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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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Desconstruir análises

Alexandre Guerra, 07.02.20

Meses depois do conselheiro especial da Casa Branca, Jared Kuschner, ter apresentado ao mundo árabe a componente económica do plano de paz americano para o Médio Oriente, durante um "workshop" em Manama, Bahrein, recentemente foi a vez do Presidente Donald Trump revelar os contornos políticos e mais "quentes" daquilo que ele classifica de "Visão" (Vision for Peace, Prosperity and a Brighter Future) para a resolução do conflito israelo-palestinino. Se na vertente económica já era sabido que se estava perante um potencial investimento de cerca de 50 mil milhões de dólares,  no patamar político, o documento com a "Visão" de Trump apresentado há semanas concretiza muito claramente os intentos de Washington e Telavive para a "sua" solução de "dois Estados.

Não se pretende aqui analisar em detalhe todos os contornos do plano apresentado, mas sim desconstruir as análises erradas que se fizeram na imprensa, porque aquilo que alguns comentadores vêem como (novas) consequências provocadas pelo plano de Trump, são na verdade realidades que existem "de facto" desde a intifada de al Aqsa, em Setembro de 2000: a questão da descontinuidade territorial; a criação do sistema de "apartheid"; e o isolamento dos territórios palestinianos com os Estados limítrofes. 

Com o ressurgimento da violência israelo-palestiniana, em Setembro de 2000, espoletada pela provocatória visita do então primeiro-minsitro, Ariel Sharon, ao Monte do Templo (para os judeus) ou Haram al-Sharif (para os muçulmanos), o território da Cisjordânia foi sendo asfixiado e fragmentado pela política de colonatos judaicos e de segurança israelita. São várias as localidades e cidades dentro da Cisjordânia que, desde estão, ficaram totalmente controladas pelas IDF, sendo que, em muitos casos, a liberdade de circulação está limitada pelos inúmeros checkpoints levantados pelas IDF. A intensidade desta realidade vai sempre variando e dependendo do grau de violência que se vai vivendo no âmbito do conflito israelo-palestiniano. Por exemplo, durante os anos da intifada de al-Aqsa, os checkpoints entre a capital Ramalhah e a localidade universitária de Bir Zeit, a 20 minutos de carro, eram recorrentes a várias horas do dia. 

E quando há uns analistas que falam num novo “apartheid”, estão a ignorar por completo o que se passa há vinte anos na Cisjordânia, onde existem estradas que ligam directamente Israel aos colonatos, sem que os palestinianos possam utilizá-las, apesar de atravessarem território palestiniano. Estão a ignorar que os checkpoints são impostos discricionariamente de acordo com a vontade das IDF, muitas vezes de uma hora para o outra, impedindo que muitos palestinianos regressem as suas casas ou não possam deslocar-se de um local para outro, obrigando-os a esperar horas e até dias. Estes mesmos analistas, que agora vêem nesta “Visão” a fonte de todos os males, ignoram a realidade de duas décadas, onde milhares de palestinianos ficaram impedidos de atravessar a “fronteira” em Jerusalém para irem trabalhar diariamente em Israel. Ignoram ainda que desde 2000, Israel cortou com a ligação entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, provocando, nalguns casos, a separação de famílias. Muito dificilmente um palestiniano da Cisjordânia conseguirá chegar à Faixa de Gaza através de Israel. Quanto muito, terá que sair da Cisjordânia pela Jordânia e entrar em Gaza pelo Egipto.   

Recuperemos então algumas passagens do documento apresentado por Donald Trump. Na sua introdução, é referido que: "Gaza and the West Bank are politically divided." É verdade, mas como foi acima sublinhado, é omitido que também estão fisicamente separados desde o início da intifada de al Aqsa, em Setembro de 2000, por imposição das IDF. Ainda de acordo com a mesma introdução, lê-se: "Since 1946, there have been close to 700 United Nations General Assembly resolutions and over 100 United Nations Security Council resolutions in connection with this conflict." É obra, mas é revelador da ineficácia completa da comunidade internacional na tentativa de resolução desta questão. E como é que Trump vê estas resoluções da ONU? "This Vision is not a recitation of General Assembly, Security Council and other international resolutions on this topic because such resolutions have not and will not resolve the conflict."

Sendo os “males” potenciais identificados por muitos analistas, na verdade, evidências bem reais há vários anos, não será de estranhar que o plano de paz de Washington seja uma ferramenta diplomática tendenciosa para os interesses de Israel. A determinada altura lê-se: "It must be recognized that the State of Israel has already withdrawn from at least 88% of the territory it captured in 1967." Ora, depende da interpretação que se fizer e do território em causa. É que em 1967, Israel ocupou a Cisjordânia, Gaza, Montes Golã e um enclave ao Líbano e Síria (Shebaa Farms). Entretanto, retirou as IDF de Gaza, mas manteve o controlo fronteiriço; retirou a presença militar dos Golã, mas manteve a soberania e não devolveu à Síria (tal como as Shebaa Farms). Na Cisjordânia, recuou nalgumas zonas, mas isolou outras e fragmentou o território, enchendo-o de colonatos.

Um dos pontos mais importantes deste documento e mais estratégico para a sobrevivência de Israel tem a ver com algo a que não vi qualquer analista fazer referência: “The State of Israel will retain sovereignty over territorial waters, which are vital to Israel’s security and which provides stability to the region.” Ao contrário de outras matérias em disputa, como a questão da capital em Jerusalém (mais simbólica do que estratégica) ou dos colonatos (mais ideológica do que securitária), há dois temas que ameaçam directamente a existência de Israel (não, não é o Hamas nem o Irão): o acesso à água e o factor demográfico. Este tema ficará para um próximo texto.

Nancy Pelosi volta a ser a mulher mais poderosa da política americana

Alexandre Guerra, 03.01.19

 

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Nancy Pelosi no primeiro dia em que, pela primeira vez, uma mulher assumiu o cargo de "speaker" da House. Foi em 2007. Agora, regressa ao cargo/Foto:Stephen Crowley/The New York Times

 

Nancy Pelosi torna-se a partir desta Quinta-feira a mulher mais poderosa da política americana ao assumir o cargo de "speaker" da Câmara dos Representantes do Congresso dos Estados Unidos. Pelosi, que já ocupou aquele cargo entre 2007 e 2011, tem agora o seu “comeback” para o topo da cúpula de poder. Note-se que o líder ou a líder da câmara baixo do Congresso é a segunda maior figura na hierarquia do Estado, a seguir ao Presidente. De certa forma, em termos institucionais, é semelhante ao nosso presidente da Assembleia da República, mas, em termos políticos, a diferença é abismal, uma vez que o "speaker" assume um papel preponderante na política quotidiana dos Estados Unidos, sobretudo numa altura em que o embate ideológico e político entre a Casa Branca e a maioria democrata na House será estrondoso.

 

New York Times referia-se a Pelosi como “um ícone do poder feminino” e, após 15 anos como congressista democrata da Califórnia, tem agora a oportunidade de selar a sua carreira política ao mais alto nível. Já em 2007 tinha feito história, ao tornar-se na primeira mulher a assumir o cargo de "speaker" da House. Agora, aos 78 anos, enfrenta, provavelmente, o seu mais difícil desafio no Congresso, naquilo que pode ser visto como mais do que um combate político. Para Pelosi, mãe de cinco e avó de nove, será acima de tudo uma luta de valores e de princípios contra um Presidente que, para muitos, representa uma traição àquilo que os ideais americanos defendem.

 

Curiosamente, numa altura em que o mundo vê surgirem lideranças mais jovens, seja no poder ou na oposição, nos EUA, o combate político de primeira linha entre a Casa Branca e o Partido Democrata vai ser personificado por dois veteranos. Antecipa-se um confronto feroz entre Pelosi e Trump, entre a House e a Casa Branca. A vitória dos democratas nas eleições de Novembro para a Câmara dos Representantes alimentou as expectativas e a esperança de milhões de americanos anti-Trump, que, após dois anos de domínio republicano na Casa Branca e Congresso, vêem neste novo arranjo parlamentar uma hipótese de travar as políticas do Presidente. Pelosi acaba por beneficiar destas circunstâncias, canalizando para si os anseios de muitos eleitores, perante a frustração que foi a eleição e a governação de Donald Trump.

 

Duas condições para "impeachment"

Alexandre Guerra, 22.08.18

 

Os casos judiciais que envolveram Paul Manafort e Michael Cohen, outrora homens poderosos que fizeram parte do círculo mais próximo do Presidente Donald Trump, servem de “combustível” para manter vivo o “lume” até às eleições intercalares de Novembro. Um “lume” que os opositores de Trump esperam que se transforme nas “chamas do inferno”, com um processo de “impeachment” que, na actual configuração do Congresso (Câmara dos Representantes e Senado), é impossível de passar. É por isso que, provavelmente, nunca em tantos anos nos EUA, as eleições intercalares tiveram uma importância tão directa no destino do Presidente, porque se os republicanos perderem a maioria no Congresso e, consequentemente, a liderança de algumas comissões, poderão estar criadas as condições para o início formal de um processo de “impeachment”. Reconheça-se que, por menos, muito menos, Bill Clinton foi alvo de um processo destes, embora tenha sido absolvido e cumprido o seu segundo mandato até ao final, terminando com os mais altos índices de popularidade que um Presidente teve desde a II GM.  

 

Para um processo destes ter possibilidade de avançar, são sobretudo precisas duas condições: a primeira tem a ver com uma conjuntura política adversa contra Trump e um ambiente muito hostil instalado numa significativa franja da opinião pública; a segunda condição é partidária e prende-se com a composição do Congresso que, maioritariamente, tem que se opor ao Presidente.

 

Se polémicas com actrizes porno ou casos de polícia, como os do antigo director de campanha e o do ex-advogado de Trump, são excelentes para criar bases jurídicas e um sentimento cada vez mais adverso contra o Presidente, empolado diariamente pelos principais órgãos de comunicação social americanos, com a ajuda de muitos artistas e personalidades “activistas”, nada disto servirá se depois não houver correspondência no poder legislativo. Que é isso que acontece actualmente.

 

Não custa a acreditar que, daqui até Novembro, a primeira condição seja reforçada ainda mais, atendendo à habilidade de Trump para se meter em problemas criados por si próprio. A questão que se coloca é saber se os ventos de mudança chegarão ao Congresso. Para a segunda condição ser cumprida, tanto a Câmara dos Representantes como o Senado terão que mudar a sua composição (ou então, teria que haver uma alteração no pensamento de muitos republicanos, o que não parece verosímil). Na Câmara dos Representantes basta uma maioria simples para dar início ao processo de “impeachment”, já ao nível do Senado, a confirmação da queda do Presidente precisa sempre de uma maioria de dois terços. Ora, se em teoria, é possível que os democratas conquistem a maioria na Câmara dos Representantes, já que todos os seus 435 assentos irão a eleições, no Senado, dos seus 100 lugares, apenas 35 estarão em disputa, sendo que a maioria destes são actualmente ocupados por democratas. Mesmo admitindo que os democratas conquistem a maioria no Senado (perfeitamente possível), dificilmente chegariam a uma maioria de dois terços, porque pressuponha que, além de conquistarem lugares novos, teriam que convencer outros republicanos que já lá estão.

 

Do que se vai analisando, a estratégia de oposição a Trump passa por manter o Presidente debaixo de fogo até Novembro, explorando ao máximo todos os seus casos polémicos e, sempre que possível, abrindo novas “frentes de batalha”. Basta ver órgãos como o New Times e a CNN para se perceber que os próximos dois meses e meio vão ser de ataque constante a Trump e é por isso que casos como o de Manafort ou de Cohen são autênticas armas de destruição maciça contra o Presidente. O que a oposição a Trump está a tentar fazer é criar uma espécie de “casus belli”, na esperança de que em Novembro a maioria do Congresso mude de mãos e formalize o “impeachment”. E se isso vier a acontecer, é muito provável que muitos republicanos congressistas e senadores mais moderados se sintam tentados a dar o “empurrão” final a Donald Trump.

 

Distracções

Alexandre Guerra, 21.06.18

 

O mundo de hoje é mesmo assim, tão cedo as pessoas e as redes sociais se revoltam e se indignam com uma tragédia, como, rapidamente, a esquecem e as suas atenções se desviam para um outro assunto. O jornalismo histriónico, munido de comentadores e analistas pouco atentos, alimenta estas dinâmicas ilusórias, e os governantes (quase todos) vão navegando na espuma dos dias. Se, algures, uma injustiça é revelada ao mundo, surgem de imediato as vozes de indignação, os movimentos de sensibilização, as frentes comuns de “batalha” (parece que agora se está a formar um frente “anti-fascista, signifique lá o que isso significar). O problema é que este “despertar” súbito da sociedade para os problemas, não deixando de ser louvável, é efémero e, muitas vezes, contraproducente, porque aborda as questões pelo seu pior ângulo: o imediato e, muitas vezes, o demagógico.

 

Os dramas de natureza política e social, ao contrário das catástrofes naturais, normalmente, não surgem de rompante nem de surpresa. Há sinais, indícios, que podem perspectivar determinados acontecimentos. É claro que para os identificar e interpretar é preciso tempo, conhecimento, dedicação profissional e, sobretudo, interesse. Admite-se que esse não seja o papel dos cidadãos comuns, que têm os seus empregos e actividades no quotidiano profissional e social, dando, assim, o seu contributo à comunidade. Para as pessoas, enquanto massa (sociologicamente falando) integrada numa democracia, está reservado o derradeiro papel: o voto. Essa leitura atempada e atenta deveria ser feita pelos “observadores” e actores dos respectivos sistemas políticos, por forma a produzirem-se decisões que pudessem, se não evitar, pelo menos atenuar o impacto de alguns dos dramas que acabam por irromper mais tarde.

 

É extraordinário constatar como, desde há poucos dias, se fazem ouvir as vozes revoltosas de comentadores, analistas, políticos e activistas, como se tivessem “acordado” agora para um tema, tema esse que se tivesse contado com este mesmo empenho há mais de um ano, provavelmente, mais de duas mil crianças não tinham sido separadas dos seus pais migrantes ilegais vindos do México em direcção aos Estados Unidos. Mas poderá o leitor perguntar, como é que isso seria possível, se só há cerca de dois meses se começou a concretizar esta política promovida pelas autoridades americanas. A questão é totalmente pertinente, no entanto, lá está, os tais sinais já existiam há mais de um ano. E nem se pode dizer que eram indícios ténues. Nada disso.

 

A 3 de Março de 2017, ou seja, há mais de um ano, a MSNBC avançava com um exclusivo que dizia: “Trump admin. plans expanded immigrant detention”. O que vinha nessa notícia era absolutamente assustador, porque ia muito para além de meras declarações estapafúrdias do Presidente Trump. Pelo contrário, essa notícia não trazia qualquer declaração do Presidente, demonstrava, isso sim, uma sistematização daquilo que poderia vir a ser o novo modelo de tratamento dos migrantes ilegais com filhos vindos do México.

 

Lia-se: “In a town hall with Department of Homeland Security staffers last month, Asylum Division Chief John Lafferty said DHS had already located 20,000 beds for the indefinite detention of those seeking asylum, according to notes from the meeting obtained by All In. This would represent a nearly 500% increase from current capacity.

The plan is part of a new set of policies for those apprehended at the border that would make good on President Trump’s campaign promise to end the practice critics call ‘catch and release’. 

‘If implemented, this expansion in immigration detention would be the fastest and largest in our country’s history’, says Andrew Free, an immigration lawyer in Nashville who represents clients applying for asylum. ‘And my worry is it’ll be permanent. Once those beds are in place they’ll never go away.’

[…]

Under the plan under consideration, DHS would break from the current policy keeping families together. Instead, it would separate women and children after they’ve been detained – leaving mothers to choose between returning to their country of origin with their children, or being separated from their children while staying in detention to pursue their asylum claim.”

 

Sublinhe-se. Este exclusivo foi avançado a 3 de Março de 2017 pela MSNBC, que ainda há dias voltou a relembrar o tema. Curiosamente, das muitas vozes agora indignadas, que estão “avalizadas” para comentar nos jornais e televisões e para decidir nos gabinetes, não se ouviu ao longo deste mais de um ano qualquer comentário ou acção concreta sobre este assunto. Tinham palco e condições para o fazer. Se não o fizeram não foi, supostamente, por falta de boa vontade, foi, simplesmente, porque, mais uma vez, estavam distraídos. Se tivessem estado um pouco mais atentos, talvez se pudesse ter evitado o choro e sofrimento de mais de duas mil crianças. Infelizmente, este é apenas um de muitos outros tristes exemplos.

 

Texto publicado originalmente no Delito de Opinião.

 

Todos devem apoiar Trump

Alexandre Guerra, 12.06.18

 

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No sistema internacional, por vezes, as relações pessoais entre líderes contam muito/Foto: Evan Vucci/AP 

 

Por mais que custe a admitir aos opositores e detractores de Donald Trump, e independentemente do parco conteúdo da declaração conjunta da cimeira de Singapura e do inexistente “road map” a ser seguido nos próximos tempos, ao fim de várias décadas de gelo diplomático entre os EUA e a Coreia do Norte, seria sempre preferível ter um encontro amigável de alto nível, mesmo que inócuo, do que não ter nada e manter-se o clima instável e volátil que se vinha sentindo nos últimos meses entre Washington e Pyongyang. A guerra de palavras entre Trump e Jong-un tinha escalado para níveis nunca dantes vistos nas relações internacionais entre dois chefes de Estado, mas o problema maior tinha a ver com o processo nuclear norte-coreano que, apesar de tudo, foi fazendo o seu caminho, com testes atrás de testes e lançamentos atrás de lançamentos. Se a Coreia do Norte continuasse a seguir este caminho, seria muito provável que viesse a conseguir dotar-se de uma capacidade plena e eficaz nuclear, quer ao nível dos seus vectores de lançamento, quer na miniaturização das respectivas ogivas. Até ao momento, daquilo que se foi sabendo, ainda havia muito trabalho a fazer, mas algum dia esse percurso teria que ser travado… diplomática ou militarmente. Sendo a capacidade nuclear um factor de poder enormíssimo na hierarquia dos Estados no sistema internacional, uma coisa é Washington negociar com Pyongyang nesta fase, outra coisa seria um líder americano sentar-se à mesa com o seu homólogo norte-coreano numa altura em que este país já fizesse parte do exclusivo “clube” das potências nucleares. Aqui, as condições de negociação seriam certamente outras.

 

Trump deslocou-se a Singapura numa altura em que a Coreia do Norte ainda está longe de ser reconhecida como uma potência nuclear, com capacidade para militarizar a tecnologia até agora desenvolvida. Ainda não alcançou o estatuto de países como a Índia, o Paquistão ou Israel. Mas para lá caminha(va). Mais, Trump foi até Singapura com a certeza de que a Coreia do Norte está desesperadamente à procura de recursos financeiros (e outros) para colmatar a “falência” daquele país. Tudo na Coreia do Norte é uma ficção, uma ilusão, excepto a crise humanitária que aflige milhares de pessoas em proporções que, na verdade, não são verdadeiramente conhecidas.

 

Além disso (e isto em política internacional é muito importante), nota-se uma ânsia de diálogo e abertura por parte do líder Kim Jong-un. Não quer dizer necessariamente que seja uma vontade de suavizar o regime ou de “abrir” a sociedade, mas, para quem tem acompanhado com alguma atenção o percurso deste jovem líder, constata que há em si um ímpeto para ir além-fronteiras e estabelecer pontes com outros países e governantes. Às vezes quase que parece uma criança num loja de chocolates quando se confronta com a novidade. Parecem pormenores, mas, num regime unipessoal como é o da Coreia do Norte, estas matérias de personalidade podem fazer toda a diferença nos desígnios de uma nação.

 

Trump poderá estar certo quando diz que sentiu da parte do seu interlocutor vontade genuína para negociar. Resta saber o que será negociado e em que condições. Para já, pouco se sabe, mas presume-se, caso a cimeira tenha sido bem conduzida os seus protagonistas bem assessorados, que tenham sido estabelecidas as metas, os grandes objectivos políticos a serem alcançados. É para isso que servem estes encontros. Depois a forma de como lá se chega, concessão aqui, concessão ali, é um trabalho de bastidores, de muita paciência e, sobretudo, confiança entre as partes.

 

Se for verdade aquilo que Trump tem anunciado nestas últimas horas, então o mundo deve congratular-se pelo facto de aqueles dois líderes terem definido a “desnuclearização da Península da Coreia” como o principal objectivo. Provavelmente, os EUA terão que pagar um preço muito elevado como contrapartida, mas, a médio e a longo prazo, quem sabe se Washington não terá na Coreia do Norte um gigantesco receptor de ajuda financeira, à semelhança do Egipto e da Jordânia, países que, apesar das suas diferenças religiosas, culturais e políticas, se mantiveram sempre como preciosos aliados da Casa Branca.

 

Para já, e por mais disparates e erros que Trump tenha feito nos últimos meses e ódios que suscite, este esforço diplomático merece ser reconhecido e é por isso que ainda esta semana o insuspeito Nicholas Kristof escrevia que os democratas no Congresso não deveriam adoptar a mesma atitude dos republicanos e criticar por criticar a iniciativa do Presidente americano. Porque, neste momento, é do interesse de todos que esta jogada arrojada de Donald Trump se revele certeira.

 

Desta vez há algo de novo e Trump (estranhamente) percebeu

Alexandre Guerra, 21.02.18

 

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Ilustração de Andrea Ucini/NYT 

 

Quem diria que seria Donald Trump a propor uma mudança legislativa restritiva em matéria de armas... É certo que a ordem executiva que o Presidente assinou, e que obriga o Departamento de Justiça a rever a lei, é bastante limitada e incide apenas na proibição da venda de acessórios ("bump-stocks) que permitem modificar armas semi-automáticas em automáticas, mas, mesmo assim, já é qualquer coisa. É também certo que Trump, num laivo de bom senso político ou bem aconselhado, percebeu rapidamente que precisava de aliviar a pressão. Antes, já tinha também anunciado que estava disponível para apoiar legislação que aperte o controlo ao "background" de possíveis compradores de armas. Estas medidas são claramente insuficientes e, na verdade, até têm o apoio da National Rifle Association (NRA), o que se compreende, já que, através destas cedências, aquela organização vai gerindo a agenda das armas nos EUA, mantendo intacto o enquadramento legal que verdadeiramente interessa e que permite ter no mercado todo o tipo de armas.

 

Aliás, poucos acreditam que a vontade reformadora de Trump vá ao ponto de se poder vir a discutir a proibição da venda de armas de assalto. No entanto, isso não significa que a Casa Branca, nesta altura, não alimente junto da opinião pública a percepção de que Trump poderá estar comprometido com novas medidas restritivas. E neste sentido, as declarações da sua porta-voz, Sarah Huckabee Sanders, são muito interessantes, porque quando questionada pelos jornalistas sobre a possibilidade da proibição da venda de armas de assalto, responde que a Casa Branca "não fecha a porta em nenhuma frente". Isto é o mesmo que dizer que Trump admite rever a lei para proibir a venda daquele tipo de armas, o que é uma posição arrojada, para um Presidente republicano que se assumiu um "true friend and champion in the White House" da NRA.  A questão é que mesmo sabendo-se que dificilmente será concretizada algum tipo de iniciativa, a "intenção" presidencial já foi lançada para a opinião pública.

 

Se olharmos com clareza para as últimas décadas, constatamos que em matéria de controlo de armas os presidentes americanos têm sido impotentes ou passivos, ficando sempre amarrados aos seus interesses e ao "gun lobby". Nem Barack Obama conseguiu mexer substancialmente no sistema vigente. Os massacres sucedem-se, mas a acção política tem-se ficado pelos lamentos. Pelo menos, até agora. Trump, por pouco que seja, está a fazer algo de concreto e, como foi acima referido, tem tido a preocupação de passar a ideia da "intenção" de fazer ainda mais. E esta "intenção" não deve ser desvalorizada, tendo em conta as pressões, os lobbies e os financiamentos eleitorais que se fazem sentir e jogam na arena das armas. Trump parece estar a ir um pouco mais além do que, por exemplo, Barack Obama terá ido em matéria de controlo de armas. 

 

O que terá então acontecido para que Trump, um republicano "amigo" das armas, esteja a ter uma posiçao aparentemente mais interventiva do que Obama, claramente identificado com um outro tipo de sociedade? A resposta, na minha opinião, tem a ver com um fenómeno que está a acontecer desta vez e que não se verificou em tragédias anteriores semelhantes: a resposta e a mobilização dos jovens estudantes. Para quem tem acompanhado os meios de comunicação social norte-americanos nos últimos dias, percebe que há uma dinâmica crescente, que tem potencial para se transformar numa questão política e social, sobretudo a partir do momento em que os jovens estudantes decidiram fazer uma "marcha" sobre Washington. A Casa Branca percebeu o que tinha pela frente, porque desta vez não se trata apenas de uma campanha dos media das elites de Washington contra a administração. A causa dos jovens estudantes tem um aliado muito mais poderoso: os seus pais. Se, por um lado, a irreverência e temeridade da juventude dá a dinâmica ao movimento, os pais dão a consistência e a dimensão. Trump percebeu isso ao ponto de alguém ter "passado" ao Washington Post a informação de que o Presidente tinha ficado muito sensibilizado quando viu as reportagens dos jovens estudantes e que se terá virado para os seus convidados, que estavam com ele na residência de férias de Mar-a-Largo na Flórida, e lhes terá perguntado o que mais poderia fazer pelo controlo de armas. Provavelmente, Trump saberia melhor do que ninguém naquela sala o que poderia fazer, mas a questão é que da forma como a história é contada e transmitida (como se de uma grande cacha do Post tratasse), as pessoas ficam com a percepção de que o Presidente, na sua intimidade, se importa genuinamento com o assunto. E isso em comunicação política é o que, por vezes, mais conta.

 

Após um ano de retórica, Trump "ataca" a China com máquinas de lavar

Alexandre Guerra, 23.01.18

 

A notícia passou quase despercebida, mas esta Segunda-feira o Presidente Donald Trump tomou a primeira medida concreta que dá corpo à retórica agressiva que tem proferido durante o último ano contra a liberalização do comércio internacional. A retirada dos EUA do Acordo Transpacífico (TPP) e o anúncio da revisão da sua participaçao no NAFTA foram sinais importantes e reveladores do caminho que a nova administração queria seguir, mas não foram mais do que isso, sinais. Pelo menos, até agora. Trump, em plena ressaca da crise do “shutdown” e com os holofotes mediáticos apontados para a guerra entre democratas e republicanos, anunciou que vai aumentar as tarifas de importação para máquinas de lavar e painéis solares. Estas medidas afectam, principalmente, países como a China e a Coreia do Sul e, segundo conselheiros citados pelo New York Times, outros produtos, como aço e alumínio, poderão vir a ser alvo de semelhante medida. Trump parece ter sido sensível ao “lobby” de empresas norte-americanas, como a Whirlpool (máquinas de lavar) ou a Suniva e a SolarWorld Americas (ambas de painéis solares). Os números revelados são muito significativos. Por exemplo, no primeiro ano, as primeiras 1,2 milhões de máquinas importadas sofrerão um acréscimo de 20 por cento nas respectivas tarifas, subindo para 50 por cento sobre todos os equipamentos comprados ao estrangeiro acima daquele número. A partir do terceiro ano, os valores descem para 16 por cento, no primeiro caso, e 40 por cento, no segundo. Quanto aos painéis solares importados, sofrerão um aumento de 30 por cento, um valor que cairá para 15 por cento no quarto ano.

 

Se aquelas empresas têm motivos para celebrarem, o sentimento não parece ser unânime na indústria da energia solar nos EUA, receando que estas medidas tornem o mercado menos competitivo. Também os ambientalistas temem que o aumento dos painéis solares comprometa o investimento da população nestas soluções. Além disso, são evidentes os potenciais efeitos nocivos que estas medidas podem ter no comércio internacional e nas relações de confiança entre os principais actores mundiais. Pequim e Seul já demonstraram o seu desagrado e ameaçam recorrer à OMC, no entanto, não anunciaram, para já, qualquer represália. Trump, passou da retórica aos actos, naquilo que ele considera ser a concretização do seu lema: “America First”. Ora, aquilo que Trump não parece estar a ver é que, num primeiro momento, estas medidas até poderão beneficiar algumas empresas americanas e galvanizar uma parte do eleitorado, sobretudo aquele mais ligada à indústria pesada americana, mas, a médio prazo, os efeitos serão contraproducentes para a economia americana. A História, aliás, tem demonstrado que as economias crescem muito mais quando se abrem ao exterior do que quando se fecham com medidas restritivas. Isso é dos livros, mas sobre essa matéria, Donald Trump não deverá estar muito ciente daquilo que é verdadeiramente benéfico para a América.

 

Texto publicado originalmente no Delito de Opinião

 

As portas do Inferno

Alexandre Guerra, 06.12.17

 

Conheço relativamente bem Israel e a Palestina. Estive lá por duas temporadas durante a intifada de al-Aqsa, numa altura em que turistas ou peregrinos não se atreviam ir à Terra Santa. Numa altura em que Jerusalém era a cidade com mais correspondentes a seguir a Washington, numa altura em que os atentados suicidas eram uma constante nas principais cidades israelitas. No lado palestiniano, os check points das Forças de Segurança Israelitas (IDF) eram cada vez mais intrusivos, os ataques aéreos sucediam-se, a construção de colonatos judeus avançava de forma intensa, os palestinianos deixaram de poder circular em Israel, nomeadamente entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. O Hamas e a Jihad Islâmica afirmavam-se, tal como as milíciasTanzim, uma espécie de braço terrorista da Fatah, liderada entāo por Yasser Arafat. O clima que se vivia foi dos mais violentos e sufocantes desde a última guerra israelo-árabe. A maior parte das infraestruturas palestinianas ficou reduzida a entulho. Na Faixa de Gaza, fosse na cidade de Gaza ou em Rafa, no sul, vi escombros sobre escombros, o porto e o aeroporto totalmente destruídos, projectos que tinham sido financiados pela UE. Israel também sofreu na sua economia, no seu turismo, na sua imagem internacional. Entre 2000 e 2005, terão morrido mais de 3000 palestinianos e cerca de 1000 israelitas. A violência tinha voltado a assolar aquela região e tudo porque Ariel Sharon, na altura líder do Likud na oposição, decidira fazer uma visita aparatosa, em jeito de provocação, à Esplanada das Mesquitas, um dos locais mais sagrados para os muçulmanos. Agora, é só imaginar o que poderá novamente acontecer com esta decisão de Donald Trump. O Hamas já veio dizer que se abriram as "portas do Inferno" e sobre isso não tenho qualquer dúvida.

 

Crianças

Alexandre Guerra, 28.09.17

 

Tudo tem a sua escala. Quando uma mãe, um pai, está no parque infantil com o seu filho ou filhos, normalmente, deixa-os à vontade, naquele espaço controlado, onde os seus ocupantes têm o mesmo código de “conduta” e lógica de discurso (na verdade, ausência dela) e são livres de fazer as diabruras que lhes são permitidas pela tenríssima idade. Os adultos, de longe, vão “deitando o olho” para assegurar que os disparates não ultrapassam os limites aceitáveis e desculpáveis para aquelas pequeninas amostras de gente. Caso o façam, não tendo bem a noção das consequências, de imediato os pais intercedem e males maiores são evitados. No final, todos vão para casa contentes sem danos a reportar. Com alguma sorte, é precisamente isso que se passa entre Donald Trump e Kim Jong-un, ou seja, duas crianças a disparatar no “recreio”, enquanto os “adultos” (espera-se) vão controlando os comportamentos para que nenhum deles cometa a infantilidade de carregar no “botão”. E quem são esses adultos? O aparelho em Washington, as estruturas e sub-estruturas das instituições americanas e também a gente responsável e com senso que está nas chancelarias de Pequim e Moscovo. E, sabe-se lá, se no meio do esquizofrénico regime de Pyongyang não haja alguém na cúpula do poder dotado de uma clarividência já (pelo menos) na idade juvenil.

 

O discurso de Merkel

Alexandre Guerra, 29.05.17

 

O discurso de Angela Merkel proferido este Domingo num comício para 2500 pessoas em Munique é daqueles que poderá ficar para a História da construção europeia. Não se pode dizer que tenha passado despercebido à imprensa internacional, porque, que se recorde, é a primeira vez que se vê a chanceler alemã a pronunciar-se de uma forma tão assertiva para a necessidade dos europeus contarem com eles próprios e não estarem dependentes dos “aliados” tradicionais, em referências directas aos “afastamentos” dos EUA e do Reino Unido. Ao dizer que a União Europeia tem que “tomar o futuro pelas suas próprias mãos”, Merkel está na prática a assumir que está na hora dos líderes europeus começarem a pensar seriamente na criação de uma efectiva política europeia de defesa e segurança, algo que não existe neste momento. É certo que existem muitas proclamações políticas e alguns mecanismos, mas nada perto daquilo que poderá garantir a defesa física da Europa como um todo perante uma ameaça externa. E nesse ponto é importante não esquecer que a NATO continua a ser a única organização com essa capacidade de resposta, ou seja, com a agilidade de mobilizar forças de diferentes países sob um único “badge” (comando). Em termos de meios militares, a NATO propriamente dita tem uns aviões AWACS (que vão reforçar a sua acção na recolha e partilha de informação entre todos os Estados-membro da Aliança), alguns quartéis-generais e pouco mais, no entanto, tem uma experiência acumulada de décadas, que lhe permite reagir a diferentes ameaças e em diferentes cenários através da interoperacionalidade oleada das forças dos diferentes países colocadas ao serviço NATO. Na prática, a NATO tem sido a estrutura comum da defesa europeia e até há poucos anos o território europeu tinha o exclusivo da sua acção.

 

Não é mentira quando Trump enfatiza o desequilíbrio das contribuições financeiras de cada país aliado para aquela organização. É um facto histórico com origens conhecidas no surgimento da Guerra Fria e que durante muito tempo serviu os propósitos norte-americanos na lógica do sistema bipolar, onde parte da Europa era claramente uma área de influência sob o “guarda-chuva” de Washington. Desde o fim da ameaça do Exército Vermelho sobre a Europa que a discussão sobre a Defesa do Velho Continente tem sido recorrente, nomeadamente ao nível do investimento que é preciso ser feito por cada país. Concomitantemente, várias administrações em Washington têm, ao longo dos anos, lançado avisos à Europa para que começasse a investir mais na Defesa e no orçamento da NATO. Por várias vezes, e sobretudo em momentos de crise, política ou militar, líderes europeus vieram para a praça pública falar entusiasticamente na necessidade da Europa começar a gastar mais na sua Defesa. Chegaram a ser ensaiados alguns projectos comuns, mas que nunca se concretizaram. Por isso, aquilo que Merkel disse no Domingo não é propriamente novo no conteúdo nem na forma. A verdadeira novidade foi ter sido Merkel a dizê-lo, sobretudo no tom particularmente firme em que o disse. É certo que estava influenciada pelo ambiente pouco diplomático provocado por Donald Trump nas cimeiras da NATO e do G7, mas para a chanceler ter assumido uma posição daquele calibre é porque a mesma deverá vir acompanhada de uma política firme nos próximos tempos.

 

Merkel foi a primeira líder europeia a assumir uma divergência desta magnitude com a administração Trump. Em causa estão valores fundamentais para a Europa, como são as alterações climáticas, mas é preciso não esquecer que, à margem da cimeira da NATO, o Presidente americano tinha ameaçado restringir as importações de carros alemães para os EUA. Nestas coisas da política internacional, e ao contrário do que muita gente possa pensar, as relações pessoais entre líderes podem fazer toda a diferença no adensar ou no desanuviamento de uma potencial situação de escalada político-diplomática. Neste caso, admite-se que a convivência entre os dois, primeiro em Bruxelas e depois em Taormina, não tenha corrido pelo melhor. Acontece. Agora, é preciso que nos corredores da diplomacia sejam encetados esforços no sentido de se manterem os canais de comunicação abertos entre Berlim e Washington, porque, uma coisa é certa: a Europa não está em condições de caminhar sozinha em matéria de Defesa e vai continuar a depender do envolvimento dos EUA na NATO durante muitos e longos anos. Por outro lado, Trump não deve esquecer, nunca, que apesar de todas as diferenças, é com a Europa com quem os EUA partilham os valores basilares da democracia e do liberalismo que norteiam a sua democracia e sociedade. Além disso, Trump também não se deve esquecer de um conceito muito importante e desenvolvido há uns anos por Robert Keohane e Joseph Nye, o da interdependência complexa. E neste aspecto, EUA e Europa estão ligados um ao outro como dois siameses.

 

Texto publicado originalmente no Delito de Opinião.