1. De sublinhar a elevada taxa de participação, a maior desde 1992 em votações nacionais. Segundo a YouGov, o erro das projecções e a vitória do “Leave” ficou-se a dever a uma taxa de participação acima do expectável em zonas partidárias da saída do Reino Unido da UE.
2. Uma das consequências mais importantes deste referendo vai fazer-se sentir dentro do próprio Reino Unido e não tanto com a União Europeia, e tem a ver com o “choque” geracional. Os resultados são claríssimos em termos de “gap” geracional em relação à distribuição de votos. Confirmou-se aquilo que já era expectável: os mais jovens, na sua grande maioria, votaram para ficar no Reino Unido, enquanto os mais velhos seguiram a tendência oposta. Esta divisão tão evidente poderá vir a criar graves problemas sociais em Inglaterra, já que, mais do que visões diferentes sobre o papel do Reino Unido no mundo, estão em causa visões divergentes em relação à forma como os mais jovens e os mais velhos querem estar em sociedade. Estes mostram-se mais conservadores na manutenção dos seus direitos adquiridos e receosos à imigração. Os mais jovens procuram os seus sonhos numa europa mais unida e integrada. Durante o dia de hoje, seja nas redes sociais ou em artigos de jornais, já é possível sentir a crispação, a frustração e até alguma raiva que é demonstrada por eleitores mais jovens em relação aos mais velhos. Este é um dos muitos comentários que se podem ler, neste caso publicado no Financial Times e citado pelo The Guardian. E esclarecedor: “The younger generation has lost the right to live and work in 27 other countries. We will never know the full extent of lost opportunities, friendships, marriages and experiences we will be denied. Freedom of movement was taken away by our parents, uncles and grandparents in a parting blow to a generation that was already drowning in the debts of its predecessors.”
3. Quanto à Escócia, era de esperar que aquele país fosse aproveitar o momento para agitar a bandeira independentista. E, neste aspecto, a primeira-ministra Nicola Sturgeon não falhou e adoptou um discurso firme, deixando bem claro que o seu país quer fazer parte da União Europeia e falou na possibilidade de um referendo independentista. Foi hábil na forma como usou a desilusão com os resultados na Inglaterra para enfatizar as diferenças entre os dois países. No fundo, o que ela está a fazer é colocar a responsabilidade de um eventual referendo da Escócia nos ombros dos ingleses. Ou seja, a Escócia tentou seguir um caminho conjunto, mas foi a Inglaterra que não quis. É assim que as coisas estão a ser apresentadas pelos escoceses. Com este resultado, deu-se uma alteração muito substancial no contexto da relação entre os dois países sob a coroa da Rainha. A partir daqui, a Escócia tem toda a legitimidade para seguir o seu caminho. E, não é por acaso, que logo a seguir ao discurso de Nicola Sturgeon, o Partido Nacionalista Escocês (SNP) e a organização Mulheres para a Independência (WFI) começaram a receber pedidos de adesão e donativos para ajudar a realizar o referendo. Nicola Sturgeon avisou ainda que vai pedir à Comissão Europeia e aos Estados-membros reuniões com carácter de urgência para manifestar a sua vontade de adesão. Entretanto, várias personalidades e empresas que se têm manifestado sempre contra a independência Escócia, admitem agora rever as suas posições.
4. Mas, talvez aquele que possa ser o problema mais complicado para os líderes ingleses, e que está a ser muito pouco falado, tem a ver com o futuro de Londres, uma realidade completamente à parte do resto do Reino Unido. Na “city”, tal como na Escócia, os resultados foram igualmente expressivos e claros a favor do “Remain”. Ora, isto vai criar uma questão política muito complicada, já que é a “city” o elo de ligação entre o Reino Unido e a União Europeia. Ou seja, na prática, é pela “city” e por tudo o que ela representa, e não tanto pelo “countryside” de Inglaterra, que este assunto ganha tanta relevância histórica. Aliás, Sadiq Khan, que percebeu perfeitamente isso, já passou uma mensagem de tranquilidade a todos os europeus que vivem naquela cidade, dizendo que eles são bem-vindos e que não vão sofrer consequências com o resultado deste referendo. Dirigiu-se também às empresas e investidores, num tom tranquilizador e, de certa forma, deixando a ideia de que se há-de arranjar uma solução que contorne eventuais restrições ao investimento e economia.
5. Perante tudo isto, é particularmente significativo que Nicola Sturgeon e Sadiq Khan tenham falado hoje, algo que poucos analistas têm mencionado, mas que é muito, mas muito importante. Sturgeon disse “que existe claramente uma causa comum” entre a Escócia e Londres. Entretanto, já começou nas redes sociais a campanha #Scotlond, onde precisamente se apela à permanência conjunta da Escócia e de Londres na União Europeia.
6. No que diz respeito à cena política inglesa, estamos agora na fase da mudança de lideranças. A decisão de David Cameron foi acertada, tendo o cuidado de sublinhar que não havia pressa, mas abrindo caminho para uma nova liderança. Naturalmente, que Boris Johnson se coloca na linha dianteira, no entanto, tem sido prudente nas suas declarações e, para já, não deu sinal de disputa pelo poder. Quanto a Jeremy Corby, que nunca foi propriamente um líder muito popular, poderá ter os dias contados à frente dos trabalhistas. A par de Boris Johnson, Nigel Farage, líder do UKIP, é o outro dos grandes vencedores deste referendo.
7. Chamo a atenção para o excelente e oportuno discurso do Governador do Banco de Inglaterra, Mark Carney. Além do conteúdo da sua mensagem, garantindo, entre outras coisas, a liquidez suficiente no sistema financeiro, foi sobretudo o seu tom pausado e firme que mais fez lembrar a estóica e heróica tradição "churchilliana". Aliás, logo a seguir, na CNN, Richard Quest dizia que não se lembrava de ver o Governador do Banco de Inglaterra a reagir desta maneira a um assunto.
8. A posição da União Europeia, ao dar o “recado” a Londres para sair o mais rápido possível, revela, pela primeira vez em muito tempo, alguma unidade e firmeza. Até Martin Schulz concorda que prolongar este processo é prejudicial para os interesses europeus. E perante esta firmeza da UE, que pretende “arrumar” rapidamente o assunto Reino Unido, percebe-se a posição de Boris Johnson, quando agora vem dizer que “não há pressa” neste processo. Pois claro, já que Jonhson não tem interesse que o artigo 50º do Tratado de Lisboa seja rapidamente aplicado, pelo menos enquanto não chegar a primeiro-ministro através de eleições, porque tem a noção de que o que vem aí não será o Paraíso na Terra, e quando se começarem a sentir os efeitos práticos da saída do Reino Unido da UE (hoje já se sentiram com a queda da libra e dos mercados) os adeptos do “Leave” podem esmorecer o seu entusiasmo. O jornal The Independent já referia hoje que o processo acelerado iria ser “painful” para a Inglaterra.
9. Hoje, Angela Merkel tocou no ponto essencial ao dizer que a ideia do projecto europeu é uma ideia de paz. As pessoas esquecem-se de que há setenta anos os povos europeus matavam-se uns aos outros no coração do Velho Continente. É preciso ter bem a noção de que em termos históricos, a Europa nunca conheceu tanta prosperidade e paz como no período do projecto europeu no pós-II GM. Hoje em dia, muita gente esquece essa perspectiva ampla e alargada, sobretudo os líderes europeus, que passam o dia-a-dia em discussões bizantinas, praticamente a contar números e a olhar para relatórios de Excel. Houve uma dimensão política, humanista e social que se perdeu na governança europeia, mas mesmo assim a Europa continua a ser um farol de liberdade e prosperidade.