciais. Como é que diferentes sociedades, ideologias, sistemas ou regimes políticos se posicionam diante de tão 'fracturantes' matérias?" 

 

A resposta não é fácil, perante uma temática complexa que nos leva pela primeira vez a questionar a condição do Homem enquanto ser biológico e não apenas social. Mas, como escreve Viriato Soromenho-Marques no prefácio do livro: "Não há respostas fáceis, perante a dificuldade e complexidade das quesões. É preciso estudar. Com coragem e espírito aberto. É esse o convite deste ensaio."

 

As razões de Netanyahu e Lieberman

Alexandre Guerra, 14.11.18

 

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Avigdor Lieberman e Benjamin Netanyahu/Foto: Olivier Fitoussi

 

Não é apenas a Faixa de Gaza e o sul de Israel que estão a viver momentos conturbados, com o ressurgimento da violência nos últimos dias, depois de uma “covert operation” israelita ter sido descoberta no passado Domingo na localidade de Khan Younis no sul daquele enclave palestiniano. Também o sistema político israelita já se está ressentir com as ondas de choque dos violentos acontecimentos no terreno. Normalmente, tem sido sempre assim ao longo dos anos. Desta vez, foi Avigdor Lieberman que não perdeu tempo e se demitiu do cargo de ministro da Defesa de Israel, por não concordar com o cessar-fogo acordado pelo chefe de Governo, Benjamin Netanyahu, e o Hamas. Lieberman, pertencente à direita judaica mais ortodoxa, teceu fortes críticas ao primeiro-ministro, acusando-o de não estar a ser suficientemente “agressivo” contra o Hamas, uma ideia partilhada pela ala mais radical na sociedade hebraica. Aquele político, critica a débil resposta israelita aos cerca de 500 rockets lançados pelo Hamas entre Segunda e Terça-feira e fala numa “cedência ao terror” por parte de Netanyahu.

 

No entanto, numa análise cínica, o falhanço da desastrosa operação secreta israelita e a consequente retaliação militar do Hamas pode ter servido os interesses políticos de Lieberman, líder do partido Yisrael Beiteinu, que aproveitou este momento para se demarcar das políticas de Netanyahu. Ao mesmo tempo, apresenta-se ao seu eleitorado como um autêntico “falcão” e alimenta a possibilidade de gerar uma crise no Executivo e, consequentemente, eleições antecipadas. É importante lembrar que, apesar de tudo, uma parte do eleitorado se identifica com o pensamento de Lieberman em matéria de segurança, nomeadamente, os milhares de judeus ortodoxos que vivem em colonatos na Cisjordânia.

 

Por outro lado, há que compreender a posição mais prudente de Netanyahu, ao não querer escalar o conflito. Embora Israel tenha capacidade militar para destruir o Hamas, uma operação que tivesse verdadeiramente esse objectivo teria implicações quase insuportáveis em termos de danos colaterais junto da população civil da Faixa de Gaza. Portanto, uma guerra aberta e contínua em toda a sua plenitude não interessa a Netanyahu, mas também seria muito prejudicial para o projecto de poder do Hamas. Porque, caso Israel decidisse atacar com tudo e em força a Faixa de Gaza, as já muito difíceis condições de vida naquele enclave iriam degradar-se ainda mais, com a população, muito provavelmente, a insurgir-se contra as autoridades, neste caso o Hamas, que, assegura a gestão de uma série de serviços à população, desde a segurança às escolas e serviços.

 

A Israel também não interessaria, pelo menos para já, destruir o Hamas e criar um vazio de poder na Faixa de Gaza, uma vez que a Autoridade Palestiniana, com a Fatah no Governo, não tem neste momento condições para assegurar o controlo daquele território. Além disso, e como notava Dennis Ross, antigo negociador norte-americano, a decapitação do Hamas na Faixa poderia criar espaço para o surgimento de movimentos ainda mais radicais, como a Jihad Islâmica ou até mesmo o Estado Islâmico. Ao Jerusalem Post, Ross não tem dúvidas que Israel poderia derrotar o Hamas, mas e depois? Para garantir que o enclave não seria tomado por radicais, Israel teria de manter uma presença na Faixa de Gaza e isso a História já demonstrou que foi contrário aos interesses do Estado hebraico.