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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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O dilema da NATO: ajudar os "amigos" ou confrontar a Rússia?

Alexandre Guerra, 04.12.18

 

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Vladimir Putin de visita à Crimeia dois dias antes dos incidentes no Estreito de Kerch/Foto: Reuters

 

As notícias desta Terça-feira dão conta de um certo desanuviamento no Mar de Azov, tendo as autoridades ucranianas informado que os portos de Berdyansk e Mariupol foram “parcialmente desbloqueados” e que os navios mercantes já estão a circular através do Estreito de Kerch. Estas notícias surgem no mesmo dia em que a Ucrânia, através do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Pavlo Klimkin, esteve reunido em Bruxelas com os seus homólogos da NATO, na esperança de obter o seu apoio militar, nomeadamente ao nível naval. No entanto, a organização liderada por Jens Stoltenberg não está disponível para ir além daquilo que neste momento está a fazer no Mar Negro, ou seja, um papel de mera monitorização.

 

E, na verdade, a NATO não tem condições políticas para assumir uma acção mais relevante naquela região, não havendo uma vontade unânime sólida por parte dos aliados em confrontar a Rússia. Além disso, qualquer atitude mais musculada por parte da NATO poderia provocar uma escalada num conflito que, para já, permanece num registo de baixa intensidade. Em termos de realismo político, e nas actuais circunstâncias, não é do interesse da NATO e da Rússia que a situação se descontrole.

 

De certa maneira, desde que a Rússia anexou a Crimeia em 2014, zona que historicamente considerou sempre sua, ficou óbvio que, numa perspectiva de “realpolitik”, Moscovo não teria intenção de abandonar aquela península, tendo a Europa e os EUA acabado por aceitar tacitamente essa redefinição de fronteiras na região do Mar Negro. A tal ponto que o Kremlin não perdeu tempo na construção de uma ponte a ligar a Rússia continental à península da Crimeia.

 

E perante isto, como referia Jonathan Marcus, correspondente diplomático da BBC World, a NATO tem um dilema, que é saber como é que irá agradar aos seus “amigos” do Mar Negro sem hostilizar a Rússia. Sabendo-se que, para Moscovo, e atendendo ao seu comportamento histórico na gestão deste tipo de conflito, é de todo interesse que aquela situação “congele”.

 

Uma coisa é certa, a história da Guerra Fria demonstrou que, em matéria de estabilidade sistémica, optou-se quase sempre por sacrificar determinadas “amizades” em prol das necessidades cínicas do equilíbrio de poder entre as potências. Resta agora saber se a NATO, em nome da estabilidade entre blocos, aceita as novas fronteiras e regras impostas pela Rússia ou se assume uma posição de confronto aos avanços de Moscovo no Mar Negro.

 

A diplomacia do "vai-se andando"

Alexandre Guerra, 02.04.18

 

Portugal é o país do “vai-se andando”, do “assim-assim”. Pergunta-se a alguém como está e lá vem a invariável resposta: “Vai-se andando” ou “assim-assim”. O português, por natureza, não assume um estado de espírito polarizado, nem que está bem, nem que está mal. Prefere o conforto da zona intermédia, para não ter que gerir expectativas elevadas se estiver tudo bem, evitando, assim, as desilusões, e para não ter que assumir os malefícios se estiver tudo mal, fugindo, deste modo, às depressões. Não se veja nisto um defeito ou uma crítica, até porque esta posição contempla uma certa sabedoria e uma dose de realismo e moderação, ou seja, uma aceitação daquilo que é. Os portugueses, ou os "indígenas", como diria Vasco Pulido Valente, viveram sempre num certo estádio de alheamento de outras realidades, mas a verdade é que parecem ter-se dado bem com isso, escapando às grandes tragédias da História.

 

Vendo bem as coisas, Portugal é assim há quase 900 anos, “vai andando” ao longo da História, gerindo os seus interesses, sem assumir posições dolorosas ou dramáticas, sem escolher campos ou causas. Quando se estuda a história político-diplomática portuguesa compreende-se a razão pela qual o nosso país foi conseguindo navegar nos conturbados tempos da História sem perder a sua independência e nacionalidade, conseguindo feitos admiráveis para um Estado desprovido do poder das armas. Um desses feitos passa precisamente pela capacidade que Portugal tem de levar os seus interesses por diante ou de resistir a ameaças de grandes potências quando foi confrontado com elas. Soube reagir a momentos de crise e resistir contra o inimigo dentro das suas fronteiras.

 

É um dos Estados-nação mais antigos do mundo, lançou a globalização, chegou a dividir o mundo em dois, construiu impérios, obteve riqueza, propagou uma língua global, criou laços emocionais com os povos colonizados como mais nenhuma antiga potência criou. Esteve sempre presente nos grandes concertos europeus e mesmo quando não alinhou claramente junto dos aliados na IIGM, conseguiu sair dessa guerra como um dos “vencedores”. Embora seja membro fundador da NATO, é visto como um país pacífico e um dos mais seguros do mundo. Apesar de participar em inúmeras missões militares contra o terrorismo, está fora do radar do fundamentalismo islâmico. Está totalmente integrado nos principais fóruns do sistema internacional e, às vezes, muitos esquecem que, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, Portugal está entre a elite dos 50 países mais desenvolvidos do mundo.

 

Nos últimos anos, conseguiu feitos absolutamente notáveis ao nível da sua diplomacia, projectando uma imagem externa muito para lá daquilo que é o seu efectivo poder. Promoveu cimeiras históricas, forjou tratados internacionais e até elegeu líderes internacionais. Portugal, neste seu pequeno canto, posiciona-se hoje novamente no topo do mundo. A poderosa Espanha vai olhando para Portugal com alguma inveja da nossa diplomacia. E tudo isto para dizer o quê? Simplesmente, para dizer que em matéria de política externa, a nossa diplomacia merece todo o crédito.

 

É verdade que Portugal não esteve no grupo da frente na resposta dada à Rússia na sequência do envenenamento de um espião duplo e da sua filha em território britânico. À primeira vista, pode ser considerada uma traição à aliança histórica com a Inglaterra, mas, a verdade, é que a diplomacia contém muito mais do que aquilo que é aparentemente público. Desconhece-se se houve conversas prévias entre Lisboa e Londres, desconhece-se qual o enquadramento para Portugal ter agido da forma que agiu. Mas mais importante, e apesar das suspeitas, ainda não foi revelada uma prova concreta que envolva directamente o Kremlin neste acto. Se houvesse, era muito provável que Londres a revelasse aos seus aliados. O que se sabe é que, num segundo momento, as Necessidades optaram por chamar o embaixador português a Lisboa para “consultas”. É um “instrumento” ao serviço da diplomacia e que tem o seu significado. Noutros tempos, aliás, esse era um gesto que podia ser visto como um prenúncio de declaração de guerra.

 

Muitos dirão que Portugal agiu tarde e que já tinha pouca margem para não fazer nada, mas o tempo dirá se a decisão de Lisboa foi acertada ou não. O que também já se percebeu, a julgar por algumas notícias, é o cinismo de algumas chancelarias, em que ao mesmo tempo que expulsam diplomatas cimentam as relações comerciais com Moscovo. Portugal, mais uma vez, optou por um registo “ponderado”, evitando assumir posições polarizadas. Foi alvo de críticas, mas convém não esquecer que ao longo da sua História, não se tem dado nada mal com essa estratégia.

 

Rússia, uma longa história de autoritarismo

Alexandre Guerra, 19.03.18

 

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Foto: Kremlin Press Service 

 

A Rússia, já nos tempos da sua formação enquanto reino, sempre foi uma região muito especial no que à dinâmica entre governantes e governados dizia respeito. Para quem conhece e segue a história das lideranças russas, constatará uma tendência crónica para o autoritarismo (já para não falar em totalitarismo, nalguns períodos). É uma evidência histórica contra a qual nada há a fazer, apesar das ilusões que muitos ainda alimentam de que a democracia ocidental prevalecerá sobre todos os outros modelos de governação. Para já, pelo menos, isso não vai acontecer e o que se passou nalguns países assolados pela "Primavera Árabe" é um exemplo de que o anúncio da vitória da democracia liberal sobre todas as demais formas de Governo foi manifestamente exagerado. Ou seja, perante a oportunidade de opção, a democracia não tem sido suficientemente cativante para parte substancial dessas sociedades. Noutros países, é mesmo a maioria dos cidadãos que nem sequer considera os valores e princípios democráticos como algo essencial nas suas vidas. É como se fosse algo genético, a aceitação pelo povo de estilos mais autoritários dos seus governantes. A Rússia é, hoje, talvez o melhor exemplo dessa forma de estar. E ao contrário de países como a Coreia do Norte – ou até mesmo a Bielorrússia e a China –, no caso da Rússia já não se pode utilizar o argumento de que a população não tem acesso à informação independente ou que a liberdade de opinião está totalmente estrangulada – embora ao nível da crítica política esteja muito restrita, como têm sido exemplares nos últimos anos, alguns casos de pressão ou de perseguição política. 

 

Na Rússia, há claramente uma opção consciente por um estilo de governação e de liderança mais musculada. Os russos sempre aceitaram bem líderes autoritários, mas nunca foram particularmente entusiastas com governantes mais ocidentalizados, tais como Mikhail Gorbachev – por muitos russos, considerado um traidor – ou Boris Yeltsin – que por outros nunca foi levado muito a sério. A chegada de um homem como Vladimir Putin ao Kremlin foi vista pelos russos como o regresso dos gloriosos líderes dos tempos do império soviético. Hoje, quando a Rússia está diplomaticamente mais isolada, quando atravessa economicamente momentos muito complicados, quando tem milhares de soldados “plantados” nalguns conflitos fronteiriços (alguns "congelados", outros mais "quentes"),Vladimir Putin consegue ter um nível de popularidade genuinamento alto. Mesmo admitindo que os resultados das eleições de Domingo possam estar inflacionados, Putin goza de um enorme apoio popular, como, aliás, sempre gozou. 

 

É importante notar que os russos nunca experimentaram outro tipo de regime e jamais se abriram aos seus vizinhos europeus. Esta vivência foi acumulando um pessimismo reinante, ensombrando qualquer perspectiva sobre o futuro da sociedade. Uma realidade que se tornou particularmente evidente nos anos de Boris Yeltsin, na ressaca da queda do império e na emergência de um clima de anarquia e caos. De um momento para o outro, os russos viam-se sem a tradicional liderança forte e absoluta, assistindo à deterioração do império e de toda a estrutura social sem compensações evidentes. Democracia e liberdade, tal como os ocidentais as entendem, são conceitos estranhos àquela sociedade. Há sensivelmente 13 anos, Richard Pipes, hoje com 94 anos, conceituado especialista da história russa e antigo director do departamento de assuntos soviéticos da Europa de Leste no Conselho de Segurança Nacional em 1981-82, escrevia um extraordinário artigo na “Foreign Affairs”, especificando o que de facto os russos queriam para a sua sociedade. Uma das ideias-chave defendidas pelo autor referia que os russos apoiavam o estilo “antiliberdade e antidemocrático” de Putin, sustentando, com estudos de opinião, que apenas um em cada dez russos se interessava por “liberdades democráticas e direitos civis”. Na verdade, estes e outros conceitos, como propriedade privada e justiça pública, nunca fizeram parte da tradição russa. Por exemplo, apenas cerca de um quarto da população russa considerava que a propriedade privada era importante como direito humano. Isto apenas há 13 anos, note-se.

 

Pipes sustentava as suas afirmações em estudos levados a cabo pelo All-Russian Center for Study of Public Opinion e pelo Institute of Complex Social Studies da Academia de Ciências Russa. De acordo com os dados obtidos na altura, 78 por cento dos russos considerava que a “democracia era uma fachada para um governo controlado pelos ricos e grupos poderosos". Apenas 22 por cento expressava preferência pela democracia, contra os 53 por cento que se lhe opunham. Sobre os eventuais benefícios das eleições multipartidárias, 52 por cento dos russos considerava que estas eram prejudiciais, sendo apenas 15 por cento a percentagem de russos que as viam como positivas. Numa outra sondagem da mesma altura, do Centro de Estudos Sociológicos da Universidade de Moscovo, citada por Pipes, 82 por cento dos russos estavam convictos de que não tinham qualquer influência no Governo nacional, e 78 por cento acrescentava mesmo que não influenciava os desígnios do governo local. Mais interessante, mas pouco surpreendente, era a escolha feita entre “liberdade” e “ordem”. Oitenta e oito por cento dos inquiridos na província de Voronezh manifestaram preferência pela “ordem”. Apenas 11 por cento afirmaram não estar dispostos a abdicar das suas liberdades de expressão e de imprensa em troca de estabilidade. Na verdade, um outro estudo, conduzido no Inverno de 2003-04, pela Romir Monitoring, sustentava que 76 por cento dos russos eram favoráveis à reposição da censura nos “media”.

 

Estes números reflectiam uma avidez, por parte do povo russo, de autoritarismo governativo. Uma exigência apreendida pelos políticos que, segundo Pipes, se manifestou nas eleições para a Duma, em Dezembro de 2003, nas quais nenhum dos partidos mais votados utilizou, sequer por uma vez, a palavra “liberdade”. Um dos outros anseios do povo russo prendia-se com o poder da sua nação, sendo que 78 por cento insistia que a Rússia tinha de ser “uma grande potência”. A questão é saber se, 13 anos depois destas observações feitas por Pipes, a percepção do povo russo em relação aos seus líderes e ao modelo de governação se alterou? A julgar por aquilo que se vai vendo, lendo, e pelos vários estudos de opinião que se vão conhecendo, provavelmente, não terá mudado assim tanto. Trata-se de um território imenso que, desde o século XIX, tem tentado manter o estatuto de potência entre as potências. Na altura em que tentava expandir a sua presença sobre a Sublime Porta e os Balcãs, a Rússia era tida como “instável e intrometida” nos interesses que se jogavam no Velho Continente. Os líderes europeus olhavam-na com desconfiança, tentando ler à luz da “realpolitik” o comportamento de Moscovo, tal como hoje, os interlocutores de Putin, desprovidos de qualquer abordagem idealista, terão de compreender os intentos e as sensibilidades do homem forte do Kremlin. Já o famoso Metternich, chanceler do império austro-húngaro, dizia que “o problema posto pela Rússia não era tanto o de como conter a sua agressividade, mas o de como temperar as suas ambições”.

 

Texto adaptado de um artigo de opinião publicado no PÚBLICO a 7 de Março de 2015

 

Cessar-fogo em part time

Alexandre Guerra, 26.02.18

 

Dois dias depois do Conselho de Segurança ter aprovado por unanimidade uma resolução que prevê um cessar-fogo de 30 dias em toda a Síria (com algumas excepções), Moscovo – cujo seu embaixador na ONU também votou favoravelmente aquela medida – vem agora dizer que vai implementar uma “pausa humanitária” diária das 9h00 às 14h00 na parte oriental de Ghouta. É uma espécie de part-time de cinco horas para ajudar a população em fuga. Dirão uns, que é melhor do que nada... Provavelmente, mas o espírito da resolução que Moscovo também aprovou, deveria ser muito mais do que isso e os 400 mil sírios que estão a viver "o inferno na terra", como disse António Guterres, mereciam um cessar-fogo a tempo inteiro. 

 

O saber é aquilo que não se esquece

Alexandre Guerra, 30.01.18

 

É com bastante entusiasmo que estou a ler o último livro de Jaime Nogueira Pinto, Bárbaros e Iluminados (D. Quixote). Algumas das passagens relembram-me as aulas dadas pelo autor numa das cadeiras do meu curso de Relações Internacionais, na segunda metade dos anos 90. Ao contrário de muitos dos meus colegas da altura – mais interessados em fazer “ditados” do que era dito –, provavelmente, eu era dos poucos que via naquelas aulas uma fonte de verdadeiro conhecimento, o saber que não esquecemos e que nos ajuda a perceber as forças dinâmicas da História e a antecipar algumas das imprevisibilidades do sistema internacional. Jaime Nogueira Pinto nunca foi do estilo professoral e dizia sempre, para aqueles que estavam mais obcecados em fazer “sebentas”, que datas e conteúdos factuais podiam ser encontrados num qualquer manual. O importante era perceber as motivações dos actores da História e saber interpretar as consequências das suas acções. Neste aspecto, Jaime Nogueira Pinto preferia ter como ponto de partida as histórias e estórias da História para depois lhes dar o devido enquadramento político e ideológico.

 

Foi nestas aulas que comecei a interessar-me seriamente pela relação íntima entre a dimensão literária de Dostoievsky (e outros) e o movimento histórico subsequente. Comecei a entender a obra deste escritor de outra maneira, vendo nela uma amostra sociológica de uma Rússia aburguesada e intelectual asfixiada pelo regime czarista e ansiosa por um admirável mundo novo. Escreve Jaime Nogueira Pinto que “não era de estranhar que as novas gerações intelectuais e técnicas, oriundas das classes médias e da burocracia estatal […]” se atirariam para os “braços dos grupos revolucionários”. Em romances como O IdiotaOs Irmãos Karamazov ou Os Demónios, “Dostoievsky antevira o tipo de pessoas em que [esses burgueses] se transformariam”. Apesar dessa ânsia de mudança, Dostoievsky nunca teve dúvidas quanto aos “riscos do moralismo e do construtivismo utópicos dos intelectuais, fundamentados numa versão optimista da condição humana”. Pelo contrário, toda a literatura de Dostoivesky é marcada pela imperfeição humana, pelo conflito, pela injustiça. O mundo idílico dos utopistas para uma nova Rússia não cabia na visão de Dostoievsky e, para mim, depois daquelas aulas, isso passou a ser tão evidente nos textos daquele escritor.

 

Neste processo revolucionário, Jaime Nogueira Pinto volta ao incontornável Yevgeny Zamyatin, um autor de que ouvi falar pela primeira vez precisamente nas suas aulas. Desde então tornou-se uma espécie de referência bibliográfica em livros ou textos que escrevo. Talvez pela irreverência própria da juventude, Zamyatin tinha o sonho de mudar a sociedade russa, à semelhança de qualquer revolucionário que se prezasse, no entanto, o seu “ímpeto foi decrescendo à medida que crescia a propensão autoritária e controladora do Partido Comunista e a censura das Letras e das Artes”. De eufórico revolucionário, Zamyatin passou a um dos mais críticos do regime de Estaline, tendo sido preso e, mais tarde, com a ajuda dos bons ofícios de Gorky junto de Estaline, conseguiu exilar-se em França. Sem ilusões quanto ao carácter virtuoso da nova sociedade e do “novo homem” soviético, em 1920 publica “a primeira obra utópica, depois da implantação da utopia”. Nós é um livro fascinante, que conta a história, num futuro muito distante, de uma sociedade perfeita, orientada por um Estado único, onde tudo é eficaz e as pessoas vivem felizes. O único problema é que esse poder organizativo é totalitário e tudo assenta numa aparente ilusão e numa “alteração forçada da condição humana”, tal como aconteceu com o bolchevismo nos primeiros anos.

 

Desde as aulas de Jaime Nogueira Pinto, nunca mais esqueci a importância de Zamyatin na tradição literária da “distopia política” do século XX. E, sobretudo, aprendi a olhar para algumas obras, não apenas como ferramentas de enquandramento social e político de fenómenos do sistema internacional, mas também como elementos prospectivos daquilo que possa estar para vir.

 

Texto publicado originalmente no Delito de Opinião

 

A ameaça Vermelha

Alexandre Guerra, 11.07.17

 

 

Para quem gosta e acompanha os fenómenos da comunicação política e da propaganda entre os Estados, recomendo que veja este mini-documentário com cerca de nove minutos, que foi publicado esta Terça-feira pela NATO. O filme pretende fazer uma homenagem aos antigos partisans, que após a IIGM combateram heroicamente as forças invasoras do Exército Vermelho nas florestas dos países bálticos. Além do interesse histórico deste vídeo, o mais relevante, em minha opinião, é o contexto em que surge, quase como que se fosse uma peça de propaganda ao bom e velho estilo da Guerra Fria, com o objectivo de demonizar o inimigo (neste caso, a Rússia). A questão é que os países bálticos sentem uma ameaça constante da Rússia, levando muito a sério os ímpetos expansionistas do Kremlin. Há uns anos visitei dois daqueles lindos países e é extraordinário perceber que a percepção da ameaça Vermelha continua a pairar no ar.

 

O reforço de poder

Alexandre Guerra, 19.10.16

 

Não há dúvida alguma que Vladimir Putin tem reforçado o seu poder interno, como as recentes eleições parlamentares o confirmaram. Mas não é só nas urnas que isso acontece, já que o Presidente russo parece estar a criar uma rede de segurança e de interesses à sua volta, que parece assemelhar-se à lógica que norteava os líderes dos tempos comunistas. Politicamente, tem enfatizado uma retórica anti-Europa e anti-ocidental, ao mesmo tempo que vai intensificando a presença da Rússia nalgumas zonas do globo, como na Europa Oriental (Ucrânia), no Médio Oriente (via Síria) ou no Cáucaso. Por exemplo, o parlamento da Arménia ratificou há dias um acordo com a Rússia para se criar um sistema de defesa anti-míssil para a zona do Cáucaso. Já noutra zona do globo, recentemente vieram notícias a dar conta de que Moscovo pretende reactivar bases militares dos tempos da Guerra Fria em Cuba e no Vietname.

 

"Brincadeiras" que um dia podem correr muito mal

Alexandre Guerra, 23.06.16

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Lançamento na Quarta-feira de um dos dois mísseis de médio alcance Musudan com a presença de Kim Jong-un/Yonhap 

 

Nos últimos anos vai-se tendo cada vez mais a impressão de que, a acontecer qualquer drama militar de dimensões cataclísmicas, começará numa "brincadeira" para os lados da Ásia oriental. Se é na Península da Coreia (que, "by the way", continua formalmente em estado de guerra), no Mar do Japão ou no Mar Oriental ou Sul da China, ainda está para se ver (esperemos que não). Além dos interesses territoriais inconciliáveis entre várias nações que se jogam naquelas paragens, esta região é, no actual contexto geopolítico e geoestratégico, uma espécie de ponto de confluência de várias "placas tectónicas". Porque, além dos actores regionais directamente envolvidos nas disputas territoriais, tais como a China, o Japão, a Coreia do Norte, a Coreia do Sul, a Rússia, o Vietname, as Filipinas, entre outros, o jogo de alianças e de interesses acaba por envolver também os EUA, sobretudo pela sua ligação aos aliados nipónicos e a Taiwan.

 

Qualquer acidente ou incidente que por ali aconteça (e têm acontecido alguns) pode acender o rastilho para algo de dimensões problemáticas. Da disputa das Ilhas Curilhas, entre o Japão e a Rússia, à das Ilhas Spratly, entre Pequim e várias nações, tais como as Filipinas ou o Vietname, passando pelas "escaldantes" Ilhas Senkaku (ou Diayou para os chineses), sob administração japonesa mas reclamadas por Pequim, os factores de ignição são muitos. São recorrentes os episódios militares hostis, sobretudo por parte de Pequim, com Washington, por exemplo, à distância, a ir dizendo que não permitirá qualquer ameaça à integridade territorial do Japão. Isto já para não falar do "dossier" Taiwan. Mas é principalmente de Pyongyong que vem a maior ameaça sistémica. A Coreia do Norte não abdica da sua retórica bélica e provocadora e tem dado claros sinais de que a acompanha com uma escalada militar. Ainda ontem testou mais dois mísseis balísticos de médio alcance, conhecidos no Ocidente como Musudan, tendo o primeiro falhado, mas o segundo alcançado os objectivos. E trata-se de informação já confirmada pela Coreia do Sul e EUA.

 

Se ainda estou recordado das aulas de Problemática e Controlo de Armamentos, um míssil balístico de médio alcance (MRBM/IRBM) poderá ter um raio de acção entre os 500 quilómetros e os 5000. A partir daí estamos a falar de mísses Intercontinentais (ICBM). Este míssil norte-coreano terá voado 400 quilómetros, o que, segundo os especialistas, representa uma melhoria em relação ao teste anterior. Há poucas dúvidas de que se o regime de Pyongyang continuar a testar os seus mísseis, irá conseguir desenvolver na sua plenitude de forma eficaz estes vectores de lançamento de eventuais ogivas nucleares. E, por isso, o líder norte-coreando, Kim Jong-un já veio dizer que o seu país está em condições de atacar interesses dos Estados Unidos na ilha de Guam, no Pacífico. Se é certo que muitas das vezes a retórica proveniente dos líderes daquele regime é mera propaganda, desta vez, e a julgar por algumas reacções, as palavras de Kim Jong-un estão a ser levadas mais a sério.

 

A próxima cimeira da NATO em Varsóvia

Alexandre Guerra, 03.06.16

 

A 8 e 9 de Julho vai realizar-se a Cimeira da NATO em Varsóvia. Em visita à Polónia esta semana, o secretário-geral da Aliança, Jens Stoltenberg, fez uma antecipação do que estará na agenda do encontro. Perante os desafios de segurança e também de valores aos fundamentos europeus, pretende-se que nesta cimeira a NATO reforce a sua presença nos países da parte Leste da organização e que se projecte estabilidade para lá das fronteiras da Aliança.

 

Quanto ao reforço da posição da NATO nesses países de Leste, um dos pontos que será discutido tem a ver com a colocação de vários batalhões em diferentes Estados daquela região, embora o secretário-geral da NATO tenha referido que esta medida não tem um carácter ofensivo contra a Rússia. Para já, sabe-se que os três países bálticos e a Polónia irão receber estes batalhões. Além disso, a Polónia anunciou hoje que vai criar uma força paramilitar de 35 mil civis que terão treino militar e que serão distribuídos por várias brigadas territoriais, com o objectivo de estarem preparados para um tipo de conflito como aquele que aconteceu no leste da Ucrânia.

 

Sobre a capacidade de projecção de estabilidade para lá das fronteiras da Aliança, Jens Stoltenberg adiantou que a NATO vai intensificar a cooperação e o treino conjunto com países do Médio Oriente e Norte de África, para que estas regiões possam fortalecer as suas instituições de defesa e forças militares com dois objectivos: reconquistarem território que tenham perdido para forças terroristas, como o Estado Islâmico ou a Al Qaeda; criarem condições mais favoráveis para facilitar a eventualidade de mobilização de tropas da NATO naqueles países.

 

Na próxima cimeira será também discutido o investimento do PIB que cada país faz na área da Defesa, com a meta de dois por cento sempre presente. Outro dos pontos que será também abordado é a cooperação entre a NATO e a União Europeia em matéria de ameaças híbridas, como a ciber defesa e a segurança marítima. 

 

Entretanto, dentro da NATO Response Force (NRF), que conta com 40 mil homens, foi activada há dias a Very High Readiness Joint Task Force (VJTF), que é uma espécie de “ponta de lança” composta por 5 mil homens com capacidade de mobilização em 48 horas em qualquer parte do mundo. Será anunciado, certamente, com entusiasmo e pompa na cimeira de Julho.