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O Diplomata

Opinião e Análise de Assuntos Políticos e Relações Internacionais

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A luz do "farol" europeu está cada vez mais esbatida

Alexandre Guerra, 27.01.16

 

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 Refugiados em direcção à Macedónia (Dan Kitwood/Getty Images)

 

Numa das suas deambulações nocturnas em que se entregava à reflexão, o personagem principal de uma das obras primas de Hermann Hesse problematizava sobre o que era ser europeu naquele presente. Estava-se nos anos 20 e o "lobo das estepes" estava angustiado com o esbatimento das referências culturais e sociais herdadas da "antiga europa". Questionava-se ele se os valores de outrora não estariam esquecidos: "Será que aquilo que consideramos 'cultura', aquilo que consideramos espírito, alma, belo, aquilo que consideramos sagrado, não era senão um espectro, estava morto há muito e já só por nós, um punhado de tolos, era tomado por verdadeiro e como estando ainda vivo?" 

 

Uma pergunta que, certamente, todos aqueles que se dedicam a estas matérias filosóficas poderão fazer em diferentes momentos da História. Porque, a Europa política, cultural e social tem sido uma construção de séculos, assente nos pilares do conhecimento e da filosofia da antiguidade clássica, na paixão e fraternidade judaico-cristã. Foi essa herança que deu corpo a uma certa ideia de "união europeia", não apenas de Estados ou nações, mas de valores e princípios, que seriam um "farol" referencial no mundo contemporâneo, como o foi há séculos o Farol de Alexandria, cuja sua luz representava a proximidade ao progresso civilizacional e ao saber acumulado.  

 

Esse projecto da construção europeia veio permitir um tempo de paz e de progresso no pós-II GM sem paralelo na sua história e apesar das dificuldades económicas e sociais que têm assolado alguns países europeus ao longo destas décadas, os valores e princípios têm sido o sustentáculo desta ideia comum de Europa. Mas são precisamente estes valores e princípios que sofrem agora um rude golpe, cometido por um dos "seus"  e que nos leva a questionar sobre a solidez daquilo que herdámos no que diz respeito aos direitos elementares do Homem enquanto ser social e que no quadro europeu estão consignados na Convenção Europeia dos Direitos do Homem. As recentes medidas aprovadas pelo parlamento da Dinamarca, que permitirão confiscar os bens de refugiados acima dos 1340 euros e impossibilitam a reunião familiar de refugiados num prazo de três anos, fazem lembrar outros tempos trágicos, onde milhões de pessoas foram despojadas daquilo que tinha para contribuir para o esforço de guerra. 

 

De notar que o pacote legislativo agora aprovado na Dinamarca está num nível de gravidade bem mais acima do que aquilo que foi adoptado na Hungria e na Polónia recentemente, porque, embora estas medidas polémicas tenham violado o direito comunitário, no caso dinarmaquês estamos perante ofensas claras à dignidade humana, aquilo que, até agora, parecia ser inviolável nessa ideia de "união europeia" e que nos tornava o tal "farol" dos tempos modernos. É certo que os Estados devem ter uma visão realista e pragmática para atenuar o impacto da chegada insustentável de milhares de refugiados à Europa, mas o caminho não é seguramente este.