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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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Duas condições para "impeachment"

Alexandre Guerra, 22.08.18

 

Os casos judiciais que envolveram Paul Manafort e Michael Cohen, outrora homens poderosos que fizeram parte do círculo mais próximo do Presidente Donald Trump, servem de “combustível” para manter vivo o “lume” até às eleições intercalares de Novembro. Um “lume” que os opositores de Trump esperam que se transforme nas “chamas do inferno”, com um processo de “impeachment” que, na actual configuração do Congresso (Câmara dos Representantes e Senado), é impossível de passar. É por isso que, provavelmente, nunca em tantos anos nos EUA, as eleições intercalares tiveram uma importância tão directa no destino do Presidente, porque se os republicanos perderem a maioria no Congresso e, consequentemente, a liderança de algumas comissões, poderão estar criadas as condições para o início formal de um processo de “impeachment”. Reconheça-se que, por menos, muito menos, Bill Clinton foi alvo de um processo destes, embora tenha sido absolvido e cumprido o seu segundo mandato até ao final, terminando com os mais altos índices de popularidade que um Presidente teve desde a II GM.  

 

Para um processo destes ter possibilidade de avançar, são sobretudo precisas duas condições: a primeira tem a ver com uma conjuntura política adversa contra Trump e um ambiente muito hostil instalado numa significativa franja da opinião pública; a segunda condição é partidária e prende-se com a composição do Congresso que, maioritariamente, tem que se opor ao Presidente.

 

Se polémicas com actrizes porno ou casos de polícia, como os do antigo director de campanha e o do ex-advogado de Trump, são excelentes para criar bases jurídicas e um sentimento cada vez mais adverso contra o Presidente, empolado diariamente pelos principais órgãos de comunicação social americanos, com a ajuda de muitos artistas e personalidades “activistas”, nada disto servirá se depois não houver correspondência no poder legislativo. Que é isso que acontece actualmente.

 

Não custa a acreditar que, daqui até Novembro, a primeira condição seja reforçada ainda mais, atendendo à habilidade de Trump para se meter em problemas criados por si próprio. A questão que se coloca é saber se os ventos de mudança chegarão ao Congresso. Para a segunda condição ser cumprida, tanto a Câmara dos Representantes como o Senado terão que mudar a sua composição (ou então, teria que haver uma alteração no pensamento de muitos republicanos, o que não parece verosímil). Na Câmara dos Representantes basta uma maioria simples para dar início ao processo de “impeachment”, já ao nível do Senado, a confirmação da queda do Presidente precisa sempre de uma maioria de dois terços. Ora, se em teoria, é possível que os democratas conquistem a maioria na Câmara dos Representantes, já que todos os seus 435 assentos irão a eleições, no Senado, dos seus 100 lugares, apenas 35 estarão em disputa, sendo que a maioria destes são actualmente ocupados por democratas. Mesmo admitindo que os democratas conquistem a maioria no Senado (perfeitamente possível), dificilmente chegariam a uma maioria de dois terços, porque pressuponha que, além de conquistarem lugares novos, teriam que convencer outros republicanos que já lá estão.

 

Do que se vai analisando, a estratégia de oposição a Trump passa por manter o Presidente debaixo de fogo até Novembro, explorando ao máximo todos os seus casos polémicos e, sempre que possível, abrindo novas “frentes de batalha”. Basta ver órgãos como o New Times e a CNN para se perceber que os próximos dois meses e meio vão ser de ataque constante a Trump e é por isso que casos como o de Manafort ou de Cohen são autênticas armas de destruição maciça contra o Presidente. O que a oposição a Trump está a tentar fazer é criar uma espécie de “casus belli”, na esperança de que em Novembro a maioria do Congresso mude de mãos e formalize o “impeachment”. E se isso vier a acontecer, é muito provável que muitos republicanos congressistas e senadores mais moderados se sintam tentados a dar o “empurrão” final a Donald Trump.

 

Afeganistão, o país esquecido

Alexandre Guerra, 16.08.18

 

Quando os conflitos militares saem da agenda mediática, instala-se a sensação junto da opinião pública de que foram resolvidos ou atenuados. Se isso pode ser verdade em muitos casos, outros há em que o que acontece é puro esquecimento ou desinteresse da comunidade internacional face a realidades que perduram no terreno, por vezes, com mais intensidade. É isto precisamente que se está a passar no Afeganistão, uma guerra intestina mortífera, que continua a opor os taliban ao frágil Estado central.

 

Só nos últimos dias, os fundamentalistas islâmicos tentaram tomar de assalto a importante cidade de Ghazni, capital da província com o mesmo nome, envolvendo-se em confrontos com as forças de segurança, que provocaram, pelo menos, a morte de cerca de 100 polícias e 20 civis. Os combates continuam, embora as autoridades afegãs informem que a situação está controlada. Sabe-se também que na Sexta-feira (9) “conselheiros” americanos estacionados no Afeganistão foram para o local ajudar os militares afegãos e que aviões norte-americanos lançaram ataques aéreos, matando cerca de 140 insurgentes taliban. É importante lembrar que, formalmente, desde 2014, a intervenção bélica massiva dos EUA terminou no Afeganistão, tendo ficado para trás apenas cerca de nove mil soldados militares americanos para dar formação e apoio técnico às forças de segurança afegãs.

 

Seja como for, o New York Times, que tem um corresponde no Afeganistão, escrevia que quase todas as zonas suburbanas de Ghazni e as áreas rurais da província estão nas mãos dos taliban. Ghazni fica a 140 quilómetros a sudoeste de Cabul e a sua importância é estratégica, já que fica a meio da autoestrada que liga a capital afegã à segunda maior cidade do país, Kandahar. Entretanto, na Segunda-feira à noite (13), na mesma altura em que decorria a tentativa de ocupação de Ghazni, os taliban levavam a cabo uma outra operação no norte do Afeganistão, ao tomarem de assalto uma base militar na província de Faryab, matando 17 soldados. Os taliban informaram que muitos dos soldados da base Camp Chinaya se renderam, sendo que as autoridades desconhecem quantos foram feitos reféns.

 

Estes dois acontecimentos circunscrevem-se apenas nos últimos dias, mas, a verdade é que o Afeganistão continua a ser dilacerado quase diariamente pela violência taliban, mesmo depois de as forças nacionais terem assumido o comando militar das últimas regiões do país onde, até então, estavam os soldados internacionais. Estava-se em Junho de 2013 e um ano depois, o então Presidente Barack Obama retirava o grosso do contingente americano do Afeganistão, deixando apenas os tais nove mil soldados “conselheiros” no terreno. Chegava ao fim a presença internacional naquele país no âmbito da guerra declarada à al Qaeda e aos taliban, após os atentados de 11 de Setembro de 2001. No entanto, todos os aliados estavam cientes de que o fim da missão no Afeganistão não correspondia a qualquer sentimento de euforia. Pelo contrário, o conflito estava num impasse e se era verdade que o Governo central era agora pró-ocidental e “amigo”, o país permanecia a “ferro e fogo”, com os insurgentes a reconquistarem áreas significativas.

 

Quando Donald Trump chegou ao poder, não deixou de perceber essa evidente realidade, embora, primeiramente, a sua preocupação estivesse focada no Estado Islâmico (ISIS), tendo, por isso, lançado em Abril de 2017 a “mãe de todas as bombas” sobre um complexo de cavernas na província Nangarhar, no leste do Afeganistão. O objectivo não eram os taliban, mas sim os terroristas do ISIS, numa altura em que se falava que este grupo estava a ganhar espaço no Afeganistão e a concorrer directamente com os taliban pelo controlo e influência naquele país.

 

Os alarmes terão soado em Washington, mas rapidamente se percebeu que quem fazia valer a sua força no Afeganistão eram os taliban, como historicamente sempre tinha acontecido. Com o ISIS na mira, a Casa Branca tinha toda a estratégia focada para a Síria e Iraque, ficando o Afeganistão numa situação incerta, com Trump apenas a admitir que podia reforçar o número de soldados naquele país. Aliás, a 18 de Junho de 2017, o título de uma notícia do New York Times era revelador do desnorte face à estratégia a ser seguida: As US Adds Troops in Afghanistan, Trump’s Strategy Remains Undefined.

 

Trump não tem sido claro em relação ao Afeganistão, mas já disse que uma retirada total dependerá sempre das condições no terreno. Retirada, essa, que, para já, parece estar muito distante, já que Washington voltou a reforçar a sua presença militar no Afeganistão, intensificando o número de soldados americanos no terreno para dar “advise” às forças de segurança afegãs. Também os ataques aéreos norte-americanos aumentaram, especialmente contra as plantações de ópio, uma importante fonte de receita para os taliban. Convém sublinhar que, segundo o Office for Drugs and Crime’s das Nações Unidas (UNODC), a produção de ópio aumentou 87 por cento no ano passado. Um número impressionante, porque significa, por um lado, que a estratégia americana anti-narcóticos não está a resultar e, por outro, que os taliban vão tendo cada vez mais receitas para financiar a sua guerra.

 

Quem estiver atento às pequenas notícias que vão saindo na imprensa internacional, constatará que, dezassete anos depois do início da operação Enduring Freedom, não passa uma semana em que a insurreição taliban não faça mortes e feridos no Afeganistão. De acordo com os dados disponíveis, cerca de um terço do país está dominado pelos taliban, a produção de ópio aumenta e a corrupção está instalada no Governo central. Realisticamente, não há perspectivas de melhoria e muito menos um modelo que possa devolver estabilidade àquele país. Ironicamente, a última vez que o Afeganistão teve paz, era dominado pelos taliban do mullah Omar, onde a sharia imperava e um senhor chamado Osama bin Laden teve total liberdade para montar uma estrutura terrorista complexa e sofisticada.

 

Hoje, nenhum líder mundial o assume, mas o Afeganistão é uma causa perdida. Nada correu como se esperava e, numa determinada óptica, o país está pior do que, por exemplo, estava em 2000. É uma afirmação dura, mas é a realidade, que aliás se pode aplicar a outros países que foram alvo de intervenções militares desastrosas, como o Iraque, a Líbia ou a Síria. O Afeganistão é um assunto que convém ficar “esquecido” das agendas mediáticas e políticas, porque, simplesmente, não há solução à vista para resolver a trapalhada que ali foi feita. A revista The National Interest recuperava há semanas umas declarações de Obama, proferidas em 2010, onde este admitia que os EUA tanto podiam ficar no Afeganistão por mais cinco, oito ou dez anos, não por uma questão de estratégia, mas sim por “inércia”. 

 

É um impasse num conflito sangrento, destrutivo e dispendioso. Trump foi surpreendentemente lesto a percebê-lo e “adormeceu” o assunto, sem se comprometer com grandes medidas, mas ciente de que seria preciso fazer algo, nomeadamente, aquilo que nunca ninguém quis fazer… negociar com o inimigo. No dia 23 de Julho, no Qatar, uma alta responsável do Departamento de Estado esteve reunida com quatro líderes taliban. Foi o primeiro encontro entre as partes em sete anos. Também o Presidente afegão Ashraf Gani já percebeu o quadro todo, tendo no passado dia 27 de Junho publicado um artigo de opinião no New York Times onde, de forma peremptória e bem audível, dizia: “I Will Negotiate With Taliban Anywhere” (curiosamente, Mário Soares, animal político da escola realista, tinha há uns anos referido que qualquer solução minimamente credível para o Afeganistão teria que passar por uma negociação com os taliban. Na altura, não só não foi levado a sério, como chegou a ser gozado pelos “especialistas” e líderes da nossa praça).

 

Quase dezassete depois dos atentados de 11 de Setembro, o Afeganistão voltou a ser um país esquecido. Deixou de estar no topo das prioridades da comunidade internacional e da agenda mediática. Obama, antes, e Trump, agora, resignaram-se ao “status quo” afegão, de autêntico falhanço na destruição dos taliban e na reconstrução de um país dilacerado. Neste momento, num gesto de quase desespero, mas ao mesmo tempo de algum realismo, resta a possibilidade de negociar com o inimigo. E por isso é que é importante que o Afeganistão continue a ser um tema “esquecido”, porque a humilhação é pesada.  

 

Publicado originalmente no site do Público.

 

Um Presidente em calções

Alexandre Guerra, 05.08.18

 

Nos anos 70, o sociólogo e politólogo Roger-Gérard Schwartzenberg publicou um livro muito importante no campo da sociologia e da ciência política chamado "O Estado Espetáculo" (trad. brasileira). Nesse livro, que me foi apresentado há uns anos pelo já falecido professor João Bettencourt da Câmara numa das aulas de mestrado, e que devia ser lido por quem, muitas vezes, se pronuncia no alto da sua sabedoria sobre os fenómenos da comunicação política dos dias de hoje, Schwartzenberg alerta para os perigos da teatralização da acção dos actores políticos, tornando-se, em muitos casos, espectáculos de "one man show", onde o cidadão é um mero observador passivo perante o exercício de poder egoísta e interesseiro de quem o detém. Espectáculos circenses nos quais os políticos pouco virtuosos colocam os seus interesses pessoais e fúteis acima dos outros. Como escreveu Adriano Moreira, em Maio de 2016, numa das suas crónicas no DN, precisamente em relação a este livro de Schwartzenberg, todo este "espectáculo" montado pelo político é feito "sem grandes preocupações sobre manter a integridade da relação entre o proclamado e a ação do poder alcançado".

 

Este era um dos perigos para os quais Schwartzenberg alertava, ou seja, o do eterno problema da ausência de verticalidade na política e na falta de palavra dos seus intervenientes, entre a promessa e a concretização. Ora, analisando bem aquilo que o autor queria transmitir, problema não se coloca no facto de um político aparecer ou não em cima de uma tartaruga algures numa ilha paradisíaca do Índico ou de surgir em directos nas televisões a mergulhar numa praia fluvial no interior de Portugal. A questão, sim, que deve ser tida em conta, é se esse mesmo político se preocupa em “manter a integridade da relação entre o proclamado e a acção do poder alcançado”. Esse é o exercício que se deve fazer num âmbito de uma análise política e é o que se deve ter em consideração no escrutínio que um cidadão faz ao seu líder, esteja ele de fato e gravata ou em calções. É sempre importante relembrar que Winston Churchill só não governou deitado, porque não dava muito jeito, tendo sido apanhado em situações perfeitamente disparatadas, mesmo para aquela época, no entanto, penso que ninguém duvidará da sua convicção e no seu compromisso com a causa maior e com o seu povo. E é isso o mais importante, é isso que deve ser julgado pelos cidadãos, porque é isso que faz com um líder seja virtuoso, que contribua para o bem-estar das pessoas.

 

O Presidente Marcelo, à sua maneira, abdicou de parte das suas férias para fazer aquilo que achava que era o seu compromisso com as populações, sobretudo com aquelas que sofreram directamente tamanhas tragédias com os incêndios do ano passado. Dirão os críticos que o podia fazer sem o aparato mediático. Podia, mas não era a mesma coisa. Porque o objectivo também é chamar a atenção, sensibilizar, e aí, um bom político, utiliza as ferramentas que tem ao seu dispor para executar a sua visão, a sua estratégia. A diferença é se o faz em prol dos seus interesses e projectos pessoais de poder ou se, por outro lado, o faz a pensar nas pessoas.

 

Embora nem sempre tenha concordado com algumas opções e acções do Presidente, não tenho dúvidas de que Marcelo está de corpo e alma com estas gentes do interior. Basta vê-lo pessoalmente no local e percebe-se o seu envolvimento. Mas mais importante, é ver os olhos de felicidade e de conforto das pessoas do tal interior, historicamente sempre esquecido pelas elites de Lisboa. Marcelo não esqueceu o que tinha dito no ano passado depois da tragédia dos incêndios, de que iria passar férias na região, e isso é que é raro em política. Apelou também a outros políticos e aos portugueses para visitarem todos aqueles concelhos. Pois bem, o presidente cumpriu. E cumpriu genuinamente.

  

Marcelo, que ao longo da sua vida política nunca deixou de ser maquiavélico (no sentido científico da palavra) e alinhar em “jogos de bastidores”, parece ter deixado parte disso para trás quando alcançou o seu projecto de poder de uma vida, Belém. Um segundo mandato depende apenas de si. Com quase 70 anos, parece ser um homem em paz consigo próprio, que assumiu o registo presidencial virado para o povo, contrariando alguns vaticínios de caos e anarquia no Palácio de Belém. Marcelo é hoje um político que não precisa de qualquer reforço de reputação ou de notoriedade. Muito menos, precisaria de abdicar das suas férias no Algarve para executar uma manobra circense no interior do país de modo a subir nas sondagens. Pelo contrário, nunca nenhum político em Portugal foi tão acarinhado pelas pessoas e nunca teve sondagens tão favoráveis. 

 

Texto publicado originalmente no Delito de Opinião