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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O dilema da democracia

Alexandre Guerra, 30.09.18

 

Uns meses depois do fim da Guerra dos Balcãs (1991-95) e perante a maior barbárie na Europa desde a II Guerra Mundial, cometida entre “vizinhos” sob a égide de projectos políticos nacionalistas, o diplomata Richard Hoolbroke, que ajudou a forjar os Acordos de Dayton, deixava no ar uma questão que pertencia mais ao campo da filosofia política do que, propriamente, ao ramo da ciência política: “Suponha-se que as eleições são livres e justas e que aqueles que são eleitos são racistas, fascistas, separatistas. Esse é o dilema [da democracia].” No fundo, aquela pergunta era uma outra forma de consubstanciar o dilema clássico na discussão em torno das formas sãs e degeneradas de Governo e que pode conduzir a um exercício teórico útil para nos ajudar a compreender alguns fenómenos recentes de apetência para projectos mais populistas e nacionalistas.

 

No âmbito desse exercício, existem dois cenários, algo extremados, é certo, a ter em consideração. Por um lado, temos uma autocracia liderada por um “príncipe” virtuoso, onde a sua principal preocupação é o bem-estar da população, garantindo-lhe elevados índices de qualidade de vida e satisfação. No entanto, neste regime, onde o bom governante herda o poder do pai, não existem partidos políticos, a crítica é “silenciada” e os movimentos civis são frágeis ou inexistentes. Mas, veja-se o outro cenário, onde uma democracia consolidada, dentro de todas as regras constitucionais, elege um tirano. Esse mau governante vai exercer o poder em interesse próprio e dos seus “amigos”, dentro de um projecto pessoal alimentado com demagogia e populismo, deixando o seu povo à mercê da fortuna. No entanto, neste regime multipartidário, a crítica é livre, os partidos da oposição exercem a sua função, o associativismo é vigoroso e o direito de voto é universal.

 

As hipóteses apresentadas são limite, já que apresentam uma autocracia virtuosa (se é que isso existe) e uma democracia “degenerada”, mas nem por isso deixam de ser verificáveis em vários momentos da História (passada e presente). E, sobretudo, evidenciam diferentes ópticas daquilo que é o interesse colectivo do povo de cada Estado, interesse, esse, que varia, atendendo a vários factores históricos e culturais. Ou seja, diferentes povos, enquanto entidades colectivas, podem valorizar de forma diferenciada determinados valores e princípios. Se é certo que as democracias liberais assentam em pressupostos consolidados, também as autocracias existentes encontram raízes históricas bem vincadas e perfeitamente identificáveis, inviabilizando, muitas vezes, o seu caminho para uma democracia plena. Aliás, dissipada a euforia do “admirável mundo novo” que se vislumbrava com a queda do Muro do Berlim e a emergência do globalismo nas Relações Internacionais, Francis Fukuyama rapidamente foi confrontado com o erro do seu “fim da história [ideológica]”, sendo até algo ingénuo na forma como apresentou a sua tese. A verdade é que a tão anunciada vitória da democracia liberal acabou por não se concretizar ao nível global.

 

De qualquer forma, com a queda do sistema bipolar de Guerra Fria e com reorganização das relações internacionais, verificou-se uma evolução sã nos sistemas de Governo em vários países, nomeadamente europeus. Se é certo que alguns Estados, que outrora estiveram para lá da Cortina de Ferro, se consolidaram como democracias plenas, houve outros que mantiveram um estilo autocrático, como é o caso da Bioelorrússia. E depois houve ainda uns países que, não sendo democracias liberais, não podem ser considerados autocracias. São as chamadas democracias iliberais. Sistemas de Governo que contêm elementos democráticos, como as eleições, mas apresentam fragilidades sistémicas que as impedem de ser democracias constitucionais e liberais plenas.

 

Estas democracias iliberais são, normalmente, terreno fértil para a legitimação de projectos de poder nacionalistas e demagógicos através do voto. E é aqui que reside uma parte da perversidade destes regimes, onde os seus líderes se refugiam na legitimidade do voto, num sistema político em que a separação de poderes é praticamente inexistente, a oposição muitas vezes abafada e os críticos perseguidos. A imprensa é controlada e a sociedade civil é débil. Existe o voto, mas pouco mais em matéria de “checks and balances”, fundamentais para uma democracia plena.

 

No universo mais próximo da Velha Europa, a Rússia será talvez o melhor exemplo de uma democracia iliberal e que merece ser estudada com atenção. Relembro um excelente artigo publicado há uns anos na Foreign Affairs, assinado por Richard Pipes, conceituado especialista da história russa e antigo director do departamento de assuntos soviéticos da Europa de Leste no Conselho de Segurança Nacional em 1981-82. Pipes, que faleceu em Maio último com 94 anos, defendia a tese de que os russos apoiavam o estilo “antiliberdade e antidemocrático” de Putin, sublinhando na altura que apenas um em cada dez russos se interessava por “liberdades democráticas e direitos civis”. Na verdade, estes e outros conceitos, como propriedade privada e justiça pública, nunca fizeram parte da tradição russa. Por exemplo, apenas cerca de um quarto da população russa considerava que a propriedade privada era importante como direito humano.

 

É preciso notar que Pipes sustentava as suas afirmações em estudos levados a cabo pelo All-Russian Center for Study of Public Opinion e pelo Institute of Complex Social Studies da Academia de Ciências Russa. E para se ter uma ideia, de acordo com os dados obtidos, 78 por cento dos russos considerava que a “democracia era uma fachada para um governo controlado pelos ricos e grupos poderosos". Apenas 22 por cento expressava preferência pela democracia, contra os 53 por cento que se lhe opunham. Sobre os eventuais benefícios das eleições multipartidárias, 52 por cento dos russos considerava que estas eram prejudiciais, sendo apenas 15 por cento a percentagem de russos que as viam como positivas. Mais interessante, mas pouco surpreendente, era a escolha feita entre “liberdade” e “ordem”. Oitenta e oito por cento dos inquiridos na província de Voronezh manifestaram preferência pela “ordem”. Apenas 11 por cento afirmaram não estar dispostos a abdicar das suas liberdades de expressão e de imprensa em troca de estabilidade. Na verdade, um outro estudo, conduzido no Inverno de 2003-04, pela Romir Monitoring, sustentava que 76 por cento dos russos eram favoráveis à reposição da censura nos “media”.

 

Embora este artigo de Pipes tenha sido publicado em Maio-Junho de 2004, desde então, a sociedade russa não viveu profundas mudanças em matéria de percepção dos seus valores e princípios. Hoje em dia, não é preciso fazer uma pesquisa muito exaustiva para se perceber que as tendências de opinião da maioria do povo russo, naquilo que é uma admiração e crença na sua liderança autoritária, não se alteraram de forma significativa. Ainda há umas semanas, um estudo da Pew Research referia que mais de 70 por cento dos russos acreditavam em Vladimir Putin, quando este disse que Moscovo não tentou interferir nas presidenciais norte-americanas de 2016, apesar dos fortes indícios e provas em sentido contrário. Uma outra sondagem do Levada Center, em que o trabalho de campo foi realizado no passado mês de Maio, mostra que mais de 50 por cento dos russos querem que Putin prolongue a sua presidência para lá de 2024. O enquadramento histórico e a herança cultural de séculos ajuda a explicar esta predisposição do povo russo por lideranças autoritárias.

 

A Turquia, por exemplo, é um outro caso onde a maioria da população parece conviver bem com este tipo de lideranças musculadas que, consequentemente, “atropelam” direitos constitucionais e humanos, fundamentais para qualquer português. Mas se a Turquia não pode ser vista como uma democracia liberal, dificilmente poderá ser catalogada como uma autocracia. O seu sistema move-se no pantanoso terreno das democracias iliberais. O mesmo terreno onde os líderes sérvios continuam a alimentar um discurso nacionalista e populista em relação às atrocidades cometidas na Guerra dos Balcãs (1991-95). A Alta Representante para a Política Externa da União Europeia, Frederica Mogherini, já avisou Belgrado que, enquanto as autoridades sérvias não reconhecerem o genocídio de Srebrenica e assumirem as culpas provadas no Tribunal Penal Internacional para a Ex-Jugoslávia (TPIJ), não serão iniciadas negociações de adesão com a União Europeia.

 

A questão é que a maior parte da população sérvia valida este tipo de discurso através das eleições. E é preciso notar que aquele país não se encontra propriamente num quadro de sub-desenvolvimento económico ou social. Pelo contrário, o seu PIB per capita está muito acima do periclitante intervalo dos 1500 a 3000 dólares que condenam qualquer possibilidade de uma democracia liberal se instalar num país (“The Future of Freedom”, Fareed Zakaria). Efectivamente, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU, a Sérvia encontra-se num honroso 67º lugar, sendo considerada uma nação desenvolvida (Portugal está em 41º e a Turquia no 64º lugar). Isto permite-nos depreender que estes povos, nalguns casos jovens e com bons índices de escolaridade, detêm as ferramentas necessárias para poderem fazer as suas escolhas de forma livre e consciente. Ainda mais, se estivermos a falar de um país como a Hungria, membro de pleno direito da União Europeia e com índices de desenvolvimento muito próximos dos de Portugal (45º lugar no IDH). Sendo assim, como se explica que uma grande massa da população (não apenas uma minoria), aparentemente esclarecida, possa corroborar a linha populista, nacionalista e semi-democrática da sua liderança política? Esta questão poder-se-á aplicar igualmente aos Estados Unidos com a eleição de Donald Trump.

 

Podemos compreender o surgimento de minorias radicais, com mais ou menos intensidade, em democracias consolidadas. Faz parte da natureza da própria democracia, dar lugar a todas as formas de expressão cívica e política, desde que dentro das regras constitucionais. Além disso, as democracias liberais, como a Suécia ou os EUA, têm os seus mecanismos de “checks and balances, que permitem que o sistema opere dentro do quadro constitucional. Isso já não é tão linear em democracias iliberais e é neste ponto que o caso da Hungria assume contornos mais preocupantes, porque, neste momento, será ousado afirmar que o seu sistema de Governo, na prática, seja uma democracia liberal plena (embora na teoria o seja, pelo facto de ser membro da União Europeia).

 

Mas, o que levará então uma significativa parte do eleitorado em países democráticos (liberais ou iliberais), com razoáveis índices de conforto e segurança, a eleger governantes que, à luz dos pressupostos ocidentais basilares de sociedade, são populistas, demagógicos e, muitas vezes, nacionalistas e até xenófobos? A resposta não é fácil, mas a eleição de Donald Trump veio suscitar um debate interessante sobre essa matéria, porque aconteceu num quadro perfeitamente democrático, constitucional e numa sociedade que se advoga como um farol dos valores da liberdade e dos direitos individuais.

 

E mesmo no campo das democracias iliberais, é preciso considerar o seguinte: pode-se partir do princípio que estes sistemas de Governo estão desprovidos de alguns mecanismos democráticos e que esse facto pode potenciar a instrumentalização das massas por parte dos seus líderes em prol dos seus projectos de poder na Rússia e na Turquia. Só que, mesmo com estas distorções sistémicas, a manifestação do voto popular nas democracias iliberais não deixa de ser legítima e constitucional.

 

Assim sendo, será legítimo a crítica e o desdém ao comportamento de todos estes eleitores? Não será isso um desrespeito aos cidadãos daqueles países que, livre e constitucionalmente, elegeram os seus líderes e sancionaram as suas políticas nos EUA, na Hungria, na Rússia, na Turquia ou na Sérvia? É perfeitamente compreensível que as realidades emergentes nesses sistemas políticos sejam incómodas para a maioria dos europeus, mas não se pode ignorar o princípio basilar democrático de respeito pelo voto.

 

É por essa razão que todos os eleitores norte-americanos que votaram em Trump, um líder populista e demagógico, devem ser respeitados, por mais que a sua decisão desagrade ao cidadão comum europeu. No entanto, uma das virtudes da eleição de Trump é que suscitou uma reflexão sobre a questão colocada por Hoolbroke, o tal dilema clássico da democracia.

 

Porque, o que se tem assistido até ao momento, é que quando surgem fenómenos populistas e nacionalistas nos clubes das democracias (liberais ou iliberais), a reacção é de reprimenda, com um tom paternalista, aliado à convicção de uma certa superioridade moral e política. Provavelmente, muitos já terão esquecido, mas é importante relembrar o “castigo” que foi imposto à Áustria, em 2000, quando o Partido da Liberdade, de extrema-direita, do falecido Joerg Haider, chegou legítima e democraticamente ao poder. Na altura, o pânico instalou-se no seio dos líderes europeus e a solução passou pelo isolamento político-diplomático de Viena. Sendo certo que o projecto de Haider feria princípios fundamentais das sociedades ocidentais, a verdade é que muitos eleitores austríacos depositaram nele o seu voto, dentro das regras democráticos e inserido no quadro comunitário, ou não fosse a Áustria membro de pleno direito da União Europeia.

 

A simples ideia de que a democracia só serve quando o resultado convém, é muito perversa e perigosa. Por mais que nos incomode e até nos choque a eleição de um Trump, o estilo musculado de um Orban, a adoração do povo por um Putin czarista ou a concentração de poder de um Erdogan, devemos respeitar o voto dos eleitores nestes homens e respectivos projectos de poder e tentar compreender as motivações dos cidadãos, antes de serem tomadas medidas recriminatórios e, muitas, vezes contraproducentes contra esses países e povos.

 

Artigo publicado este Domingo no PÚBLICO

 

Capítulo VI

Alexandre Guerra, 26.09.18

 

No dia 17 de Junho de 2017, na região de Pedrógão, algo aconteceu de dantesco e em poucas horas as chamas do Inferno trouxeram a morte a 65 pessoas, das quais 30 morreram carbonizadas na EN 236-1. Foi o dia em que o País se confrontou com a sua impotência e incompetência, onde as estruturas do Estado falharam nas suas mais elementares funções. No fundo, todos nós, enquanto sociedade, falhámos na defesa dos nossos concidadãos.

 

Os fenómenos e as circunstâncias que rodearam tal tragédia tinham (e ainda têm) que ser compreendidas e explicadas e, como tal, coube ao especialista Domingos Xavier Viegas, professor catedrático de Engenharia Mecânica da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra, a responsabilidade de elaborar um relatório técnico sobre o que aconteceu naquele trágico dia. Esse documento, que será fundamental no âmbito do processo judicial em curso, foi entregue ao Governo a 15 de Outubro, mas houve uma parte do estudo que nunca foi divulgada ao público, o capítulo VI, por conter testemunhos dos sobreviventes e considerações feitas pelos técnicos que fizeram a investigação.

 

Compreende-se que, na altura, se quisesse evitar a exposição das famílias das vítimas e dos sobreviventes, que tanto já tinham sofrido, no entanto, aquilo que agora nos é dado a conhecer pelo jornal i, com a colaboração do próprio Xavier Viegas, através da divulgação do capítulo VI, tem uma tal dimensão trágica e humana que, por um lado, alimenta a revolta interior pelo que aconteceu, por outro, reforça a obrigação de cada um de nós, enquanto cidadão, ser cada vez mais exigente na defesa e protecção das nossas gentes e recursos.

 

Os textos publicados esta Terça e Quarta feiras no jornal i são de um realismo impressionante e mostram como homens, mulheres, idosos, famílias inteiras tomaram decisões de vida ou de morte em momentos de pânico, sem qualquer auxílio externo e totalmente entregues à sua sorte. Nos próximos dias serão divulgados mais partes desse capítulo VI que, no fundo, acaba também por ser o registo de um dos mais negros episódios da história do Portugal democrático.

 

Despender alguns minutos do nosso dia a ler estes relatos pessoais e dos técnicos não é apenas uma questão de informação, é também quase uma obrigação para com a memória de todos aqueles que perderam as suas vidas, para que possamos ajudar a construir um Estado que nunca mais deixe os seus ao abandono.   

 

Texto publicado originalmente no Delito de Opinião

 

Leituras

Alexandre Guerra, 25.09.18

 

What Betsy DeVos Thinks She Can Get Away With é um texto de opinião do New York Times bastante esclarecedor sobre o perfil ideológico de Betsy DeVos, uma das figuras mais importantes da administração americana. Não propriamente pela pasta que ocupa, a Educação, mas sobretudo pelo seu perfil ideológico, que repercute na perfeição aquilo que é a forma de pensamento do Presidente Donald Trump e que não se tem coibido de tentar levar por diante as suas políticas, nomeadamente ao nível do ensino superior.

 

Recordar o 9/11

Alexandre Guerra, 11.09.18

 

Assinalam-se hoje 17 anos sobre os atentados terroristas a Nova Iorque e a Washington. É sem dúvida um dos momentos históricos mais trágicos de que tenho memória e, à excepção da queda do Muro de Berlim, é aquele que mais implicações sistémicas teve. Foi, por isso, para mim um privilégio, enquanto editor da secção de Internacional do SEMANÁRIO, ter deixado impresso o meu registo jornalístico, escrito ao longo dos dois dias que se seguiram aos atentados (uma Terça-feira), e que seria publicado na edição seguinte, na Sexta-feira (14). Depois do choque inicial, foi preciso afastar as emoções, perceber o que se estava a passar e perspectivar o que iria acontecer. Foram dias de muito trabalho e confusão, mas um desafio enorme para quem tinha as relações internacionais e o jornalismo como paixões.

 

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Srebrenica

Alexandre Guerra, 01.09.18

 

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Memorial/cemitério de Srebrenica no passado dia 27/Foto: Alexandre Guerra 

 

Embora há uns anos já estivesse estado num país dos Balcãs, ainda como jornalista numa visita a uma central nuclear na Bulgária, a verdade é que desde os anos 90, com o desmembramento da ex-Jugoslávia e o eclodir do conflito balcânico, o meu interesse por aquela região foi crescendo. Estudei na universidade com alguma intensidade o enquadramento histórico e político daquela zona, numa altura em que se começava a colocar em prática os Acordos de Dayton, celebrados no final de 1995. Há muito que tinha particular vontade de ir conhecer aquela realidade de perto, mais concretamente a Sérvia e a Bósnia, esta última composta por duas entidades: a Federação Bósnia (croata-muçulmana) e a República Srpska (sérvia ortodoxa). Perceber coisas que os livros não me diziam e tentar compreender alguns contornos na relação entre pessoas que outrora fizeram parte de um mesmo país evoluído cultural e industrialmente, mas que não foram capazes de evitar a maior barbaridade na Europa desde a IIGM. E nessa óptica, Srebrenica ficará para sempre com a maior vergonha europeia dos últimos 70 anos, como o maior falhanço da comunidade internacional em solo europeu.  

 

Por esta razão, das minhas andanças pela Sérvia e Bósnia na última semana, a visita a Srebrenica (que outrora tinha sido um enclave muçulmano) representou algo de especial. Não apenas pelo interesse histórico e político, mas sobretudo pelo lado humano. Muito teria para escrever, tanta foi a informação recolhida e que desconhecia (nada como ir aos sítios). Mas, vou deixar os factos de lado, porque o ímpeto para transmitir o que me perpassou pela alma, depois de tudo o que vi e ouvi, é mais forte. Das aulas da universidade, das leituras que tinha feito, das notícias que fui acompanhando ao longo dos anos, conhecia bem a história do genocídio de Srebrenica, uma localidade remota na parte sérvia (República Srpska) da Bósnia, onde há muito queria ir pelo que lá aconteceu e que jamais deve ser esquecido. Entre 11 e 16 de Julho de 1995, naquele enclave muçulmano em zona sérvia ortodoxa, foram assassinados mais de 8 mil bósnios muçulmanos (bosniaks), num massacre sistematizado, comandado militarmente por Ratko Mladic, sob as ordens políticas de Radovan Karadzic. Tudo aconteceu perante a impotência do tristemente célebre contigente holandês de capacetes azuis da ONU estacionado em Potacari, a poucos quilómetros de Srebrenica (para a história, o contingente holandês ficou associado negativamente a estes acontecimentos e ainda hoje, por um certo sentimento de culpa, muitos dos seus soldados acompanham a título pessoal as famílias das vítimas. O próprio Governo holandês apoia diversos projectos solidários. Mas vale a pena estudar com muita atenção tudo o que falhou ao nível da hierarquia de comando da ONU, para se perceber que muito podia ter sido feito para se evitar aquele genocídio, já para não falar que as "rules of engagement" dos soldados holandeses nem sequer lhes permitia disparar em legítima defesa).

 

Desde a II GM que o mundo não via imagens daquelas, uma campanha brutal de limpeza étnica em nome de um projecto nacionalista. Tenho bem presente aqueles terríveis acontecimentos e, por isso, o que mais me impressionou foi confrontar as imagens que tinha guardadas na memória com os locais aparentemente normais onde estive e pensar que tudo aconteceu só há 23 anos, bem perto do coração da Europa (Viena a Sarajevo não chega a 800 quilómetros). Por aqueles locais cometeu-se um extermínio em massa e é muito inquietante lidar com essa "normalidade". Até a empresa de autocarros que transportou sistematicamente centenas de bosniaks para os locais de extermínio ainda opera. Está lá! E perguntamo-nos: Como é possível? É difícil explicar essa "normalidade"... A verdade é que nada pode ser normal numa cidade quase fantasma, onde dantes viviam 40 a 50 mil pessoas e depois da limpeza étnica, através do extermínio ou de abandono forçado, ficaram apenas 12 mil.

 

Impressionou-me o que vi e emocionou-me o testemunho doloroso, ao longo de mais de uma hora, de um homem, na altura criança, que escapou à morte, mas perdeu o pai e o irmão no genocídio. E o mais tocante é que o mesmo surge de passagem num documentário, onde se mostram imagens da altura, com colunas de centenas de pessoas a fugirem de Srebrenica para localidades circundantes. E lá está ela, uma criança assustada, no meio de um conflito que servia apenas um propósito de Slobodan Milosevid: criar entre a Sérvia e a República Srpska uma homogeneidade étnica e religiosa. E o mais dramático é que comparando-se os mapas demográficos de antes de 1992 e depois de 1995, constata-se que a ideia de "grande" Sérvia protagonizada por Milosevic fez uma parte do caminho.

 

Hoje, com uma certa descontracção e ignorância, muito se fala de nacionalismos e de líderes nacionalistas e, por isso, é que trago aqui este texto, porque as pessoas esquecem rapidamente e, muitas vezes, pouco aprendem com a História. O memorial e cemitério das vítimas do genocídio de Srebrenica é impressionante e coloca-nos perante o resultado da mais vil e perversa obra de projectos políticos nacionalistas. Todos os anos, em Julho, são enterrados novos corpos identificados que, entretanto, vão sendo exumados das muitas valas comuns que circundam a área de Srebrenica. Depois de ver Srebrenica e em memória aos que morreram, é cada vez mais forte a minha convicção de que extremismos e nacionalismos devem ser combatidos com todas as nossas forças. Para que, como disse o imã de Potacari na inauguração do memorial/cemitério a 11 de Julho de 2001, "That Srebrenica never happen again, to no one and nowhere".