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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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Ilegalidades da "guerra ao terrorismo"

Alexandre Guerra, 06.02.07


Quando, no ano passado, o Presidente dos Estados Unidos classificou de “vagas” as Convenções de Genebra enquanto enquadradas numa conjuntura de combate ao terrorismo internacional, George W. Bush assumia, pela primeira vez e de forma inequívoca, uma tendência governativa que, desde os atentados de 11 de Setembro de 2001, vinha sendo delineada pelos estrategos da administração americana.
Homens como Alberto Gonzales – outrora conselheiro jurídico na Casa Branca e agora Procurador-Geral – ou Paul Wolfowitz – antigo sub-secretário de Defesa e tido como um dos neoconservadores mais influentes no primeiro mandato de Bush –, defenderam, desde os primeiros dias de “guerra ao terrorismo”, uma política do tipo os “fins justificam os meios”.

 


Como tal, ficou implícito que membros proeminentes da administração – Gonzales, na Casa Branca, e Wolfowitz, no Pentágono, por exemplo – teriam “carta branca” para traçar estratégias em várias áreas no combate ao terrorismo, nomeadamente naquela que se referia concretamente à perseguição e detenção de suspeitos. Aqui, destaca-se o papel de Gonzales, que terá sido o principal impulsionador da política de interrogatórios a prisioneiros encetada pelos soldados americanos e agentes da CIA em várias prisões, com destaque para o complexo de Abu Ghraib, em Bagdad, e Guantánamo Bay, na ilha de Cuba.

 


Efectivamente, nos primeiros meses de “guerra ao terrorismo”, Gonzales começou a desempenhar um papel fundamental na construção de um quadro jurídico que se pudesse adaptar aos objectivos estratégicos delineados, em grande parte, pelos “neocons” do Pentágono e com o apoio dos “falcões” da Casa Branca, com destaque para o vice-Presidente, Dick Cheney.

 


O secretário de Estado de então, Colin Powell, visto como uma “pomba” no seio da administração, pouco pôde fazer no que respeitou à legislação interna adoptada pelas estruturas envolvidas na captura de suspeitos terroristas: Forças Armadas e CIA. Powell foi um dos membros do Executivo que, desde 2002, defendeu a necessidade de se requalificar os detidos de Guantánamo Bay como “prisioneiros de guerra”, de modo a ser-lhes atribuídos mais direitos. Algo que a administração americana recusou sempre, esquivando-se, assim, às obrigações impostas pelas Convenções de Genebra.


 


Por isso, tem adoptado o termo vago e inócuo de “combatentes inimigos”, que coloca os suspeitos de terrorismo exclusivamente sob a jurisdição de tribunais militares ad hoc, sem a possibilidade de recorrerem aos mecanismos comuns e civis.  Foi sobretudo durante o primeiro mandato do Presidente Bush que se delineou o quadro jurídico que sustentou as actividades levadas cabo por responsáveis americanos, que mais tarde vieram a descambar em escândalos como o de Abu Ghraib, no Iraque, o de Guantánamo Bay, em Cuba, ou mais recentemente, o dos voos da CIA, em território europeu, nos quais alegadamente se fizeram transportar suspeitos de terrorismo. 

 


Nestes três casos, parece evidente estar-se perante graves violações do direito internacional, ao que não ficaram alheias a opinião pública internacional e inúmeras organizações não governamentais quando foram confrontadas com as fotografias dos actos hediondos praticados por soldados americanos e agentes da CIA nas prisões de Abu Ghraib e de Guantánamo. De tal forma, que os tribunais americanos já condenaram 11 soldados pelos “abusos” cometidos no complexo de Bagdad que, entretanto, passou para as mãos das autoridades iraquianas em Setembro último e que, segundo as mesmas, está sem prisioneiros e desactivado.  

 


Bush sofre várias derrotas judiciais, mas insiste nas suas políticas 

 


Foi precisamente quando foram divulgadas as primeiras fotografias de Abu Ghraib, em Abril de 2004, mostrando a humilhação de prisioneiros sujeitos a torturas físicas e sexuais, que Gonzales ficou exposto aos olhos da opinião pública, depois de ser conhecido um polémico memorando da sua autoria a pedido de Bush. Este documento interno, escrito em Janeiro de 2002, era então secreto, e sublinhava que um “novo tipo de guerra” tornava algumas partes das Convenções de Genebra obsoletas e, como tal, era preciso contorná-las. Deste modo, Gonzales foi peremptório ao aconselhar George W. Bush a não aplicar a III Convenção de Genebra relativamente ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra quando estivessem em causa detidos da al-Qaeda ou talibãs. Este memorando abriu caminho a torturas e a detenções arbitrárias executadas no âmbito da “guerra ao terrorismo”. Ainda antes deste documento, Bush assinara em Novembro de 2001 um decreto militar, no qual permitiu a criação de comissões marciais para julgar os terroristas.

 


Em termos objectivos, as forças anti-terroristas norte-americanas passaram a ter “luz verde” da Casa Branca para encetar todo o tipo de operações, interna e externamente, sem que houvesse um controlo do Congresso ou de qualquer outra instância. O resultado foi evidente: os casos de Abu Ghraib, Guantánamo e dos voos secretos da CIA.

 


Mas, o documento de Gonzales foi ainda mais longe, ao sublinhar que os tribunais civis, mesmo os de carácter federal, não teriam qualquer jurisdição sobre os detidos por suspeição de terrorismo. No Verão de 2004, o Supremo Tribunal acabaria por se pronunciar no sentido de permitir que os presos pudessem recorrer aos tribunais federais, uma decisão com impacto político mas que acabaria por não ter grandes resultados práticos. Já em Junho do ano passado, o Supremo decidiu que a administração não tinha legitimidade para sujeitar os suspeitos terroristas ao julgamento das comissões marciais. Porém, não foi estabelecido qualquer prazo para a aplicabilidade dessa medida, além de que o Congresso viabilizou recentemente o recurso a esse tipo de tribunais militares. 

 


Programa de espionagem da NSA viola Constituição americana  

 


Numa nação erigida na base de conceitos como “liberty” e “freedom”, nada poderia chocar mais o cidadão americano do que o memorando de Gonzales, uma vez que viola alguns dos princípios basilares pelos quais se rege a sua sociedade. Efectivamente, as imagens e relatos de Abu Grahib e de Guantánamo chocaram a América.

 


A Amnistia Internacional (AI) classificou a prisão de Guantánamo como um “buraco negro legal”, no qual ainda estão detidas centenas de pessoas de 35 nacionalidades, sem acusação formada e acesso a qualquer tribunal civil, advogado ou assistência jurídica. Ou seja, sem o estatuo de “habeas corpus”, que permite a cada pessoa que se encontre presa contestar legalmente a sua situação. Relembre-se que este princípio foi um dos pilares do sistema judicial dos Estados Unidos desde a aprovação da Constituição em 1787.

 


A AI não hesita ao frisar que Guantánamo se transformou no “símbolo da injustiça e do abuso” da administração Bush no combate ao terrorismo e é por isso que apela ao seu encerramento. Também as Nações Unidas lamentam que aquele complexo ainda não tenha sido fechado.Porém, os objectivos propostos pela Casa Branca visando eliminar a ameaça da al-Qaeda e a necessidade de se obter informações sensíveis que ajudem nesse propósito acabaram por dividir a opinião pública americana nesta matéria, e aliviar a pressão sobre o Executivo.

 


Mas, as políticas anti-terroristas encetadas pela administração acabaram por sofrer dois rudes golpes: a descoberta do programa massivo de escutas telefónicas a cidadãos norte-americanos levado a cabo pela National Security Agency (NSA); e a ocorrência de voos secretos da CIA sobre território europeu. Se, no primeiro caso, está em causa uma clara violação dos direitos e liberdades individuais dos cidadãos americanos, no segundo, poder-se-á estar perante a marginalização do direito internacional, algo que vários governos europeus já fizeram saber que não iriam tolerar.  O programa de espionagem telefónica e electrónica (e-mails) em solo americano foi trazido a público pelos media em Maio de 2006, gerando de imediato uma controvérsia acesa por violar claramente as leis do Congresso e a Constituição, mais concretamente a 4º Emenda daquele texto.

 


A NSA, agindo sob a cobertura de várias directivas presidenciais desde Outubro de 2001, contornou os mandados judiciais que a lei impõe para escutas deste tipo, violando a privacidade de milhares de cidadãos nacionais e, consequentemente, originando duras críticas contra a administração. Esta, no entanto, não se intimidou, tendo o Presidente Bush reiterado a sua confiança nas práticas da NSA, justificando-se com a defesa dos seus concidadãos face a eventuais ataques terroristas. No entanto, depois da vitória democrata nas eleições intercalares de Novembro, nas quais os republicanos foram remetidos para as bancadas da minoria nas duas câmaras do Congresso, a Casa Branca foi obrigada a recuar nalgumas matérias mais sensíveis. Assim, em Janeiro a administração norte-americana abdicou do seu polémico programa de espionagem da NSA, pelo menos nos moldes em que estava a ser conduzido.

 


Bush comprometeu-se a voltar a respeitar o Intelligence Surveillence Act de 1978, instrumento obtido com o consenso entre agências de informações e movimentos civis e que tem regido ao longo das várias administrações o processo de recolha de informação junto dos cidadãos. De acordo com este mecanismo, só é possível espiar-se ou recolher informação em território americano com a autorização de um juiz federal que integre o tribunal especial para os assuntos de intelligence e espionagem. “Durante mais de duas décadas, este compromisso resultou, e as acções de espionagem do Governo só eram executadas sob ordem do tribunal. Mas, depois dos ataques do 11 de Setembro, a Casa Branca decidiu que o processo de aprovação do tribunal era muito lento e pesado para combater a ameaça terrorista e que o Presidente tinhas os poderes para contornar o tribunal e ordenar a espionagem sob a sua autoridade como comandante-chefe”, lia-se numa análise do “New York Times” do passado mês de Janeiro.

 


A Casa Branca mostra-se agora disponível para respeitar novamente aquele instrumento legal. Mas, as cedências não vão muito mais longe.Em Setembro, a Casa Branca submeteu ao Congresso uma proposta de lei que visava precisamente “legalizar” todas as medidas anti-terroristas que a administração adoptou. Este novo pacote legislativo pretendia igualmente “colmatar as falhas” das III Convenções de Genebra relativamente ao Tratamento de Prisioneiros de Guerra.

 


Apesar do Congresso ter imposto algumas restrições, a Casa Branca conseguiu a aprovação da proposta de lei, permitindo que a CIA possa continuar a utilizar “métodos alternativos de interrogatório” em prisioneiros. A nova legislação possibilita ainda que a administração volte a utilizar os tribunais militares já este ano, ignorando assim a decisão do Supremo Tribunal de Junho de 2006.  

 


A “rede global” da CIA 

 


A questão dos alegados voos secretos da CIA sobre território europeu, nos quais se fizeram transportar possíveis suspeitos de terrorismo para serem sujeitos a tortura, tem contornos mais complexos, pelo menos no que respeita ao patamar jurídico. Politicamente, é também uma situação constrangedora para Washington, mas não tanto como para alguns governos europeus. Este problema adensou-se depois de Bush ter admitido a existência de prisões secretas em várias partes do mundo, embora ressalvando que os prisioneiros tivessem sido tratados humanamente, em conformidade com as normas das Convenções de Genebra.   A verdade é que o discurso do Presidente americano, proferido a 6 de Setembro do ano passado, não tranquilizou as sociedades europeias. Pelo contrário, espoletou reacções veementes por parte dos eurodeputados em Estrasburgo, que quiseram ver esclarecidas várias questões relativamente às prisões e voos secretos da CIA.

 


A comissão de inquérito criada pelo Parlamento Europeu, liderada pelo eurodeputado português Carlos Coelho, pretendeu clarificar o papel que os respectivos governos nacionais desempenharam nesta questão. Apesar dos vários Executivos europeus terem negado qualquer prática ilegal nos seus territórios, as conclusões daquela comissão apontaram em sentido contrário, ao constatarem ser “altamente improvável” que os governantes não tivessem tido conhecimento dos voos da CIA sobre os seus territórios. Esta comissão apelou ainda para que a lista das prisões secretas da CIA fosse tornada pública. Embora o Presidente Bush não tenha adiantado até ao momento qualquer informação, o Parlamento Europeu suspeita que algumas delas estejam situadas no Velho Continente.

 


Também o Conselho da Europa foi peremptório nesta matéria, ao acusar os Governos de terem colaborado (directa ou indirectamente) com a CIA. Relembre-se que o Conselho da Europa chegou a esta conclusão, depois de ter criado uma comissão de inquérito, na sequência das notícias divulgadas em 2005 pelo jornal “Washington Post” e pela organização Human Rights Watch, nas quais se revelou a existência de centros de detenção da CIA em 14 país pertencentes àquela instância internacional. As conclusões da investigação, iniciada a 1 de Novembro do mesmo ano e liderada pelo suíço Dick Marty, foram apresentadas em Junho de 2006, sendo claras ao denunciar uma “rede global” da CIA para o seu programa de detenção e interrogatórios de suspeitos de terrorismo, que engloba “vários pontos de aterragem” ligados entre si com aviões civis ao serviço da “secreta” norte-americana. Para Dick Marty, esta “rede global” estendeu-se à Europa, onde são identificados vários aeroportos de trânsito, entre os quais a base das Lajes.

 


A acrescer a isto, “existem forte indícios de provas convergentes, coerentes que apontam para um sistema de ‘recolocação’ (de presos) e de ‘outsorcing’ de tortura”. Além de que, o relatório é peremptório ao afirmar que alguns países-membros do Conselho da Europa terão tido conhecimento destas práticas, quer através dos seus governos, quer através dos seus serviços secretos, assumindo, eventualmente, uma atitude de colaboração explícita, ou simplesmente “fechando os olhos” ao trânsito dos aviões nos seus territórios. Como tal, o que poderá estar em causa é uma afronta às “tradição e sensibilidade europeias” e a violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, assim como da Convenção para a Prevenção da Tortura, instrumentos de direito internacional, dos quais o Conselho da Europa é o seu bastião. 

 


Perante este cenário, a comissão do Parlamento Europeu tentou posteriormente apurar a verdade dos factos, pedindo esclarecimentos a vários governos europeus, incluindo o português. Todos os executivos visados rejeitaram qualquer cumplicidade em actividades ilegais, tendo inclusive o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, afirmado que não teve conhecimento ou dado autorização de sobrevoo a qualquer avião da CIA enquanto foi primeiro-ministro de Portugal entre 2002 e 2004. 

 


O actual Governo português, liderado por José Sócrates, foi parco nas declarações sobre esta matéria. Sabe-se apenas que o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Freitas do Amaral, escreveu uma carta à eurodeputada Ana Gomes, na qual era levantada a possibilidade de terem passado voos da CIA por território português. Voos esses que Luís Amado, sucessor de Freitas do Amaral nas Necessidades, entretanto, também admitiu.


 A questão premente que agora se coloca é a seguinte: tendo a comissão temporária do Parlamento Europeu corroborado as conclusões do relatório de Dick Marty, é legítimo clarificar a possibilidade dos governos em causa terem tido conhecimento do sobrevoo de aviões da CIA sobre os seus territórios fazendo transportar suspeitos de terrorismo para serem alvo de interrogatórios ilegais. Seja qual for a resposta, os governantes ficarão numa situação fragilizada.

Por um lado, ao admitirem que tinham de facto conhecimento dessas práticas, estarão a assumir a colaboração explícita com os Estados Unidos e, como tal, a violação do direito internacional. Por outro lado, se afirmarem que não tiveram conhecimento de tais voos, é o mesmo que estarem a dizer que não controlam o que se passa no seu próprio território. Em ambos os casos, os líderes dos países envolvidos na tal “rede global” da CIA sairão sempre a perder. Alexandre Guerra