Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

O saber é aquilo que não se esquece

Alexandre Guerra, 30.01.18

 

É com bastante entusiasmo que estou a ler o último livro de Jaime Nogueira Pinto, Bárbaros e Iluminados (D. Quixote). Algumas das passagens relembram-me as aulas dadas pelo autor numa das cadeiras do meu curso de Relações Internacionais, na segunda metade dos anos 90. Ao contrário de muitos dos meus colegas da altura – mais interessados em fazer “ditados” do que era dito –, provavelmente, eu era dos poucos que via naquelas aulas uma fonte de verdadeiro conhecimento, o saber que não esquecemos e que nos ajuda a perceber as forças dinâmicas da História e a antecipar algumas das imprevisibilidades do sistema internacional. Jaime Nogueira Pinto nunca foi do estilo professoral e dizia sempre, para aqueles que estavam mais obcecados em fazer “sebentas”, que datas e conteúdos factuais podiam ser encontrados num qualquer manual. O importante era perceber as motivações dos actores da História e saber interpretar as consequências das suas acções. Neste aspecto, Jaime Nogueira Pinto preferia ter como ponto de partida as histórias e estórias da História para depois lhes dar o devido enquadramento político e ideológico.

 

Foi nestas aulas que comecei a interessar-me seriamente pela relação íntima entre a dimensão literária de Dostoievsky (e outros) e o movimento histórico subsequente. Comecei a entender a obra deste escritor de outra maneira, vendo nela uma amostra sociológica de uma Rússia aburguesada e intelectual asfixiada pelo regime czarista e ansiosa por um admirável mundo novo. Escreve Jaime Nogueira Pinto que “não era de estranhar que as novas gerações intelectuais e técnicas, oriundas das classes médias e da burocracia estatal […]” se atirariam para os “braços dos grupos revolucionários”. Em romances como O IdiotaOs Irmãos Karamazov ou Os Demónios, “Dostoievsky antevira o tipo de pessoas em que [esses burgueses] se transformariam”. Apesar dessa ânsia de mudança, Dostoievsky nunca teve dúvidas quanto aos “riscos do moralismo e do construtivismo utópicos dos intelectuais, fundamentados numa versão optimista da condição humana”. Pelo contrário, toda a literatura de Dostoivesky é marcada pela imperfeição humana, pelo conflito, pela injustiça. O mundo idílico dos utopistas para uma nova Rússia não cabia na visão de Dostoievsky e, para mim, depois daquelas aulas, isso passou a ser tão evidente nos textos daquele escritor.

 

Neste processo revolucionário, Jaime Nogueira Pinto volta ao incontornável Yevgeny Zamyatin, um autor de que ouvi falar pela primeira vez precisamente nas suas aulas. Desde então tornou-se uma espécie de referência bibliográfica em livros ou textos que escrevo. Talvez pela irreverência própria da juventude, Zamyatin tinha o sonho de mudar a sociedade russa, à semelhança de qualquer revolucionário que se prezasse, no entanto, o seu “ímpeto foi decrescendo à medida que crescia a propensão autoritária e controladora do Partido Comunista e a censura das Letras e das Artes”. De eufórico revolucionário, Zamyatin passou a um dos mais críticos do regime de Estaline, tendo sido preso e, mais tarde, com a ajuda dos bons ofícios de Gorky junto de Estaline, conseguiu exilar-se em França. Sem ilusões quanto ao carácter virtuoso da nova sociedade e do “novo homem” soviético, em 1920 publica “a primeira obra utópica, depois da implantação da utopia”. Nós é um livro fascinante, que conta a história, num futuro muito distante, de uma sociedade perfeita, orientada por um Estado único, onde tudo é eficaz e as pessoas vivem felizes. O único problema é que esse poder organizativo é totalitário e tudo assenta numa aparente ilusão e numa “alteração forçada da condição humana”, tal como aconteceu com o bolchevismo nos primeiros anos.

 

Desde as aulas de Jaime Nogueira Pinto, nunca mais esqueci a importância de Zamyatin na tradição literária da “distopia política” do século XX. E, sobretudo, aprendi a olhar para algumas obras, não apenas como ferramentas de enquandramento social e político de fenómenos do sistema internacional, mas também como elementos prospectivos daquilo que possa estar para vir.

 

Texto publicado originalmente no Delito de Opinião

 

Um jantar no Muito Bey

Alexandre Guerra, 29.01.18

 

Jantar no Muito Bey, um (recomendado) restaurante libanês próximo da Praça de São Paulo, em Lisboa, acabou por ser mais do que uma experiência gastronómica, porque foi um pretexto para relembrar e contar histórias antigas dos tempos que passei na Palestina. Desde essa altura que não comia Homus, o célebre alimento árabe, que consiste em grão cozido moído, com mais alguns ingredientes e azeite. É comido com pão típico daquela zona do Médio Oriente e faz parte diariamente das refeições dos árabes do Líbano à Faixa de Gaza. No Muito Bey também é possível saborear molho de iogurte enquanto acompanhamento, um hábito enraízado na gastronomia palestiniana. No entanto, na Cisjordânia e Faixa de Gaza usa-se o iogurte simples e natural, sem qualquer ingrediente, para servir de "molho" no arroz branco ou noutros alimentos. Na carta de vinhos, apenas uma única marca libanesa, mas suficiente para o paladar ter uma sensual amostra de Bekaa Valley. Aquele vale fértil fica a poucas dezenas de quilómetros a leste de Beirute, que é a principal zona agrícola do Líbano, influenciada por condições climatéricas específicas, com o tempero dos ares mediterrânicos. É uma zona conhecida pelas suas vinhas milenares, sendo o Domaine des Tourelles, o vinho que bebi no Muito Bey, uma das principais marcas de Bekaa Valley. Nesta zona habitam sobretudo libaneses xiitas, que convivem com as minorias cristã, sunita e drusa. E embora o ambiente daquele vale seja propício ao turismo e aos bons prazeres da gastronomia, nos últimos anos, milhares de sírios xiitas têm ali procurado refúgio, fugindo à guerra no seu país. Neste momento, o Líbano tem cerca de 1,5 milhões de sírios, muitos deles a viver em campos de refugiados em Bekaa Valley. Em Janeiro de 2015, o Governo libanês já tinha imposto restrições à entrada de mais sírios, no entanto, o sentimento contra aquela população tem aumentado. Ainda há dias, a revista The Nation escrevia que os refugiados sírios no Líbano encontram-se entre aqueles que não os querem e o cenário de regresso ao seu país de origem em guerra. Reflexões de um jantar Muito B(om)ey.

 

Após um ano de retórica, Trump "ataca" a China com máquinas de lavar

Alexandre Guerra, 23.01.18

 

A notícia passou quase despercebida, mas esta Segunda-feira o Presidente Donald Trump tomou a primeira medida concreta que dá corpo à retórica agressiva que tem proferido durante o último ano contra a liberalização do comércio internacional. A retirada dos EUA do Acordo Transpacífico (TPP) e o anúncio da revisão da sua participaçao no NAFTA foram sinais importantes e reveladores do caminho que a nova administração queria seguir, mas não foram mais do que isso, sinais. Pelo menos, até agora. Trump, em plena ressaca da crise do “shutdown” e com os holofotes mediáticos apontados para a guerra entre democratas e republicanos, anunciou que vai aumentar as tarifas de importação para máquinas de lavar e painéis solares. Estas medidas afectam, principalmente, países como a China e a Coreia do Sul e, segundo conselheiros citados pelo New York Times, outros produtos, como aço e alumínio, poderão vir a ser alvo de semelhante medida. Trump parece ter sido sensível ao “lobby” de empresas norte-americanas, como a Whirlpool (máquinas de lavar) ou a Suniva e a SolarWorld Americas (ambas de painéis solares). Os números revelados são muito significativos. Por exemplo, no primeiro ano, as primeiras 1,2 milhões de máquinas importadas sofrerão um acréscimo de 20 por cento nas respectivas tarifas, subindo para 50 por cento sobre todos os equipamentos comprados ao estrangeiro acima daquele número. A partir do terceiro ano, os valores descem para 16 por cento, no primeiro caso, e 40 por cento, no segundo. Quanto aos painéis solares importados, sofrerão um aumento de 30 por cento, um valor que cairá para 15 por cento no quarto ano.

 

Se aquelas empresas têm motivos para celebrarem, o sentimento não parece ser unânime na indústria da energia solar nos EUA, receando que estas medidas tornem o mercado menos competitivo. Também os ambientalistas temem que o aumento dos painéis solares comprometa o investimento da população nestas soluções. Além disso, são evidentes os potenciais efeitos nocivos que estas medidas podem ter no comércio internacional e nas relações de confiança entre os principais actores mundiais. Pequim e Seul já demonstraram o seu desagrado e ameaçam recorrer à OMC, no entanto, não anunciaram, para já, qualquer represália. Trump, passou da retórica aos actos, naquilo que ele considera ser a concretização do seu lema: “America First”. Ora, aquilo que Trump não parece estar a ver é que, num primeiro momento, estas medidas até poderão beneficiar algumas empresas americanas e galvanizar uma parte do eleitorado, sobretudo aquele mais ligada à indústria pesada americana, mas, a médio prazo, os efeitos serão contraproducentes para a economia americana. A História, aliás, tem demonstrado que as economias crescem muito mais quando se abrem ao exterior do que quando se fecham com medidas restritivas. Isso é dos livros, mas sobre essa matéria, Donald Trump não deverá estar muito ciente daquilo que é verdadeiramente benéfico para a América.

 

Texto publicado originalmente no Delito de Opinião

 

A Jordânia não deve ser colocada "entre a espada e a parede"

Alexandre Guerra, 22.01.18

 

merlin_132626039_47fc660b-6df7-4dd0-b94f-405aedf7f

Os "amigos" Mike Pence e Abdallah, no Domingo, em Amã/Khalil Mazraawi/Agence France-Presse — Getty Images  

 

O vice-Presidente dos EUA, Mike Pence, esteve no Domingo em Amã para se reunir com o Rei Abdallah. A Jordânia, quase despercebida no meio do caos geopolítico do Médio Oriente, é uma pedra angular na já muito frágil “ponte” de diálogo entre Washington e a Autoridade Palestiniana. A sua credibilidade advém, em minha opinião, de três factores: a estabilidade política e social do Reino Hachemita, o que faz daquele país um oásis naquelas paragens; Amã tem sido um parceiro moderado e fiável de Washington; a Jordânia é uma espécie de segunda casa para milhares de palestinianos que para ali foram rumando ao longo das décadas de conflito israelo-palestiniano. Este último factor é de extrema importância, porque imagine-se se um dia a Jordânia se lembrasse de “empurrar” para a Cisjordânia os milhares de palestinianos a viverem em campos de refugiados em território jordano. Ou pior, se Amã, cinicamente, incentivasse essas pessoas a regressarem à Cisjordânia de forma voluntária, numa lógica de efectivação do tão polémico e explosivo “direito ao retorno” dos refugiados. É verdade que muitas das gerações mais novas de palestinianos que vivem na Jordânia são cidadãos com nacionalidade jordana, no entanto, estima-se que haja mais de dois milhões de refugiados naquele país, muitos deles a viverem em campos de refugiados e dependentes do apoio das Nações Unidas, uma organização que deverá, entretanto, ver reduzida a contribuição dos Estados Unidos.

 

No que toca ao tabuleiro do conflito israelo-palestiniano, a palavra de Amã conta (e muito) e Washington tem bem essa noção. Pence esteve com Abdallah para o tranquilizar, afirmando que Washington continua comprometida com a reactivação do processo negocial e que continua a apoiar uma solução de dois Estados. O problema é que a decisão recente de Donald Trump em transferir a embaixada norte-americana para Jerusalém foi um acto ao qual a Jordânia não podia ficar indiferente. Embora Pence tenha definido a relação entre os EUA e a Jordânia como dois “amigos”, os relatos na imprensa dão conta de um encontro tenso. Na verdade, não podia ser de outra forma, tendo em conta as posições contraditórias no que à questão de Jerusalém oriental diz respeito.

 

A decisão de Trump veio colocar Amã numa situação delicada. Por um lado, tem de responder à sua população interna, que está a pressionar o Governo para ter uma atitude mais firme contra Israel e EUA, por outro, tem o Acordo de Paz com Israel de 1994 para cumprir. Além disso, a Jordânia é um dos países que mais ajudas recebe dos EUA. Segundo o New York Times, a Jordânia está actualmente a receber anualmente dos cofres de Washington cerca de mil milhões de dólares em assistência financeira. Àquele jornal, o analista político jordano, Amer Sabaileh, referia que Amã tem a perfeita consciência de que não pode ir contra Washington. Talvez, e até é bem possível que a Jordânia possa ser vista por esta administração de Trump como de interesse estratégico menor, contrariando a visão que os anteriores presidentes tiveram de apoiar aquele país, enquanto referencial de estabilidade numa zona de globo onde este atributo é um bem escasso, sobretudo com a anarquia em que se tornou o Iraque e a Síria.

 

É verdade que a Jordânia não pode, de um momento para o outro, meter em causa a aliança que tem com os EUA, mas Donald Trump e Mike Pence precisam de ter a noção de que os seus actos no processo israelo-palestiniano terão sempre consequências na “amizade” entre os dois países. Washington não pode colocar Abdallah “entre a espada e a parede”, porque o monarca hachemita poderá ver-se obrigado a tomar medidas cujas consequências podem ser muito nefastas para a região. Nunca esquecer que os mais de dois milhões de refugiados palestinianos não deixam de ser um “activo” explosivo. Além disso, Washington deve ter sempre em consideração que em matéria de alianças nas relações internacionais, nunca há vazios.

 

Por falar em vender a alma ao Diabo...

Alexandre Guerra, 16.01.18

 

O lendário pacto de Fausto com Mefistófeles, no qual entrega a sua alma ao demónio em troca do domínio pleno da técnica e do conhecimento, tem sido reinterpretado ao longo dos séculos, seja através da literatura, pintura, teatro ou cinema. Goethe imortalizou aquela lenda alemã e, provavelmente, a ele se deve o facto de algumas almas mais perdidas se sentirem tentadas a forjar um acordo com o Diabo para obterem, digamos, certos benefícios especiais.

 

Uma dessas almas terá pertencido a Robert Johnson, o misterioso e célebre músico de blues do Delta do Mississippi e que, em certa medida, foi o precursor do que mais tarde viria a ser o Rock&Roll e o inspirador de guitarristas como Muddy Waters, Jimi Hendrix, Eric Clapton ou Keith Richards, entre tantos outros. Johnson morreu em 1938, com apenas 27 anos, e para a posteridade deixou um conjunto de músicas gravadas em duas sessões no Texas (Novembro de 1936 e Junho de 1937). Essas gravações são uma espécie de Bíblia para quem vive a música, não apenas como entretenimento, mas como paixão, como um dos elementos da vida. Aquelas gravações contêm a alma do Delta, quer o sofrimento sentido nos campos de algodão, quer a euforia electrizante da comunidade negra nas tardes de Sábado naqueles lugarejos poeirentos perdidos nos confins do Mississippi e Lousiana.

 

Johnson tocou como ninguém, como se tivesse sido bafejado por forças do Além. E é aqui que a lenda de Robert Johnson se cruza com a de Fausto. Esta é aliás uma das histórias mais importantes do folclore da zona do Delta. Por volta de 1930, em Robinsonville, Mississippi, Robert Johnson era um “little boy”, que nem tocava mal harmónica, mas era um desastre com a guitarra, diria anos mais tarde Son House, um dos pais do blues do Delta e que conviveu com o jovem músico. Vários relatos históricos dizem, de facto, que sempre que Johnson tocava era um suplício para quem o ouvia. É por esta altura que Johnson deixa Robinsonville durante alguns meses para ir aprimorar a sua técnica com Ike Zimmerman, de quem se dizia que tocava a sua guitarra de forma sobrenatural durante as visitas nocturnas que fazia às campas dos cemitérios.

 

A lenda de Robert Johnson nasce nesta altura, aquando do seu regresso a Robinsonville meses depois, com uma técnica e domínio da guitarra inexplicáveis para tão pouco tempo de aprendizagem. Diz a lenda que nos meses em que esteve fora terá feito um pacto com o Diabo (na figura de Legba) num “crossroads” próximo da plantação de Dockery. Nunca foi possível identificar o local do encontro, havendo várias referências a uma intersecção de estradas em Clarksdale, sabendo-se apenas que terá sido num cruzamento entre quatro caminhos poeirentos no meio do nada. O encontro deu-se à meia-noite, com a chegada de um homem negro e alto ao entroncamento, que pegou na guitarra de Robert Johnson, afinou-a e tocou umas músicas. De seguida, devolve a guitarra a Johnson. Em troca da sua alma, Johnson estava agora em condições de criar e tocar os blues que lhe iriam trazer fama e glória.

 

Esta história perdurou no tempo, tendo o próprio Son House confirmado, numa entrevista mais tarde, a veracidade do pacto firmado entre Johnson e o Diabo. Ao longo dos anos muito se tem especulado sobre o maléfico encontro e as capacidades (quase sobrenaturais) de aprendizagem do guitarrista. A lenda de Robert Johnson continua a fascinar todos aqueles que vêem no blues uma música que, mais do que notas, mostra aquilo que vai na alma do seu intérprete.

 

Esta é uma das cenas do filme "Crossroads" dos anos 80, inspirado precisamente na lenda de Robert Johnson, mas numa versão mais moderna e que se tornou objecto de culto para os amantes do blues e da guitarra. Aqui, Willie Brown, um dos músicos mais importantes do Delta e que tocou com Son House, agora retratado ficticiamente numa idade já avançada, aguarda pelo Diabo no "crossroads" para poder recuperar a sua alma.  

 

Texto publicado originalmente no Delito de Opinião

 

O "jornalismo de causas" não é jornalismo

Alexandre Guerra, 02.01.18

 

Uma conversa recente fez-me recordar uma polémica antiga (embora recorrente de tempos a tempos para quem se interessa por estas coisas) sobre a problemática do “jornalismo de causas”. Lembro-me que há uns bons anos a então editora de Internacional do Público, Margarida Santos Lopes, pessoa com quem tive o privilégio de trabalhar sob sua orientação naquela mesma secção do jornal e que, seguramente, é das jornalistas portuguesas mais conhecedoras da realidade do Médio Oriente, em particular do conflito israelo-palestiniano, se envolveu num debate de ideias com Pacheco Pereira a quem, goste-se ou não, concorde-se ou não com as suas opiniões, não se pode negar a sua capacidade intelectual de pensar. A discussão, que teve como pretexto mais imediato as dinâmicas noticiosas registadas em vários países associadas ao polémico “massacre de Jenin” ou à ideia distorcida de uma “França contra Le Pen (pai)”, deu-se nas páginas do Público em Abril de 2002, com Pacheco Pereira a denunciar aquilo que considerava ser um “jornalismo de causas”, no qual os factos e a função primeira do jornalismo, de relatar os acontecimentos com objectividade e equidistância certas, eram preteridos em função das convicções pessoais, morais, sociais e políticas dos jornalistas.

 

Pacheco Pereira lamentava que as “causas” se tivessem sobreposto aos “factos”, conduzindo, muitas vezes, a omissões deliberadas ou a edições mais “convenientes” por parte dos jornalistas, “orientados” para um determinado “resultado” (expressões minhas). Nada de novo, na verdade, e nada que não tenha continuado a verificar-se em Portugal ao longo dos anos, sendo, aliás, uma prática cada vez mais comum. Basta olhar para o ano que agora terminou e analisar com seriedade algumas dinâmicas noticiosas e facilmente se constatam todos esses males, nalguns casos de forma escandalosa, sem que haja qualquer escrutínio ou consequência. Já na altura, Pacheco Pereira explicava o fenómeno: "Há muitas razões para explicar o domínio do 'jornalismo de causas' em Portugal. Ele é favorecido pela relativa homogeneidade política das redacções - muito mais à esquerda do que a sociedade portuguesa -, por uma estrutura de controlo de qualidade, de "edição", muito frágil ou inexistente, pela falta de cultura geral necessária para escrever sobre política, falta de noções de história e de filosofia política básicas. Mas é acima de tudo justificado pela vontade, que se verifica ser muito mais motivadora do que a de se ser, pura e simplesmente, bom jornalista, de substituir as regras do jornalismo pela intervenção política."

 

De todas as razões acima descritas por Pacheco Pereira, prefiro centrar-me na última questão, a de que o jornalista se destitui da sua missão a partir do momento em que “atropela” as regras e conceitos básicos do jornalismo, muitas vezes para contar a “história” que lhe dá mais “jeito” ou, eventualmente, a que lhe dá mais audiência. Aqui, nem sequer se trata de ser bom ou mau jornalista, trata-se apenas de ser jornalista ou não. Pode apresentar-se como tal e achar que os seus trabalhos são reportagens ou notícias, mas, efectivamente, não são mais do que conteúdos, seguramente não jornalísticos, porque, para isso, o crivo tinha que ser outro.

 

Por vezes, as emoções e os interesses subjectivos são de tal maneira gritantes que aos “jornalistas” em causa só lhes falta colocarem a capa de super-heróis para irem em defesa dos fracos e oprimidos. E quando o fazem, fazem-no sempre de acordo com a sua “lente” ou com a sua visão parcial de um determinado assunto. Ora, por mais meritória que essa missão até possa ser, o jornalismo não é isso. O jornalismo tem outro propósito, que é o de informar as pessoas e colocá-las, o mais próximo possível, da realidade de um determinado assunto. Um jornalista não deve escolher qualquer lado da barricada, não deve tomar partidos, não deve ceder perante preconceitos ou ideias pré-concebidas... Não deve ser o super-herói, não deve ser parte da história que está a relatar! Acima de tudo, o compromisso do jornalista é para com a verdade factual, para com os leitores, os telespectadores ou os ouvintes, no dever de lhes fornecer informação devidamente validada, com todos os ângulos de uma problemática, e não apenas uma visão parcial, para que eles, sim, possam fazer os juízos que bem entenderem.

 

Os defensores e mobilizadores de causas devem existir e são fundamentais em democracia na construção de uma sociedade mais justa e solidária, mas não devem ser protagonizados por jornalistas quando estão no exercício da sua profissão. São missões e papéis diferentes, mas o problema é que em Portugal há jornalistas que deixaram de perceber essa diferença, embarcando em causas, por vezes de forma exacerbada e cega, esquecendo-se de que estão a prestar um mau serviço ao jornalismo.

 

Que 2018 traga bom jornalismo, porque, como ainda esta Terça-feira escrevia o filósofo político Daniel Innerarity no El País, para se poder "reinventar" um país ou fazer alguma mudança no mundo, acima de tudo, é preciso saber interpretar bem a realidade.

 

Texto publicado originalmente no Delito de Opinião

 

Leituras

Alexandre Guerra, 02.01.18

 

Os tradicionais desejos de mudança no Ano Novo é mais um ritual do que propriamente uma determinação que tem as consequências desejadas, é pelo menos desta forma que o filósofo político Daniel Innerarity analisa esta questão em Deseos de año nuevo, no El País. Mas, para aqueles que não se resignam, a melhor forma de mudar o mundo, começa por saber interpretá-lo bem, sobretudo quando se está a falar de mudanças políticas.