O sistema anti-míssil que está a ser desenvolvido pelos Estados Unidos e que já provocou uma crise diplomática entre Washington e Moscovo é visto por muitos analistas e especialistas como uma reedição da Iniciativa de Defesa Estratégica (IDE) do então Presidente republicano, Ronald Reagan. Na altura, a "Guerra das Estrelas" visava defender o território americano das armas estratégicas soviéticas, no entanto, a grandeza e a excentricidade do projecto tornariam inviável a sua materialização.
Sensivelmente duas décadas depois foi outra administração republicana a patrocinar um projecto semelhante, na medida em que o actual "escudo" que está a ser construído volta a ter como função detectar e protejer o território americano de vectores intercontinentais. E é aqui precisamente que reside um dos principais problemas do sistema anti-míssil, porque no actual contexto das relações internacionais, e ao contrário do que se passava no sistema bipolar de Guerra Fria, a natureza das ameaças mais prementes assumiu outras características.
Como a própria administração americana admite, os mísseis intercontinentais deixaram de ser a maior ameaça à segurança dos Estados Unidos, sendo que actualmente apenas a Rússia tem real e efectiva capacidade de atingir o território americano com vectores de ogivas múltiplas. A opinião é unânime e consensual, o actual sistema anti-míssil está desajustado às novas realidades, nomeadamente ao terrorismo levado a cabo por entidades transnacionais dotadas de elevada capaciade tecnológica.
Seja como for, o Presidente George W. Bush conseguiu passar da teoria à prática, de tal forma que já se está numa fase de instalação de componentes em países como a Polónia e a República Checa. Porém, o actual projecto está igualmente manchado por uma espécie de "erro original" que se pode traduzir num investimento de milhões de dólares sem que haja um retorno substancial, à imagem do que se passara com a IDE (mas neste caso, Reagan nunca levou por diante a sua ideia): a crença cega na tecnologia.
Bush e Reagan partiram do pressuposto comum quando idealizaram os seus projectos, de que a tecnologia disponível no sector militar permitiria a construção de um sistema eficaz e eficiente de detecção e destruição de mísseis intercontinentais. Ora, dantes tal como hoje, a tecnologia disponível ainda não permite que se assuma com veemência a fiabilidade do sistema anti-míssil em desenvolvimento. Na verdade, são mais as dúvidas alimentadas pelos testes falhados do que as certezas.
Assim, foi sem grande surpresa que Rebecca Slayton, investigadora do Center for International Security and Cooperation da Universidade de Stanford, constatou o fracasso do teste levado a cabo pelo Pentágono em Dezembro de 2004. Além do mais, independentemente dos testes que possam ser realizados (e ao longo de 50 anos eles têm sido feitos no âmbito da indústria dos mísseis), Slayton disse à Bulletin of The Atomic Scientists (Julho/Agosto) que "mesmo que as componentes do hardware e do software do sistema sejam testadas com sucesso, o software que coordena o sistema como um todo nunca pode ser testado em termos operacionais enquanto não houver um ataque verdadeiro".
Esta é a mensagem que os cientistas têm tentado transmitir ao poder político desde os anos 60. Ou seja, a tecnologia não pode dar resposta a todos os problemas, pelo menos enquanto não for confrontada com situações reais. Apesar da administração Bush acreditar que no actual estado de desenvolvimento científico é possível contornar determinados obstáculos, Peter Neumann, cientista do SRI International Computer Science Lab, tem tentado, juntamente com outros colegas, combater a ideia de que a "tecnologia dá resposta a todas as doenças da sociedade, sejam máquinas de voto electrónicas para resolver problemas eleitorais, programas biométricos para identificar terroristas ou a construção de um escudo anti-míssil para travar um ataque nuclear". Alexandre Guerra