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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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O veto da Valónia e o negócio de armas

Alexandre Guerra, 26.10.16

 

A mais recente crise espoletada pela região francófona da Valónia, que se recusa a aceitar o acordo económico e de comércio entre a União Europeia e o Canadá, e que está a deixar os responsáveis europeus em Bruxelas à beira de um ataque de nervos, é paradoxal e tem uma dose considerável de hipocrisia à mistura. E porquê? Primeiro, porque o CETA (Comprehensive Economic and Trade Agreement) -- cuja sua assinatura está prevista para amanhã em Bruxelas, onde se espera a presença do primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, que ainda acredita numa solução de última hora -- é um acordo que poucas implicações terá numa região que representa apenas 10 por cento das trocas comerciais da Bélgica com o Canadá. Ou seja, os restantes 90 por cento dessas trocas são feitas através da Flandres. Segundo, porque, embora o primeiro-ministro da Valónia, Paul Magnette, longe de ser um eurocéptico, se apresente como uma espécie de herói ao resistir à pressão da União Europeia, naquilo que ele considera ser a defesa dos standards europeus em matéria de direitos sociais, dos trabalhadores e do ambiente, a verdade é que muitos vêem nisto uma mera manobra interesseira de hipocrisia. E lembram, como aliás o próprio site Politico europeu sublinha, que a Valónia parece não ter qualquer problema de princípio ou de consciência em vender armas para o Médio Oriente, nomeadamente, para a Arábia Saudita, mas as campainhas de alarme já soam quando está em causa um acordo que, diga-se, poderá beneficiar a União Europeia e prejudicar muito pouco, ou quase nada, a Valónia.

 

De notar que o estado regional da Valónia é detentor a 100 por cento da FN Hersta, uma empresa de armamento que é acusada de pouca transparência na sua actividade. Por exemplo, em 2009, a FN Hersta causou muita polémica, ao vender armas para o falecido líder líbio, Muammar Khadafi.  Além disso, no ano passado, a FN Herstal e outras empresas da Valónia obtiveram licenças para venderam armas no valor de quase mil milhões de euros, o dobro do valor em relação a 2004. E de realçar que 60 por cento dessas vendas foram para a Arábia Saudita. Mas um dos casos mais exemplares da hipocrisia de Paul Magnette, um socialista moderado e especialista em assuntos europeus, tem a ver com aquilo que aconteceu em 2014, quando o parlamento valão aprovou um negócio de armas de 3,2 mil milhões de euros com o Canadá, para a montagem de viaturas militares cujo destino final era a Arábia Saudita.

 

Perante isto, não são de estranhar as críticas que o primeiro-ministro da Flandres fez a Magnette, ao acusá-lo de preferir vender armas aos sauditas do que fazer um acordo de comércio com o Canadá. E embora o Governo belga, liderado pelo francófono Charles Michel, apoie o CETA, a questão é que este é um acordo misto, o que implica que o mesmo, além de ser aprovado pelo Conselho e Parlamento europeu, terá também de ser ratificado pelos Estados-membros. O problema é que a Constituição da Bélgica obriga a que esta ratificação passe pelos parlamentos regionais.

 

Magnette tem explorado ao máximo o sentimento de descontentametno dos valões, que vêem na sua região uma grande crise industrial, o que tem contribuído para a subida do Partido do Trabalho da Bélgica (marxista), sendo que ainda recentemente a Caterpillar anunciou o encerramento da sua fábrica na Valónia, levando ao despedimento de 2200 trabalhadores. Tudo isto está a permitir a Magnette bloquear o CETA, o problema é que, ao que tudo indica, está a fazê-lo pelas razões erradas.

 

O reforço de poder

Alexandre Guerra, 19.10.16

 

Não há dúvida alguma que Vladimir Putin tem reforçado o seu poder interno, como as recentes eleições parlamentares o confirmaram. Mas não é só nas urnas que isso acontece, já que o Presidente russo parece estar a criar uma rede de segurança e de interesses à sua volta, que parece assemelhar-se à lógica que norteava os líderes dos tempos comunistas. Politicamente, tem enfatizado uma retórica anti-Europa e anti-ocidental, ao mesmo tempo que vai intensificando a presença da Rússia nalgumas zonas do globo, como na Europa Oriental (Ucrânia), no Médio Oriente (via Síria) ou no Cáucaso. Por exemplo, o parlamento da Arménia ratificou há dias um acordo com a Rússia para se criar um sistema de defesa anti-míssil para a zona do Cáucaso. Já noutra zona do globo, recentemente vieram notícias a dar conta de que Moscovo pretende reactivar bases militares dos tempos da Guerra Fria em Cuba e no Vietname.

 

Ainda sobre os desafios de Guterres...

Alexandre Guerra, 19.10.16

 

A imprensa internacional é unânime nos elogios ao novo Secretário-Geral da ONU, mas já fez saber que António Guterres não vai ter qualquer período de graça e muito menos uma tarefa facilitada. Como qualquer Secretário-Geral daquela organização, também Guterres terá pela frente inúmeros desafios, começando por alguns conflitos regionais, como o da Síria (vamos ver o que acontece no Mar da China), a questão da migração ou a crescente tensão entre a Rússia e o Ocidente.

 

Dificilmente conseguirá fazer algo quanto à reforma do Conselho de Segurança, no entanto, muito mais há a fazer dentro da própria ONU. E aqui neste ponto o seu papel pode ser particularmente relevante, como, por exemplo, na questão da reforma da própria estrutura burocrática da ONU. Recorde-se que recentemente a secretário-geral adjunto de Ban Ki-moon se demitiu, acusando aquela organização de ser um monstro burocrático. Veja-se este exemplo: a ONU demora em média 213 dias para contratar alguém. Outro assunto que Guterres poderá tentar resolver tem a ver com credibilidade das missões dos capacetes azuis. É um tema que tem de ser, de uma vez por todas, encarado de frente, já que ao longo dos anos têm sido muitos os problemas que têm afectado aquelas missões (insubordinação, abusos sexuais, etc). Ainda há uns dias, um relatório do Center for Civilians Conflict (Civic), baseado em Washington, confirmou aquilo que já se suspeitava, de que vários capacetes azuis da missão do Sudão do Sul, nomeadamente chineses e etíopes, se recusaram a sair do Quartel-General da ONU em Juba, durante acontecimentos violentos em Julho último, para irem proteger os civis que estavam a ser alvo de ataques de soldados governamentais. Segundo relatos, houve mesmo outros capacetes azuis que se retiraram do local do conflito, quando tinham ordens contrárias, para fazer o "engage" nos confrontos que opunham soldados governamentais e forças rebeldes.

 

Acima de tudo, Guterres terá que assumir-se como uma figura de “alto perfil”, contrastando com o “apagado” e quase irrelevante Ban Ki-moon. Só ganhando peso político, é que Guterres conseguirá enfrentar todos estes desafios e conseguir levar por diante soluções por si propostas.

 

Apontamentos históricos

Alexandre Guerra, 16.10.16

 

"A história da Ilíada de Homero trata de individualistas arruaceiros quase exclusivamente envolvidos no combate corpo a corpo, tanto por prestígio como por vantagem militar. Mas o poeta descreveu-os e os seus feitos de uma forma tão convincente que não só convenceu os gregos como deveriam agir quando lutavam uns contra os outros, como as suas palavras também transcenderam o espaço e o tempo para cimentar a instituição da guerra no Ocidente. Acima de tudo, os combatentes eram agressivos, coincidindo as armas simetricamente, primeiro atirando lanças à vez, depois aproximando-se para perfurar com outra lança, depois ainda mais perto para acabar com tudo com as suas espadas -- aquele «que luta em confronto directo» era um frequente e positivo epíteto homérico. Os mais notáveis heróis -- Aquiles, Heitor, Diomedes e Ájax -- estão entre os maiores, os mais ruidosos em gritos de guerra, mais velozes e inevitavelmente blindados heróis de sempre, características estas que seriam profundamente admiradas e influentes no decurso do combate armado ocidental."

 

Robert L. O'Connel in Aníbal, Cartago e o Pesadelo da República Romana (Bertrand, 2012)

 

A primeiríssima coisa que Guterres deve fazer

Alexandre Guerra, 06.10.16

 

Um dos primeiro trabalhos hercúleos de António Guterres, nas suas novas funções de Secretário-Geral das Nações Unidas, não será nenhum daqueles que a imprensa internacional tem avançado. A sua prioridade imediata deverá centrar-se na missão dos capecetes azuis que está destacada no Sudão do Sul. Cinco anos depois da sua independência, celebrada, diga-se, com grande apoio e entusiasmo dos líderes ocidentais, que, nestas coisas, costumam meter o realismo político de lado ao deixarem-se invadir por um idealismo tolo e irresponsável, o Sudão do Sul é hoje mais um Estado à deriva, com um tecido social retalhado e uma economia de rastos. O país está a saque e refém das vontades e caprichos do suposto "pai" da independência, Salva Kiir, um autêntico "cowboy", que, na boa e velha tradição das lideranças africanas, rapidamente revelou as suas tentações interesseiras e despóticas. Em Julho, a violência na capital Juba tornou-se demasiado evidente e a situação bastante ruidosa, obrigando os EUA, através da sua Conselheira de Segurança Nacional, Susan Rice, a pronunciarem-se com aquelas declarações já habituais, que têm tanto de inócuo como de incompetentes:“Esta violência sem sentido e indesculpável – levada a cabo por quem, mais uma vez, coloca os interesses pessoais acima do bem-estar do seu país e do seu povo – coloca em risco tudo aquilo a que o povo sul-sudanês aspirou nos últimos cinco anos”, disse Rice em comunicado.

 

Agora, veio a confirmação daquilo que já há muito era falado, de que a UNMISS, composta por 12500 homens, não está a envidar todos os esforços na prossecução do seu mandato. De acordo com um relatório do Center for Civilians Conflict (Civic), baseado em Washington, vários capacetes azuis, nomeadamente chineses e etíopes, recusaram-se a sair do Quartel-General da ONU em Juba, nos acontecimentos de Julho último, para irem proteger os civis que estavam a ser alvo de ataques de soldados governamentais num outro local da cidade. Foi ordenada à Quick Reaction Force (QRF) da UNMISS que interviesse para proteger os civis, mas não o fez. Entretanto, segundo relatos, houve outros capacetes azuis que se retiraram do local do conflito, quando tinham ordens contrárias para fazer o "engage" nos confrontos que opunham soldados governamentais leais ao Presidente Salva Kiir e forças rebeldes lideradas por Riek Machar. Informa agora este relatório que os soldados chineses chegaram mesmo a deixar para trás as suas armas e material à medida que fugiam para o Quartel-General, local para onde se dirigiram também centenas de civis, que tentaram passar pelo arame farpado em busca de auxílio.

 

Estes acontecimentos, que têm algum histórico no âmbito das missões de "peace keeping", têm ensombrado as Nações Unidas, a sua reputação no terreno, tendo o massacre de Srebrenica, ocorrido em Julho de 1995, e onde morreram quase 8 mil bósnios muçulmanos (bosniaks) às mãos do comandante sérvio Ratko Mladic, sido o exemplo mais dramático dessa debilidade. Relembre-se que Srebrenica seria supostamente uma “safe area” sob a guarda da ONU, mais concretamente dos “capacetes azuis” holandeses. A limitação das “rules of engagement” e a incapacidade da cadeia de comando sob o “badge” da UNPROFOR de alterar um mandato totalmente desajustado à evolução dos acontecimentos no terreno permitiu, de certa forma, que aqueles acontecimentos horrendos tivessem lugar e, por isso, o tribunal não veio responsabilizar os soldados holandeses pela totalidades das mortes. O que se passou agora no Sudão teve consequências menos dramáticas, mas não deixa de assumir contornos muito graves, porque a cadeia de comando da UNMISS não funcionou, desrespeitando o seu mandato e, acima de tudo, colocando em perigo a vida de civis.

 

Além dos temas "quentes" que têm estado no topo da agenda mediática, muitos deles a serem tratados num nível político-diplomático, o que se passa com a missão da ONU no Sudão do Sul implica directamente questões relacionadas com a capacidade de comando e operacional das forças da ONU e, por isso, António Guterres tem a obrigação e os instrumentos para actuar de imediato naquilo que está muita mal na sua própria "casa".  

 

Apontamentos históricos

Alexandre Guerra, 01.10.16

 

"A 2 de Agosto de 216 a.C, um terrível e apocalíptico dia no Sul de Itália, 120 000 homens envolvidos no que acabou por ser uma enorme luta de espadas. No fim da contenda, pelo menos 48 000 romanos estavam mortos ou moribundos [...] Assim foi Canas, um evento celebrado e estudado enquanto paradigma de Aníbal para futuros praticantes das artes militares, a apoteose da vitória decisiva, Roma, por outro lado, perdeu, sofrendo nesse dia mais baixas que os EUA durante toda a guerra no Vietname. [...] Canas culminava uma série de derrotas engendradas pelo próprio Aníbal, personificação do castigo merecido infligido a Roma, que atacaria a Itália por mais 13 anos. [...] Batalha de Canas foi um ponto crucial na história de Roma [...] Os acontecimentos desse mês de Agosto ou começaram ou aceleraram a tendência de empurrar Roma da municipalidade para o império, da oligarquia republicana para a autocracia, da milícia para o Exército profissional, de um reino de donos de terras para um reino de escravos e propriedades. E o talismã de todas estas mudanças foi um sobrevivente sortudo, um jovem tribuno militar chamado Públio Cornélio Cipião, conhecido na história com a alcunha de Africano, visto que ao fim de muitos anos de guerra, Roma ainda precisaria de um general e de um exército suficientemente bons para derrotar Aníbal, e Cipião Africano, com a ajuda do que restava dos refugiados desonrados no campo de batalha, atenderia à chamada e poria tudo em marcha."

 

Robert L. O'Connel in Aníbal, Cartago e o Pesadelo da República Romana (Bertrand, 2012)