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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O drama de Alfie transformado numa questão fracturante

Alexandre Guerra, 30.04.18

 

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 James Evans, pai de Alfie, recebido pelo Papa Francisco no Vaticano/Foto:Alfies Army/Facebook

 

Alfie Evans não chegou a completar dois anos de vida. Morreu no Sábado de manhã no Hospital pediátrico de Alder Hey, em Liverpool, não conseguindo resistir mais a uma doença degenerativa rara no cérebro, que o tinha condenado a um estado semi-vegetativo. Alfie esteve cerca de um ano nesta condição, ligado a uma máquina de suporte vital, sem qualquer sinal de recuperação. Pelo contrário, os vários exames mostraram que quase todo o cérebro do bebé estava destruído. Para os médicos, nenhum tratamento existente poderia reverter o estado de Alfie e assegurar-lhe uma vida minimamente digna. Por isso, tomaram a difícil decisão de desligar a máquina de suporte vital. Mas o amor imenso dos pais pelo filho sobrepôs-se a qualquer evidência científica, com a esperança a imperar sobre a racionalidade. Dificilmente para um pai ou para uma mãe, poderia ser de outra maneira. E embora a lei inglesa dê aos pais o direito de procurarem o melhor tratamento para os seus filhos, não se trata de um princípio absoluto, visto que se uma entidade pública considerar que essa decisão possa implicar riscos significativos para a criança, então esse mesmo direito parental pode ser contestado.

 

E foi isso que aconteceu a 20 de Fevereiro quando o “High Court” deu razão ao hospital e reconheceu as provas médicas que foram apresentadas, ou seja, de que o pequeno Alfie não tinha salvação e que a ligação à máquina representava um prolongamento artificial da vida, com dor e sofrimento. Os pais do bebé acabaram por recorrer aos tribunais, incluindo o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, e é partir deste momento que a tragédia do pequeno Alfie começa a assumir contornos fracturantes no seio da sociedade inglesa.

 

No passado dia 23, depois de os pais terem perdido todos os recursos que interpuseram, os médicos desligaram a máquina de suporte vital. Desde então, o debate intensificou-se, com o Papa Francisco e o Estado italiano a prontificarem-se para receber a criança, defendendo que os pais estavam no direito de procurar novos tratamentos para o Alfie. As autoridades inglesas recusaram a possibilidade do bebé viajar para fora do país, apesar das insistentes diligências feitas pelo chefe do Vaticano.

 

Naturalmente, o lado humanista de Francisco impeliu-o a tomar uma posição sobre este assunto, a envolver-se, a sensibilizar-se, mas enquanto chefe da Igreja Católica teve que, obrigatoriamente, assumir este “combate”, perante o primado da ciência e da lei sobre aquilo que, para um crente, pode ser considerado um acto de fé, o de depositar o destino da vida de uma pessoa nas mãos de Deus. Aliás, Francisco, em jeito de aviso, enunciou um princípio conservador e imutável desde a fundação da Igreja: só Deus pode criar e tirar vida. E nas alas mais conservadoras, do outro lado do Atlântico, Newt Gingrich, num artigo na Fox News (onde podia ser mais?) não perdeu tempo ao afirmar que o pequeno Alfie foi “condenado à morte” pelo “assustador Estado britânico secular”. Neste texto particularmente agressivo, Gingrich, uma voz sempre activa em matérias fracturantes nos EUA, volta a lembrar que por causa das correntes progressistas que instituíram governos seculares de esquerda, os “our God-given rights” estão a dar lugar a “direitos” contratualmente estabelecidos com governos tiranos. Embora seja radical no tom, a verdade é que a posição de Gingrich não é (nem podia ser) muito diferente daquela que Francisco e a Igreja adoptaram no âmbito da problemática em torno do drama de Alfie Evans.

 

As questões fracturantes, por norma, tendem a polarizar-se em campos extremos, sendo que é possível encontrar argumentos válidos (ou pelo menos compreensíveis) em ambos os lados do debate. É assim há séculos: progressistas vs conservadores, ciência vs religião, lei vs fé, paixão vs razão… Seja como for, a convivência em sociedade vai-se fazendo através de cedências e negociações, mas não nas questões fracturantes. Para quem as vive e as sente, não há meios-termos, não há compromissos possíveis. Consoante o lado em que se está, há o certo ou o errado, há o moral ou o imoral, há o aceitável ou o inaceitável, há o preto ou o branco… Estes temas assumem contornos dramáticos e emocionais, onde há um vencedor e um perdedor, porque, de certa maneira, reflectem formas de estar em sociedade, das quais as pessoas não podem nem querem abdicar. E quando se trata de legislar sobre as mesmas, muitas das vezes é dada liberdade de voto aos legisladores, sob o argumento de se tratarem matérias de “consciência” individual. 

 

Se partirmos de um modelo de análise em que admitimos que, para as correntes mais conservadoras, a política faz-se sob o primado dos valores, da ética e da moral, e para as áreas mais progressistas, o fenómeno é visto sob a perspectiva positivista e científica – aceitando-se o primado da técnica e da razão –, então é possível enquadrar e antecipar determinados debates. Problemáticas, essas, que na Europa nem sempre são tão inflamadas como nos EUA, mas mesmo assim são fracturantes e criam rupturas. Veja-se, por exemplo, em Portugal, onde nos últimos tempos, temas como a eutanásia ou as “barrigas de aluguer” vieram para o topo da agenda política e mediática. Aliás, se considerarmos o pressuposto acima enunciado, é possível prever, com algum grau de certeza, a tendência de voto de alguns dos legisladores quando o assunto da eutanásia descer ao Parlamento. É também muito provável que, à medida que o dia da votação se aproxime, as diferentes correntes na sociedade façam ouvir a sua voz e se manifestem de forma emocional em diferentes campos.

 

O drama do pequeno Alfie Evans, e todo o debate intenso que suscitou, demonstra que as chamadas questões fracturantes continuam a despertar as convicções mais primárias que existem em cada um de nós, enquanto serea sociais, e que, apesar de uma certa uniformização comportamental nas sociedades ocidentais, há matérias que, pela sua natureza específica, enfatizam apaixonadamente as diferenças dos vários modelos de pensamento.

 

Texto publicado originalmente no Delito de Opinião.

 

The Big Short

Alexandre Guerra, 29.04.18

 

 

Se alguém ainda tiver interesse em perceber alguns dos contornos que levaram à "crise do suprime" de 2008-09, recomenda-se então que veja o filme The Big Short (2015). Baseado num livro best-seller do jornalista Michael Lewis, descrevendo factos e as personagens reais que anteciparam o incumprimento das hipotecas imobiliárias, este filme é um tratado sobre o "lixo" financeiro inimaginável que andava a ser negociado em Wall Street.

 

Neste diálogo, em que Steve Carrel faz de Mark Baum, que na vida real é Steve Eisman, um conhecido gestor de fundos de risco, é elucidativo de como o sistema funcionava. Até para um homem como Baum (Eisman, na verdade), o que se estava a passar era incompreensível. A cena desenvolve-se quando ele decide ir à agência de rating Standard & Poors, para tentar perceber porque razão as obrigações de subprime continuavam com rating AAA, quando todo o mercado hipotecário associado a este tipo de produtos estava a colapsar. A conversa é hilariante, mas ilustrativa do jogo viciado que se jogava (e, de certa forma, ainda se joga) em Wall Street.

 

25 de Abril, a reflexão

Alexandre Guerra, 25.04.18

 

Desde que me lembro das comemorações do 25 de Abril, pouco mais tenho retido na memória do que discursos e proclamações na Assembleia da República e a tradicional descida na Avenida da Liberdade liderada pelo PCP. E há ainda o cravo, esse símbolo luminoso... Seja como for, não vejo em nada disto qualquer problema, nem um suposto "esquecimento" da História, porque as efemérides servem para isso mesmo, para momentos solenes, muitos dos quais perante a indiferença quase total do Povo, sobretudo à medida que o tempo vai passando sobre o acontecimento.

 

Caberá, pois, a cada um de nós celebrar esta data à sua maneira, reinterpretando aquilo ficou conhecido como os "ideais de Abril". Nesse exercício introspectivo, devemos relembrar aqueles que, num dado momento da nossa História, se sacrificaram e arriscaram em prol de um ideal maior. Com humildade e espírito combativo, desafiaram um regime instalado e corporativo. Cada um deles lá tinha as suas convicções, porque, nestas coisas das revoluções, nunca há gente desprovida de interesses ideológicos. Mas, focados num bem maior, esses soldados levaram a sua revolução por diante.

 

Hoje, quarenta e quatro anos volvidos, arriscar-me-ia a dizer que se cada português reflectir sobre aqueles que deviam ser os guardiões do regime, facilmente chegará à conclusão de que a Política deixou de ter actores dignos, a senhora Justiça prostituiu-se a quem lhe dá mais e o Jornalismo definha para o pântano. São três pilares fundamentais para qualquer democracia saudável e que neste momento estão frágeis, em grande parte por culpa própria dos seus actores, nos quais não se vislumbra nem humildade, nem espírito combativo, apenas interesses egoístas.

 

O inimigo da literatura

Alexandre Guerra, 20.04.18

 

Mario Vargas Llosa escreveu há umas semanas, na coluna que assina regularmente no El País, um texto que, sem ser um rasgo de brilhantismo literário, é um statement arrojado e corajoso nos dias que correm, desafiando os cânones de um certo fanatismo moral e ético instalado no pensamento mainstream destas novas sociedades. Sociedade, essas, que parecem ser cada vez mais assépticas nos seus comportamentos sociais e, consequentemente, mais limitadas nas liberdades da criação intelectual e artística. É quase como se estivéssemos perante as tais “nuevas inquisiciones” de que Vargas Llosa fala. As novas “fogueiras”, metamorfoseadas em headlines e redes sociais, para “queimar” aqueles que, na sua arte e intelecto, desafiam o status quo ou o pensamento predominante que é passiva e acriticamente aceite pela maioria (o muitas vezes chamado "politicamente correcto"). Llosa foca-se naquilo que vê como uma autêntica castração da liberdade literária, na qual esta é descontaminada das imoralidades, dos vícios, dos machismos, das perversidades, no fundo, desprovida daquilo que torna os homens pequenos, mesquinhos, vis, é certo, mas igualmente humanos e não meros seres utópicos.

 

Para Vargas Llosa, o “feminismo”, enquanto movimento radical (não todas as “feministas”, como ele próprio refere), é uma fonte destruidora da literatura. Percebe-se a sua ideia, porque a literatura, aquela que vale a pena ler e conforta a alma, tem que ser vista como um refúgio para, através da pena do criador, serem descritas, sem constrangimentos e amarras, todas as aventuras e ideais protagonizados por todos os homens, sejam os bons ou os maus, os virtuosos ou os iníquos, os valentes ou os cobardes, os inteligentes ou os ignorantes, os santos ou os pecadores, os justos ou os injustos... os feministas ou os machistas. A literatura, como qualquer forma de arte, deve ter espaço para contemplar o belo e o horrível, o perfeito e o imperfeito, o harmonioso e o chocante, o aceitável e o inaceitável, o moral e o imoral...

 

O princípio sustentado por Vargas Llosa, de que uma literatura, uma cultura, realmente creativas, "de alto nivel, tiene que tolerar en el campo de las ideas y las formas, disidencias, disonancias y excesos de toda índole”, é um bastião que deve ser preservado com todas as nossas convicções e forças. Não apenas por ser uma condição natural para a criação artística e intelectual, mas, sobretudo, por ser um direito humano inalienável, o da diferença de opinião, o de podermos expressar numa folha, numa tela ou numa pauta o que nos vai na alma, por mais chocante que seja para o próximo. Os tempos estão perigosos no campo das ideias verdadeiramente livres, porque há quem, muitas vezes subtilmente, as queira asfixiar ou condicionar, os mesmos que fazem novos Índex, os mesmos que tendem para o revisionismo com a sua “verdade” e “moral” absolutas. Os mesmos que não hesitarão em “queimar” os livros que repudiam, em vez de aprenderem com eles.

 

Texto publicado originalmente no Delito de Opinião

 

Três questões vitais onde Israel nunca cederá

Alexandre Guerra, 06.04.18

 

O conflito israelo-palestiniano voltou a escalar nos últimos dias. Já morreram 16 pessoas e ficaram feridas quase trezentas. Tem sido assim nas últimas décadas, na verdade, desde a criação do Estado de Israel a 14 de Maio de 1948. Até aqui, nada de novo e muito menos de surpreendente. O que surpreende verdadeiramente é como que, ao fim destes anos todos, políticos e analistas internacionais ainda olham para isto com algum idealismo e não tenham percebido que há três questões vitais sobre as quais Israel nunca cederá, sabendo que no dia em que o fizer, é o dia em que sobrevivência do seu Estado fica em causa. Aqui fica uma explicação muito simplificada:

 

1.A primeira questão prende-se com o acesso à água doce, um recurso escasso naquela região do planeta e que Israel tratou de assegurar. O controlo israelita dos Montes Golã, mais do que a sua importância estratégica enquanto “zona tampão” com a Síria, é vital pelo facto daqueles aquíferos montanhosos alimentarem o Rio Jordão. Toda aquela zona é muito verde e propícia à agricultura. É importante notar que um terço da água consumida em Israel vem dali. Sobre este assunto, muito há para dizer, mas o importante é ter-se a noção de que Israel nunca abdicará de qualquer controlo sobre as fontes de água doce na Cisjordânia, exercendo uma espécie de “hidro-hegemonia”, impedindo que a Autoridade Palestiniana desenvolva infraestruturas de fornecimento de água, criando-se, assim, um regime discriminatório com efeitos perversos.

 

2.A segunda questão vital tem a ver com o estatuto de Jerusalém (na verdade, o problema coloca-se com a Cidade Velha de Jerusalém). Por mais pretensões (e razões) que os palestinianos possam ter, Israel nunca permitirá que a Cidade Velha de Jerusalém fique sob domínio palestiniano e se torne a capital do Estado Palestiniano. De pouco servem as pressões internacionais, o facto é que são as Forças de Segurança Israelitas (IDF) que controlam todas as entradas e saídas do lado oriental da cidade, assim como o acesso à Esplanada das Mesquitas dentro dos muros da histórica cidade. No que diz respeito à defesa do seu território e da sua capital, Israel já deu provas de lidar bastante bem com a anátema de ser uma potência ocupante. E apesar de existir uma certa opinião pública israelita que contesta a política de ocupação hebraica, pouca força tem quando se trata de mudar o curso da História

 

3. A terceira questão vital está directamente relacionada com o famoso direito de retorno de todos os palestinianos refugiados. Este estatuto tem origem na primeira guerra de 1948, sendo depois aplicado a todos os palestinianos que foram sendo obrigados a sair das suas casas e terras no seguimento da ocupação israelita dos territórios da Cisjordânia ao longo das décadas. Nas vésperas do 70º aniversário da criação do Estado de Israel, ou da Nakba ("catástrofe"), na perspectiva palestiniana, milhares de pessoas da Faixa de Gaza iniciaram a “Grande Marcha do Retorno”, uma marcha que marchou pouco, porque, para todos os efeitos, está parada em vários pontos da vedação fronteiriça que separa aquele enclave de Israel. Realisticamente falando, trata-se de um acto mais simbólico do que consequente, sendo que as únicas consequências se traduzem em mortos e feridos. Por mais apelos internacionais e campanhas de sensibilização, Israel nunca irá contemplar com aquele movimento e a marcha não sairá dali, nem hoje, nem nunca. Ou pelo menos, enquanto o Estado hebraico existir. Se, por um lado, os palestinianos reclamam por um direito histórico válido, a posição de Israel é compreensível, porque, a julgar pelos dados oficiais da UNRWA, devem haver mais de cinco milhões de refugiados espalhados pela Cisjordânia, Faixa de Gaza, Jordânia, Líbano, etc. Ora, a partir do momento em que Israel reconhecesse o “direito de retorno”, era o dia em que iniciava uma guerra que nunca iria ganhar: a da demografia.

 

Há uns anos, um ilustre académico palestiniano de Nablus, e que chegou a candidatar-se contra Yasser Arafat nas eleições presidenciais, dizia-me que o grande problema daquele líder histórico foi ter assinado os Acordos de Oslo, porque foram uma armadilha. Explicava-me esse professor e activista que aqueles acordos nunca contemplaram as matérias vitais acima referidas, essenciais para a criação de um verdadeiro Estado palestiniano independente. O problema é que comprometeram a Autoridade Palestiniana num acordo que definia um status quo favorável a Israel.

 

Na altura, achei que poderia seria uma análise algo exagerada, mas hoje não tenho qualquer dúvida de que Israel nunca formalizará um acordo onde tenha que ceder numa destas três questões. Quem acreditar nisso ou apelar a isso não estará seguramente a fazer um favor à paz. Aliás, é de uma ambição desmedida querer alcançar-se paz entre palestinianos e israelitas, quando aquilo que os líderes internacionais deveriam primeiro pensar era na conquista da estabilidade entre dois povos, dois estados, mas isso só se alcança com realismo e algum cinismo, porque, infelizmente, é assim nas relações internacionais e na História das nações.

 

A diplomacia do "vai-se andando"

Alexandre Guerra, 02.04.18

 

Portugal é o país do “vai-se andando”, do “assim-assim”. Pergunta-se a alguém como está e lá vem a invariável resposta: “Vai-se andando” ou “assim-assim”. O português, por natureza, não assume um estado de espírito polarizado, nem que está bem, nem que está mal. Prefere o conforto da zona intermédia, para não ter que gerir expectativas elevadas se estiver tudo bem, evitando, assim, as desilusões, e para não ter que assumir os malefícios se estiver tudo mal, fugindo, deste modo, às depressões. Não se veja nisto um defeito ou uma crítica, até porque esta posição contempla uma certa sabedoria e uma dose de realismo e moderação, ou seja, uma aceitação daquilo que é. Os portugueses, ou os "indígenas", como diria Vasco Pulido Valente, viveram sempre num certo estádio de alheamento de outras realidades, mas a verdade é que parecem ter-se dado bem com isso, escapando às grandes tragédias da História.

 

Vendo bem as coisas, Portugal é assim há quase 900 anos, “vai andando” ao longo da História, gerindo os seus interesses, sem assumir posições dolorosas ou dramáticas, sem escolher campos ou causas. Quando se estuda a história político-diplomática portuguesa compreende-se a razão pela qual o nosso país foi conseguindo navegar nos conturbados tempos da História sem perder a sua independência e nacionalidade, conseguindo feitos admiráveis para um Estado desprovido do poder das armas. Um desses feitos passa precisamente pela capacidade que Portugal tem de levar os seus interesses por diante ou de resistir a ameaças de grandes potências quando foi confrontado com elas. Soube reagir a momentos de crise e resistir contra o inimigo dentro das suas fronteiras.

 

É um dos Estados-nação mais antigos do mundo, lançou a globalização, chegou a dividir o mundo em dois, construiu impérios, obteve riqueza, propagou uma língua global, criou laços emocionais com os povos colonizados como mais nenhuma antiga potência criou. Esteve sempre presente nos grandes concertos europeus e mesmo quando não alinhou claramente junto dos aliados na IIGM, conseguiu sair dessa guerra como um dos “vencedores”. Embora seja membro fundador da NATO, é visto como um país pacífico e um dos mais seguros do mundo. Apesar de participar em inúmeras missões militares contra o terrorismo, está fora do radar do fundamentalismo islâmico. Está totalmente integrado nos principais fóruns do sistema internacional e, às vezes, muitos esquecem que, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, Portugal está entre a elite dos 50 países mais desenvolvidos do mundo.

 

Nos últimos anos, conseguiu feitos absolutamente notáveis ao nível da sua diplomacia, projectando uma imagem externa muito para lá daquilo que é o seu efectivo poder. Promoveu cimeiras históricas, forjou tratados internacionais e até elegeu líderes internacionais. Portugal, neste seu pequeno canto, posiciona-se hoje novamente no topo do mundo. A poderosa Espanha vai olhando para Portugal com alguma inveja da nossa diplomacia. E tudo isto para dizer o quê? Simplesmente, para dizer que em matéria de política externa, a nossa diplomacia merece todo o crédito.

 

É verdade que Portugal não esteve no grupo da frente na resposta dada à Rússia na sequência do envenenamento de um espião duplo e da sua filha em território britânico. À primeira vista, pode ser considerada uma traição à aliança histórica com a Inglaterra, mas, a verdade, é que a diplomacia contém muito mais do que aquilo que é aparentemente público. Desconhece-se se houve conversas prévias entre Lisboa e Londres, desconhece-se qual o enquadramento para Portugal ter agido da forma que agiu. Mas mais importante, e apesar das suspeitas, ainda não foi revelada uma prova concreta que envolva directamente o Kremlin neste acto. Se houvesse, era muito provável que Londres a revelasse aos seus aliados. O que se sabe é que, num segundo momento, as Necessidades optaram por chamar o embaixador português a Lisboa para “consultas”. É um “instrumento” ao serviço da diplomacia e que tem o seu significado. Noutros tempos, aliás, esse era um gesto que podia ser visto como um prenúncio de declaração de guerra.

 

Muitos dirão que Portugal agiu tarde e que já tinha pouca margem para não fazer nada, mas o tempo dirá se a decisão de Lisboa foi acertada ou não. O que também já se percebeu, a julgar por algumas notícias, é o cinismo de algumas chancelarias, em que ao mesmo tempo que expulsam diplomatas cimentam as relações comerciais com Moscovo. Portugal, mais uma vez, optou por um registo “ponderado”, evitando assumir posições polarizadas. Foi alvo de críticas, mas convém não esquecer que ao longo da sua História, não se tem dado nada mal com essa estratégia.