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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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Zimbabwe e Etiópia em mudança

Alexandre Guerra, 30.07.18

 

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Crianças do Vale do Omo na Etiópia

 

Em termos políticos e sociais, África foi muitas vezes olhada como um “caso perdido”. Um Continente dilacerado pela corrupção e nepotismo, pelas doenças, pela seca, pela fome, pela violência étnica, pela exploração vil dos seus recursos naturais por parte das multinacionais e dos Estados desenvolvidos, pela violação constante dos Direitos Humanos mais fundamentais… Um Continente onde as histórias de evolução e sucesso são raras excepções e que, naturalmente, nunca podem ser analisadas à luz daquilo que são os padrões das sociedades desenvolvidas. Os eventuais “achievements” das nações africanas medem-se por uma escala diferente, na qual devem ser valorizados pequenos actos que, insignificantes para um qualquer país europeu, assumem um sinal de esperança para milhões de africanos que ao longo das suas vidas apenas têm sentido na pele as perversidades dos seus regimes.

 

É por isso importante notar neste dia em que se celebram as primeiras eleições pós-Robert Mugabe, o modo pacífico de como se processou a sua abdicação do poder, em Novembro último, após quase 40 anos de ter estado à frente da presidência do Zimbabwe. Até ao momento, esse processo de transição está a decorrer com uma admirável tranquilidade dentro daquilo que é o quadro dos sistemas políticos africanos. E em relação ao acto eleitoral, a BBC News sublinhava que, desta vez, se sentia um óptimismo no ar, sobretudo pela ausência de violência.

 

Para África, é uma história incomum ver um ditador ser afastado do poder, sem que isso se traduza em violência e sangue sobre as populações. Como também é pouco comum o que está a acontecer no Etiópia, com a chegada pacífica ao poder de um jovem que tem estado a implementar aceleradamente uma série de medidas e reformas, incluindo a libertação de presos políticos, a abertura do sistema político aos cidadãos, a liberalização da economia e a aceitação de um acordo de paz antigo com a Eritreia, país com o qual tinha um conflito fronteiriço há 20 anos.

 

Em poucos meses, Abiy Ahmed conseguiu dar um sinal de esperança aos etíopes que, durante anos, viveram sob um regime opressivo e violador dos Direitos Humanos. O novo primeiro-ministro, com 42 anos, parece encaixar-se naquele tipo de líder que devolve a esperança às pessoas, como o foi Barack Obama ou Emmanuel Macron. Para já, está a demonstrar no terreno que quer transformar a Etiópia e já anunciou que o caminho faz-se em direcção a uma verdadeira democracia multipartidária.

 

Pode ser que estas transições pacíficas no Zimbabwe e na Etiópia se venham a efectivar em casos de sucesso de mudanças de regime e que possam inspirar outras nações. Acima de tudo, é importante que os países europeus estejam atentos a estas realidades e ajudem a reforçar estes processos, porque, ao contrário das soluções de recurso que têm sido encontradas dentro do espaço europeu, é na origem que devem começar a ser resolvidos alguns dos problemas que impelem milhares de pessoas a procurarem uma melhor vida na Europa.

 

E se puder alterar geneticamente o seu futuro filho?

Alexandre Guerra, 23.07.18

 

“Should we or shouldn't we be allowed to modify human DNA in future children?”

 

É com esta pergunta que a BBC News introduzia um artigo publicado há uns dias no seu site sobre as fronteiras morais e éticas ao exercício da engenharia genética na alteração de embriões humanos. No fundo, estamos a falar da edição do genoma humano para condicionar/alterar o ADN de uma futura criança, o que na prática significa que, pela primeira vez na história da Humanidade, um bebé poderia potencialmente nascer com características genéticas que não fossem fruto do livre arbítrio, mas da vontade dos seus progenitores. Ou seja, estaríamos perante um novo mundo, o tal mundo pós-Humano de que Francis Fukuyama e outros autores falaram, dando-se assim início a uma nova História. Uma história pós-Humana.

 

Acredito que esta problemática, com as suas diversas implicações éticas, políticas, sociais, morais e religiosas, será uma das questões mais fracturantes num futuro próximo e, por isso, me debrucei sobre o tema no livro “A Política e o Homem Pós-Humano”[1]. O livro acabou por ser a extensão da minha dissertação de mestrado em Ciência Política, coordenada por um dos mais ilustres sociólogos nacionais e internacionais, o já falecido Hermínio Martins (Maputo, 1934 – Oxford, 2015), que durante décadas se dedicou ao pensamento destas matérias. Praticamente um desconhecido em Portugal, gozava de uma reputação de excelência no estrangeiro, ao ponto de o The Independent escrever no seu obituário o seguinte: “The death of the Portuguese-British sociologist Hermínio Martins will be mourned by social scientists internationally, impressed by his extraordinary erudition and the subtlety of his irony.”

 

Hermínio Martins foi Professor Emérito do St. Anthony’s College, da Universidade de Oxford, onde desenvolveu parte da sua carreira, tendo anteriormente estudado com Karl Popper e Ernest Gellner e mais tarde trabalhado com nomes de referência da sociologia mundial, tais como John Rex, Talcott Parsons, Seymour Martin-Lipset ou David Riesman.

 

Motivado pelo estímulo intelectual do “mais filósofo dos cientistas sociais portugueses”, como escreveu António Guerreiro no PÚBLICO por altura da sua morte, comecei a compreender em toda a plenitude o alcance das repercussões futuras da bioengenharia e da biotecnologia nas sociedades vindouras. “Da reprodução de órgãos geneticamente iguais à possível criação de um ‘super-homem’, a sociedade encontra-se no centro de um debate que, embora ainda tímido nalguns Estados e até ausente noutros, ganha protagonismo na agenda política”.[2] Percebi também que “quando Francis Fukuyama falou no ‘Fim da História e no Último Homem’, apropriando-se de uma concepção determinista recorrente, admitiu mais tarde que a génese da destruição da sua tese se encontrava precisamente nas novas biotecnologias. A possibilidade de um ‘outro eu’, produto do Homem e não do livre arbítrio, faria emergir um mundo pós-humano, dando-se, assim, início a uma nova História”.[3]

 

É um possível cenário futuro sobre o qual devemos reflectir e estar atentos, até porque o passado tem demonstrado o princípio da inevitabilidade do progresso científico, não obstante a tentativa de forças conservadores se baterem pela manutenção do status quo em determinados períodos históricos de ruptura nos modelos de pensamento.

 

A notícia da BBC News aqui citada, que se junta a tantas outras, mas que para já não captam a atenção para os debates mais massificados, vem precisamente reforçar essa ideia, ao citar um estudo divulgado há dias pelo Nuffield Council on Bioethics, uma entidade independente britânica sobre políticas públicas no âmbito das questões éticas em biologia e medicina. Para aquele organismo, não há qualquer razão impeditiva para que a engenharia genética não possa ser aplicada nos embriões humanos, apesar das implicações para a sociedade serem “extensivas, profundas e a longo prazo”. É importante relembrar que no Reino Unido, à semelhança do que acontece noutros países, este tipo de investigação genética só é possível (quando o é) em embriões criados para fertilização in vitro que não foram utilizados, os chamados embriões excedentários. Nesse mesmo texto da BBC News fica evidente o confronto ideológico e ético das várias correntes, com os mais conservadores a criticarem aquilo que chamam de um “abrir portas” aos “designer babies” e os mais progressistas a enaltecerem as virtudes da ciência. É um debate que se tem feito desde há uns anos a esta parte, cada vez com mais intensidade sobretudo nos Estados Unidos.

 

Poderá não ser para um futuro muito próximo, mas “as novas biotecnologias poderão ainda fazer chegar o dia em que nascerá o primeiro ’homem’ feito à medida da vontade de um seu semelhante. Da cor dos olhos e do cabelo, ao valor do QI, passando pelo sexo da criança ou pelo nível de agressividade das suas emoções, tudo será possível manusear como se fosse uma encomenda por catálogo”.[4]

 

Uma problemática que há muitos anos Hermínio Martins explorou nos seus estudos e reflexões no âmbito da “civilização tecnológica e condição humana”, antecipando claramente o futuro ao considerar “que “as biotecnológicas não buscam meramente facultar melhoramentos cosméticos e mais próteses para organismos humanos e não humanos, mas criar novas formas de vida. De todas as tecnologias contemporâneas é talvez a biotecnologia a que tem uma vocação mais decisivamente ontológica. O seu horizonte inclui a criação de novas formas de vida orgânica como resultado de modificações genéticas, englobando transferências genéticas entre espécies e potencialmente o derrubar das fronteiras entre espécies biológicas naturais – enquanto a evolução tanto orgânica como inorgânica tinha sido na generalidade adversa a mesoformas e, na verdade, um princípio geral de instabilidade das mesoformas foi enunciado por muitos filósofos naturais tais como Fraser (1982). As formas de vida artificiais iludem as fronteiras naturais e os limites da evolução biológica ‘normal’”.[5]

 

Pela primeira vez na sua História, o Homem detém tecnologia que poderá ter consequências “na definição e na concepção/adulteração do Homem biológico, tal e qual o conhecemos há milhares de anos, e, consequentemente, na forma de como a Humanidade olhará para ela própria. As novas biotecnologias abrem assim uma imensa porta para admiráveis mundos novos, que permitem vislumbrar sociedades mais próximas da utopia, onde as pessoas podem viver para lá dos 110 anos, auto-regenerando-se com os seus próprios órgãos geneticamente compatíveis, desafiando as leis naturais que têm imperado até hoje: a ausência de qualquer flagelo degenerativo ou a erradicação da dor e da doença. Tal modelo de sociedade será, à primeira vista, o procurado por todas as pessoas de bom senso, sobretudo quando nos dias que correm tantos desafios há a vencer, mas como as utopias positivas e negativas têm revelado através do trabalho intelectual de muitos autores, a busca da perfeição pressupõe quase sempre alterações drásticas de comportamentos sociais e humanos”.[6]

 

A pergunta com que iniciámos este texto deve merecer uma reflexão séria, porque algo de novo se começa a vislumbrar no percurso da Humanidade, já que estão a ser criadas condições para a ruptura entre os mundos Humano e pós-Humano.

 

[1] GUERRA, Alexandre – A Política e o Homem Pós-Humano, com prefácio do Viriato Soromenho-Marques e texto de contra capa de José Manuel Durão Barroso (Lisboa: Alêtheia, Novembro de 2016)

[2] Idem. pág. 16

[3] Idem, ibidem

[4] Idem, pág. 174

[5] MARTINS, Hermínio – Experimentum Humanum (Lisboa: Relógio D’Agua, Maio de 2011), pág.28 págs. 165 e 166

[6] Ob. Cit. – A Política e o Homem Pós-Humano, pág. 173

 

Publicado originalmente no Observador

 

Em dia de Nelson Mandela, o Diplomata relembra o hino "I Wonder"

Alexandre Guerra, 18.07.18

 

 

No dia em que Nelson Mandela faria 100 anos, nunca é demais relembrar "I Wonder", que se transformou num hino para milhões de sul-africanos, que viram nas suas letras um autêntico grito de revolta contra o apartheid. O aclamado documentário "À Procura de Sugar Man" de 2013 foi à descoberta do seu autor, Rodriguez, um obscuro músico de ascendência mexicana da década de 70, totalmente desconhecido nos Estados Unidos, onde permaneceu "desaparecido" durante longos anos (tendo sido mesmo dado como morto), mas que, por circunstâncias extraordinárias, teve uma forte influência cultural e social no movimento de emancipação e de contra-corrente ao regime de apartheid que se vivia na África do Sul.

  

 

A virtude do processo de decisão

Alexandre Guerra, 17.07.18

 

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O primeiro-ministro tailandês, Prayuth Chan-ocha (direita), questiona o governador da província de Chiang Rai e comandante operacional do salvamento, Narongsak Osatanakorn (esquerda), sobre o plano para resgatar do sistema de grutas Tham Luang as doze crianças da equipa de futebol e o jovem treinador/Foto: Thailand Government House/Handout via REUTERS

 

Com as emoções atenuadas e os factos mais apurados, volvidos alguns dias depois do resgate bem-sucedido das doze crianças de uma equipa de futebol e do seu jovem treinador das entranhas do sistema de grutas Tham Luang na província remota de Chiang Rai na Tailândia, talvez seja importante fazer uma análise, não tanto à operação em si mesma, mas ao processo de decisão que esteve na sua origem. Porque, em grande parte, o final feliz desta história tanto se deve à coragem e perícia dos mergulhadores, como à “boa fortuna” e “virtude” dos decisores políticos que, sob pressão imensa, deram luz verde a uma operação quase impossível, numa lógica de mal menor, atendendo aos cenários dramáticos que se apresentavam: um salvamento imediato com riscos imensos para todos em plena época de chuvas; ou se aguardava por um abaixamento do nível da água, que poderia demorar meses, com vários imponderáveis que podiam resvalar facilmente para a tragédia. Embora as autoridades tailandesas nunca o tenham afirmado peremptoriamente, presume-se que esta segunda opção tenha acabado por ser posta de parte (se é que foi verdadeiramente equacionada), já que dificilmente as crianças sobreviveriam muitas mais semanas em ambiente de escassez crescente de oxigénio. Além do mais, havia ainda o risco, caso as chuvas se intensificassem, de, um momento para o outro, o nível da água subir de tal maneira que provocaria a inundação completa da caverna onde as crianças e o jovem treinador se encontravam.

 

Na prática, os decisores políticos, secundados pelo “expertise” militar e pressionados pela urgência da decisão face às previsíveis tréguas que a monção ia dar durante três dias, terão chegado à conclusão de que a escolha da segunda opção seria o mesmo que condenar aquelas treze pessoas à morte. É importante notar que a decisão última numa crise deste género é sempre solitária e, muito provavelmente, coube ao primeiro-ministro tailandês, Prayuth Chan-ocha, dar a aprovação final para que os militares avançassem pelo resgate imediato.

 

Uma decisão destas contém em si uma carga dramática, uma vez que não está isenta de riscos. Pelo contrário, qualquer dos cenários que foi colocado em cima da mesa de Prayuth Chan-ocha não dava garantia alguma de sucesso pleno, com os militares, certamente, a considerarem realisticamente a possibilidade de se verificarem baixas entre os resgatados e os mergulhadores (como, efectivamente, veio a acontecer).

 

É nestes momentos que se exigem decisões firmes aos líderes políticos, decisões que têm de ser tomadas num curto espaço de tempo, sob uma enorme pressão social e mediática, já para não falar na componente humana e emocional que se abate sobre um governante numa altura destas. Assim que a decisão foi tomada, passou a ser a estrutura castrense a liderar todo o processo, tendo o comando operacional do resgate ficado a cargo do também militar, o governador da província de Chiang Rai, Narongsak Osotthanakorn. Assumiu a operacionalização do plano, que contou com 150 militares e civis especializados de vários países do mundo. No terreno, coube aos Thai Navy Seals, sob a liderança do contra-almirante Arpakorn Yuukongkaew, implementarem cirurgicamente o que estava delineado no papel. E convém não esquecer de que estávamos a falar de uma gruta com cerca de três quilómetros de extensão, entre a entrada e o local onde se encontravam os resgatados, em que quase metade estava parcial ou totalmente inundada. Além disso, havia locais onde apenas passava uma pessoa e nada mais, nem mesmo a garrafa de oxigénio.

 

Analisando agora já com algum distanciamento, constata-se que tudo foi decidido e executado com determinação, firmeza e profissionalismo. E ao contrário do que foi dito por muitos, de milagre esta operação nada teve. Pelo contrário, se algo há a retirar de toda esta história, é que o Divino não teve qualquer papel relevante no processo de decisão política nem na operacionalização do plano. Quanto muito, os mais crentes poderão querer atribuir a causas mais místicas a “aberta” de três dias no tempo que permitiu a “janela de oportunidade” para que a operação avançasse.

 

A verdade é que este sucesso resulta de um processo virtuoso de decisão política, apoiado na única estrutura estatal capaz de dar resposta em ambientes particularmente adversos: os militares. O que aqui esteve em causa foi uma assunção cabal e corajosa do Estado na prossecução das suas funções mais elementares na defesa do seu Povo. Infelizmente, nesse aspeto, Portugal tem sido um triste e lamentável exemplo.

 

O Senhor de Mértola

Alexandre Guerra, 09.07.18

 

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Um verdadeiro líder, daqueles que exercem o poder pela palavra e não pela espada. Viveu sob o lema da compaixão e ele próprio dizia que "há pessoas que possuem erudição, porém, não têm verdadeiro conhecimento quando a utilizam...o que lhes aumenta a crueldade e a cegueira. São essas pessoas eruditas que só falam por falar, para serem ouvidas e vistas". Abdicou de muito, tornou-se num sufista e seguiu as suas convicções com paixão. Homem misterioso, de quem pouco se sabe, mas dizem que foi amigo de Portugal na sua fundação. E, como alguém escreveu, é uma figura quase mítica... uma sombra luminosa que lá estava em cima, de guarda ao castelo, sob um silêncio contemplativo. Na placa da estátua lia-se: Ibn Qasi, Senhor de Mértola.

 

Miss 4th of July

Alexandre Guerra, 04.07.18

 

Esta Quarta-feira é o dia dos Estados Unidos. Não é apenas o dia da comemoração da sua independência, é o dia em que milhões de americanos, brancos ou pretos, hispânicos ou asiáticos, heteros ou homos (e afins), republicanos ou democratas, evangélicos ou ateus, jovens ou velhos, homens ou mulheres, pais ou filhos, ricos ou pobres, nacionais ou imigrantes, celebram uma certa ideia de União, forjada acima dos preconceitos e dos egoísmos individuais, focada num bem maior e no interesse comum. Celebra uma América apaixonada pelos ideais da liberdade e da igualdade de oportunidades. Mas, tal como a música diz, parece que nos últimos tempos há uma relação emocional que se perdeu. Muitos americanos estão crispados, tristes e desiludidos com a sua América de sempre. A "Miss 4th of July" parece ter perdido o brilho e o poder de sedução de outros tempos, mas a sua beleza e o encanto continuam lá, a chama continua lá, não se apagou. A bem dos Estados Unidos e do mundo, cabe agora aos americanos redescobrirem essa relação e reconciliarem-se com a América que a tantos, tanta inspiração deu.