O drama de Alfie transformado numa questão fracturante
James Evans, pai de Alfie, recebido pelo Papa Francisco no Vaticano/Foto:Alfies Army/Facebook
Alfie Evans não chegou a completar dois anos de vida. Morreu no Sábado de manhã no Hospital pediátrico de Alder Hey, em Liverpool, não conseguindo resistir mais a uma doença degenerativa rara no cérebro, que o tinha condenado a um estado semi-vegetativo. Alfie esteve cerca de um ano nesta condição, ligado a uma máquina de suporte vital, sem qualquer sinal de recuperação. Pelo contrário, os vários exames mostraram que quase todo o cérebro do bebé estava destruído. Para os médicos, nenhum tratamento existente poderia reverter o estado de Alfie e assegurar-lhe uma vida minimamente digna. Por isso, tomaram a difícil decisão de desligar a máquina de suporte vital. Mas o amor imenso dos pais pelo filho sobrepôs-se a qualquer evidência científica, com a esperança a imperar sobre a racionalidade. Dificilmente para um pai ou para uma mãe, poderia ser de outra maneira. E embora a lei inglesa dê aos pais o direito de procurarem o melhor tratamento para os seus filhos, não se trata de um princípio absoluto, visto que se uma entidade pública considerar que essa decisão possa implicar riscos significativos para a criança, então esse mesmo direito parental pode ser contestado.
E foi isso que aconteceu a 20 de Fevereiro quando o “High Court” deu razão ao hospital e reconheceu as provas médicas que foram apresentadas, ou seja, de que o pequeno Alfie não tinha salvação e que a ligação à máquina representava um prolongamento artificial da vida, com dor e sofrimento. Os pais do bebé acabaram por recorrer aos tribunais, incluindo o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, e é partir deste momento que a tragédia do pequeno Alfie começa a assumir contornos fracturantes no seio da sociedade inglesa.
No passado dia 23, depois de os pais terem perdido todos os recursos que interpuseram, os médicos desligaram a máquina de suporte vital. Desde então, o debate intensificou-se, com o Papa Francisco e o Estado italiano a prontificarem-se para receber a criança, defendendo que os pais estavam no direito de procurar novos tratamentos para o Alfie. As autoridades inglesas recusaram a possibilidade do bebé viajar para fora do país, apesar das insistentes diligências feitas pelo chefe do Vaticano.
Naturalmente, o lado humanista de Francisco impeliu-o a tomar uma posição sobre este assunto, a envolver-se, a sensibilizar-se, mas enquanto chefe da Igreja Católica teve que, obrigatoriamente, assumir este “combate”, perante o primado da ciência e da lei sobre aquilo que, para um crente, pode ser considerado um acto de fé, o de depositar o destino da vida de uma pessoa nas mãos de Deus. Aliás, Francisco, em jeito de aviso, enunciou um princípio conservador e imutável desde a fundação da Igreja: só Deus pode criar e tirar vida. E nas alas mais conservadoras, do outro lado do Atlântico, Newt Gingrich, num artigo na Fox News (onde podia ser mais?) não perdeu tempo ao afirmar que o pequeno Alfie foi “condenado à morte” pelo “assustador Estado britânico secular”. Neste texto particularmente agressivo, Gingrich, uma voz sempre activa em matérias fracturantes nos EUA, volta a lembrar que por causa das correntes progressistas que instituíram governos seculares de esquerda, os “our God-given rights” estão a dar lugar a “direitos” contratualmente estabelecidos com governos tiranos. Embora seja radical no tom, a verdade é que a posição de Gingrich não é (nem podia ser) muito diferente daquela que Francisco e a Igreja adoptaram no âmbito da problemática em torno do drama de Alfie Evans.
As questões fracturantes, por norma, tendem a polarizar-se em campos extremos, sendo que é possível encontrar argumentos válidos (ou pelo menos compreensíveis) em ambos os lados do debate. É assim há séculos: progressistas vs conservadores, ciência vs religião, lei vs fé, paixão vs razão… Seja como for, a convivência em sociedade vai-se fazendo através de cedências e negociações, mas não nas questões fracturantes. Para quem as vive e as sente, não há meios-termos, não há compromissos possíveis. Consoante o lado em que se está, há o certo ou o errado, há o moral ou o imoral, há o aceitável ou o inaceitável, há o preto ou o branco… Estes temas assumem contornos dramáticos e emocionais, onde há um vencedor e um perdedor, porque, de certa maneira, reflectem formas de estar em sociedade, das quais as pessoas não podem nem querem abdicar. E quando se trata de legislar sobre as mesmas, muitas das vezes é dada liberdade de voto aos legisladores, sob o argumento de se tratarem matérias de “consciência” individual.
Se partirmos de um modelo de análise em que admitimos que, para as correntes mais conservadoras, a política faz-se sob o primado dos valores, da ética e da moral, e para as áreas mais progressistas, o fenómeno é visto sob a perspectiva positivista e científica – aceitando-se o primado da técnica e da razão –, então é possível enquadrar e antecipar determinados debates. Problemáticas, essas, que na Europa nem sempre são tão inflamadas como nos EUA, mas mesmo assim são fracturantes e criam rupturas. Veja-se, por exemplo, em Portugal, onde nos últimos tempos, temas como a eutanásia ou as “barrigas de aluguer” vieram para o topo da agenda política e mediática. Aliás, se considerarmos o pressuposto acima enunciado, é possível prever, com algum grau de certeza, a tendência de voto de alguns dos legisladores quando o assunto da eutanásia descer ao Parlamento. É também muito provável que, à medida que o dia da votação se aproxime, as diferentes correntes na sociedade façam ouvir a sua voz e se manifestem de forma emocional em diferentes campos.
O drama do pequeno Alfie Evans, e todo o debate intenso que suscitou, demonstra que as chamadas questões fracturantes continuam a despertar as convicções mais primárias que existem em cada um de nós, enquanto serea sociais, e que, apesar de uma certa uniformização comportamental nas sociedades ocidentais, há matérias que, pela sua natureza específica, enfatizam apaixonadamente as diferenças dos vários modelos de pensamento.
Texto publicado originalmente no Delito de Opinião.