Foto NATO
Na ressaca da cimeira da NATO, e depois de aprovado o terceiro Conceito Estratégico desde o fim da Guerra Fria (o primeiro em 1991 e o segundo em 1999), talvez ainda seja oportuno deixar aqui (mais) um contributo para o enquadramento do tema.
É inegável o sucesso, a vários níveis, da cimeira de Lisboa. Todo o “guião” foi cumprido, os tratados foram assinados, a liturgia diplomática funcionou e os líderes regressaram aos seus países com “boas novas” para anunciar.
Até mesmo o Presidente americano Barack Obama talvez tenha conseguido convencer os senadores republicanos a ratificarem o Novo Start, depois do seu discurso na conferência de imprensa de encerramento, no qual evocou uma das referências-mor do conservadorismo americano, o falecido Presidente Ronald Reagan, e apelou à responsabilidade dos Estados Unidos face aos compromissos assumidos com a Rússia, nomeadamente com o chefe de Estado, Dimitri Medvedev.
Não obstante ter sido uma cimeira muito importante, e apesar das declarações de entusiasmo e de enfatização do momento, nada disto deve retirar a capacidade crítica na análise ao seu enquadramento histórico.
Os acontecimentos de Lisboa não devem ser vistos como um “novo começo” ou uma revolução nos princípios da Aliança, e muito menos como um ponto de viragem na arquitectura do sistema internacional.
O que aconteceu em Lisboa foi o corolário previsível de um percurso doutrinário que começou com a alteração sistémica das relações internacionais imposta com o final da Guerra Fria e que, para muitos analistas, continua por definir (É preciso lembrar que noutros momentos de ruptura sistémica ao longo da História foram precisos longos anos até que se consolidasse o novo paradigma nas relações internacionais).
Foi o próprio secretário-geral da NATO, Anders Fogh Rasmussen, que na conferência de imprensa de encerramento falou em “reforço” da Aliança para torná-la mais eficaz e comprometida, num registo de continuidade. O “novo começo” de que falou Rasmussen foi em relação à Rússia e teve um carácter mais político, do que propriamente prático ou operacional.
E sobre esta questão é preciso ter em consideração dois factores: o início do processo de aproximação da Rússia à NATO tem quase 20 anos; não confundir o relacionamento da Rússia e da Aliança com o da Rússia e de Washington.
Em alguns momentos de crise não esteve tanto em causa o relacionamento da Rússia com a NATO em termos práticos, mas sim o diálogo político-diplomático entre Moscovo e Washington.
É importante relembrar que o Conselho NATO-Rússia foi estabelecido em 2002, tendo como base um acordo firmado em 1997, fruto de um processo iniciado com o fim da Guerra Fria.
É certo que as crises nos Balcãs nos anos 90 ou o conflito na Geórgia, em 2008, prejudicaram algumas áreas de cooperação entre a NATO e a Rússia, mas nunca colocaram em causa o eixo principal da parceria. Ou seja, o registo de conflito nunca foi tão “quente” entre a Aliança e Moscovo como aquele que se verificou ao nível bilateral entre Washington e Moscovo em diversas ocasiões.
Este “começar de novo” de que Rasmussen fala é na verdade mais dirigido à relação dos Estados Unidos com a Rússia do que propriamente deste país com a NATO.
A parceria entre a Rússia e a NATO, assim com outras áreas inerentes ao funcionamento e missão da Organização, têm tido um enquadramento doutrinário evolutivo, que tem evitado rupturas e momentos de indecisão.
Esta, aliás, tem sido uma das principais virtudes de NATO desde o fim da Guerra Fria. Uma dinâmica que não se tem verificado noutras organizações internacionais, nomeadamente a ONU.
Para quem conheça minimamente a Aliança, sabe que nos seus corredores, seja no NATO Headquarter, em Bruxelas, no SHAPE, em Mons, ou no Joint Headquarter em Oeiras, tem-se discutido e debatido ao longo dos anos possíveis abordagens e paradigmas para a Aliança responder às ameaças difusas e assimétricas, com o contributo de inúmeros militares e civis de diferentes países.
Embora seja no SACT, em Norfolk, que resida a função de elaborar a doutrina da NATO, algo que aliás ficou bem definido no Conceito Estratégico de 1999, a Aliança tem revelado bastante vivacidade em toda a sua estrutura, no que diz respeito à capacidade de produzir ideias e conceitos que possam responder aos desafios emergentes. Uma resposta que já vem de trás e reforçada agora em Lisboa.
Por exemplo, poucas pessoas saberão ou estarão recordadas que a primeira vez que a Força de Resposta Rápida da NATO (NRF) interveio de forma significativa, já num contexto de novos desafios e realidades, foi em Outubro de 2005 no apoio às vítimas do terramoto no Paquistão. E dois meses antes, através de aviões da NRF, foram distribuídos mantimentos doados por Estados-membros e parceiros para as vítimas do furacão Katrina no sul dos Estados Unidos.
E em 2004, elementos da NRF tinham ajudado a proteger os Jogos Olímpicos de Atenas e prestado apoio nas eleições no Afeganistão em Setembro desse ano.
Dotada de interoperacionalidade entre as várias forças militares, com capacidade de mobilização em poucos dias para qualquer cenário em diferentes partes do mundo, a NRF foi uma resposta às novas tipologias de conflitos e de crises.
Algo que a União Europeia tentou implementar através da criação da Força Reacção Rápida (RRF), decidida em Dezembro de 1999, prevendo ter 60 mil homens, 400 navios, e 100 aviões, mas que só em 2007 se tornou formalmente operacional, embora longe de corresponder no terreno ao que foi inicialmente traçado.
Post publicado originalmente no Albergue Espanhol